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PASTOR E REBANHO
Fonte: Livro "Vocabulário de Teologia Bíblica" - ed. Vozes
Transmissão: Antonio Xisto Arruda

Profundamente radicada na experiência dos "arameus nômades" (Dt 26,5) que foram os patriarcas de Israel em meio a uma civilização pastoril (cf. Gn 4,2), a metáfora do pastor que conduz seu rebanho exprime admiravelmente dois aspectos - aparentemente contrários, e amiúde separados - da autoridade exercida sobre os homens. O pastor é ao mesmo tempo um chefe e um companheiro. É um homem forte, capaz de defender seu rebanho contra as feras (1Sm 17,34-37; cf. Mt 10,16; At 20,29); é também delicado com suas ovelhas, conhecendo seu estado (Pv 27,23), adaptando-se a sua situação (Gn 33,13s), levando-as em seus braços (Is 40,11), acariciando esta ou aquela "como sua filha" (2Sm 12,3). Sua autoridade é indiscutida, é baseada no devotamento e no amor. De resto, no antigo oriente (Babilônia, Assíria), os reis gostavam de se considerar como pastores aos quais a divindade havia confiado o serviço de reunir as ovelhas do rebanho e delas cuidar. Sobre ess! e pano de fundo a Bíblia pormenoriza as relações que unem Israel e Deus, através de Cristo e de seus delegados.

ANTIGO TESTAMENTO

  1. Javé, chefe e pai do rebanho - Contrariamente ao que se poderia pensar, Javé não traz quase nunca o título de pastor: duas designações antigas (Gn 49,24; 48,15) e duas invocações do saltério (Sl 23,1; 80,2). O título parece reservado Àquele que deve vir. Por outro lado, se esse título não é alegoricamente transferido a Javé, pode-se descrever em uma verdadeira parábola do bom pastor as relações de Deus com seu povo. Por ocasião do Êxodo, "ele tangeu seu povo como ovelhas" (Sl 95,7), como "um rebanho no deserto" (Sl 78,52s). "Assim como um pastor que apascenta seu rebanho pega em seus braços os cordeiros, e os põe sobre seu peito, e leva ao descanso as ovelhas mães" (Is 40,11), assim Javé continua a "conduzir" seu povo (Sl 80,2). É verdade, Israel mais parece uma novilha renitente que um cordeiro numa campina (Os 4,16); terá que partir cativo (Jr 13,17). Então, de novo, Javé o "guiará par! a as águas borbulhantes" (Is 49,10), reunindo as ovelhas dispersas (cf. 56,8) "com um assovio" (Zc 10,8). Ele mostra a mesma solicitude para com cada fiel, que de nada sente falta e nada tem a temer sob o cajado de Deus (Sl 23,1-4). Enfim sua misericórdia se estende a toda carne (Eclo 18,13).

  2. O rebanho e seus pastores - O Senhor confia a seus servos as ovelhas que ele mesmo apascenta (Sl 100,3; 79,13; 74,1; Mq 7,14): ele as guia "pela mão de Moisés" (Sl 77,21) e, para evitar que "a comunidade de Javé esteja sem pastor", designa Josué como chefe depois de Moisés (Nm 27,15-20); ele tira Davi de detrás do redil das ovelhas para fazê-lo apascentar seu povo (Sl 78,70ss; 25 7,8; cf. 5,2; 24,17).

    Enquanto recebem o título de pastor os juízes (25 7,7), os chefes do povo (Jr 2,8) e os príncipes das nações (Jr 25,34ss; Na 3,18; Is 44,28), este, como no caso de Javé, não é expressamente dado aos reis de Israel; essa função, contudo, lhes é atribuída (1Rs 22,17; Jr 23,1-2; Ez 34,1-10). E' porque, com efeito, o título é reservado ao novo Davi, constituindo assim um elemento da esperança escatológica. Essa é a mensagem de Ezequiel, preparada pela de Jeremias: Javé retoma a direção de seu rebanho e irá confiá-la ao Messias.

