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Ela insistia - e muito - no fato de que temos que levar a Bíblia a sério.
- O que está escrito lá é aqui que Deus disse. Não tem que ficar interpretando e dizer que
Deus não quis dizer aquilo daquele jeito.
Não gostava de exegetas, até porque ela nem mesmo sabia pronunciar a palavra. Só sabia que
eram padres que diziam que os fatos não aconteceram daquele jeito que está escrito. Se não
aconteceu daquele jeito, então
por que foi escrito? Ela achava que Deus havia pego o evangelista e o profeta e mandado que
ele se sentassem no banco, ditando, tintim por tintim, o que eles escreveram. Ninguém punha
na cabeça dela que inspiração não é
ditado, com bê-a-bá, bê-e-bé. Ela achava que Deus havia soprado a Bíblia palavra por palavra
no ouvido dos profetas e dos evangelistas.
- Tem muita heresia nas faculdades de teologia - costumava dizer.
Tinha sido professora por 40 anos e catequista por uns cinqüenta.
Não falou isso uma ou duas vezes. Falava sempre. Era só o Padre Geraldo dizer alguma coisa um
pouco diferente do que estava na tradução dela que ela, católica renovada convicta, já vinha
discutir com ele.
- O Senhor disse "um centímetro" e na Bíblia está escrito "um côvado". Por que o senhor
mudou?
Tradução só valia a que ela havia feito da Bíblia da Ave Maria. As outras tinham defeitos.
Nem os padres claretianos, que detêm os direitos desse versão, poderiam esperar adepta tão
acirrada. Bíblia era ao pé da letra e da letra da Bíblia dela...
Um dia calhou de eu celebrar a missa. Falei espinhos em vez de abrolhos e disse algumas
coisas que ela viu como heréticas. E lá veio a Dona Assunta para cima de mim.
- Por que mudava as coisas? Quem interpreta a Bíblia é porque não acredita em Deus - disse.
Vocês padres não conseguem ver as coisas como eles são. Por
que precisam empobrecer a linguagem da Bíblia?
Achei graça e lembrei-lhe que Jesus havia interpretado a lei que proibia trabalhar aos
sábados e que não havia permitido que apedrejassem a mulher adúltera. Estava escrito na
Bíblia, mas ele mudou muita coisa. Jesus
interpretava a Bíblia muitas vezes. Nem Jesus a queria ao pé da letra. E ela dizia:
- É, mas Jesus é Jesus, e o senhor que é? Que é o senhor para interpretar a Bíblia diferente
do que foi escrito?
Respondi que, se ela era tão fiel à Bíblia, da próxima vez que pecasse com a língua ou com o
olho, deveria arrancá-lo; que subisse em cima do telhado cada vez que se falasse de Jesus. E
que, se uma criança se escandalizasse
com alguma palavra dela, que deveria amarrar-se numa pedra de moinho e se jogar-se no mar.
Está lá, ao pé da letra... Jesus disse que, quem pecasse com a mão, deveria arrancá-la.
Olhou-me espantada e disse:
- O senhor não entende mesmo! Há coisas que não são para ser do jeito que estão escritas e há
coisas que são daquele jeito mesmo. Eu só defendo o que é para ser como Deus queria que
fosse.
Percebi que era inútil discutir. Quando ela interpretava, era sabedoria, mas, quando os
outros interpretavam, era heresia.
Há muitas Donas Assuntas por aí. O que elas fazem Deus abençoa, o que os
outros fazem, não... E isso é tudo, menos religião...