    Os pastores de Israel, com efeito, se mostraram infiéis à sua missão. Não buscaram Javé (Jr 10,21), revoltaram-se contra ele (2,8), não se ocupando do rebanho, mas apascentando-se a si próprios (Ez 34,3), deixando as ovelhas se tresmalharem e se dispersarem (Jr 23,ls; 50,6; Ez 34,1-10). "Todos esses pastores serão pasto do vento" (Jr 22,22). Segundo o augúrio do profeta (Mq 7,14s), Javé assumirá o rebanho (Jr 23,3), reuni-lo-á (Mq 4,6), reconduzi-lo-á (Jr 50,19), guardá-lo-á enfim (Jr 31,10; Ez 34,11-22). E então, tentará provê-lo de "pastores segundo o seu coração, que apascentarão com inteligência e sabedoria" (Jr 3,15; 23,4); enfim, segundo Ezequiel, não haverá mais senão um sá pastor, novo Davi, com Javé como Deus (Ez 34,23s): tal será "o rebanho que eu apascento" (34,31) e que se multiplicará (36,37s): sob esse único pastor, Judá e Israel, outrora inimigos, serão unificados (37,22.24; cf. Mq 2,12s).

    Contudo, depois do exílio, os pastores da comunidade não correspondem à expectativa de Javé, e Zacarias retoma a polêmica contra eles, anunciando o destino do Pastor futuro. Javé irá visitar em sua ira esses maus pastores (Zc 10,3; 11,4-17) e brandir a espada (13,7); do Israel assim purificado sobreviverá um Resto (13,8s). O contexto da profecia convida a ver no pastor que é ferido (13,7) não o pastor insensato (11,l5ss) e sim o "transpassado" (12,10) cuja morte foi salutar (13,1-6). Esse pastor se identifica concretamente com o Servo que, como uma ovelha muda, deve justificar com seu sacrifício as ovelhas dispersas (Is 53,6s.11s).

NOVO TESTAMENTO

No tempo de Cristo, os pastores eram diversamente julgados. Em nome da *Lei, que mal podiam praticar, eles eram equiparados a ladrões e assassinos. Tinha-se contudo presente à memória a profecia do Pastor futuro. Jesus a realiza; parece até que ele quis pôr os pastores entre os "pequeninos" que, como os publicanos e as prostitutas, recebem de bom grado a Boa-Nova. Pode-se interpretar neste sentido a acolhida que os pastores de Belém prestaram a Jesus, nascido provavelmente em seu estábulo (Lc 2,8-20). Fiel à tradição bíblica, Jesus descreve a misericordiosa solicitude de Deus sob os traços do pastor que vai em busca da ovelha perdida (Lc 15,4-7). Mas é na sua pessoa que se reaIiza a expectativa do bom pastor, e é ele que delega a certos homens uma função pastoraI na Igreja.

  1. Jesus, o bom pastor - Os Sinóticos apresentam numerosos elementos que prenunciam a alegoria joânica. O nascimento de Jesus em Belém cumpriu a profecia de Miquéias (Mt 2,6 = Mq 5,1); sua misericórdia revela nele o pastor que Moisés queria (Nr 27,17), pois ele vem em socorro das ovelhas sem pastor (Mt 9,36; Mc 6,34). Jesus se considera como enviado às ovelhas perdidas de Israel (Mt 15,24; 10,6; Lc 19,10). O "rebanhozinho" dos discípulos que ele congregou (Lc 12, 32) prefigura a comunidade escatológica à qual se promete o Reino dos santos (cf. Dn 7,27); ele será perseguido pelos lobos de fora (Mt 10,16; Rm 8,36) e pelos de dentro, disfarçados em ovelhas (Mt 7,15). Será disperso, mas segundo a profecia de Zacarias o pastor que tiver sido ferido as congregará na Galiléia das nações (Mt 26,31s; cf. Zc 13,7). Enfim, no ocaso do tempo, o Senhor das ovelhas separará no rebanho os bons e os maus (Mt 25,31s).

    Outros escritores do NT apresentam nesse espírito "o Grande Pastor das ovelhas" (Hb 13,20), maior que Moisés, o "Chefe dos pastores" (1Pd 5,4), "o pastor e guarda" que reconduziu as almas desgarradas curando-as com suas próprias machucaduras (1Pd 24s). Enfim, no Apocalipse, que parece seguir uma tradição apócrifa sobre o Messias conquistador, o Cristo-Cordeiro se torna o Pastor que conduz às fontes da vida (Ap 7,17) e que fere os pagãos com um cetro de ferro (19,15; 12,5).

    No IV evangelho, essas esparsas indicações formam um grandioso painel, que pinta a Igreja vivendo sob o cajado do único Pastor (Jo 10). Uma nuança, porém; trata-se não tanto do Rei, Senhor do rebanho, como do Filho de Deus a revelar aos seus o amor do Pai. O discurso de Jesus retoma os dados anteriores, aprofundando-os. Como em Ezequiel (Ez 34,17), trata-se dum juízo (Jo 9,39). Israel se parece com ovelhas oprimidas (Ez 34,3), entregues "aos ladrões, aos bandidos (Jo 10,1.10), dispersas (Ez 34,5s.12; Jo 10,12). Jesus, como Javé, as "faz sair" e as "conduz à boa pastagem" (Ez 34,l0-14; Jo 10,11.3.9.16); então elas conhecerão o Senhor (Ez 34,15.30; Jo 10,15) que as salvou (Ez 34,22; Jo 10,9). O "um só pastor" anunciado (Ez 34,23) "sou eu", diz Jesus (Jo 10,11).

    Jesus pormenoriza mais. Ele é o mediador único, a porta de acesso às ovelhas (10,7) e de saída para as pastagens (10,9s). Só ele delega o poder pastoral (cf. 21,l5ss); só ele dá a vida na plena liberdade de sair e entrar (cf. Nm 27,17). Uma nova existência se funda no conhecimento mútuo do pastor e das ovelhas (10,3s.14s), amor recíproco baseado no amor que une o Pai e o Filho (14,20; 15,10; 17,8s.18-23). Enfim, Jesus é o pastor perfeito porque dá sua vida pelas ovelhas (10,15.17s); ele não é só "ferido" (Mt 26,31; Zc 13,7), ele dá sua vida por si mesmo (Jo 10,18); as ovelhas dispersadas que ele reúne vêm tanto do redil de Israel como das nações (10,16; 11,52). Enfim o rebanho único assim congregado está unido para sempre, pois é o amor do Pai todo-poderoso que o mantém e lhe garante a vida eterna (10,27-30).

  2. A Igreja e seus pastores - Segundo João, o discurso do Bom Pastor inaugurava a Igreja: Jesus acolhe o cego de nascença curado, expulso da sinagoga pelos maus chefes de Israel. Pedro, depois da Ressurreição, recebe a missão de apascentar a Igreja toda (21,16). Outros "pastores" (Ef 4,11) são encarregados de velar pelas Igrejas: os "anciãos" e os "epíscopos" (1Pd 5,1ss; At 20,28). A exemplo do Senhor, devem eles buscar a ovelha tresmalhada (Mt 18,12ss), vigiar contra os lobos vorazes que não pouparão o rebanho, esses falsos doutores que arrastam à heresia (At 20,28ss). A simples designação de "pastor" deve evocar as qualidades dos pegureiros e o comportamento de Javé no AT; o NT lembra alguns de seus aspectos: é preciso apascentar a Igreja de Deus com entusiasmo de coração, de maneira desinteressada (cf. Ez 34,2s), tornando-se modelos do rebanho; então "sereis recompensados pelo Chefe dos pastores" (1Pd 5,3s).