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Há um método infalível de tirar conclusões erradas: o método brasileiro de
raciocinar.
Se você quer estragar definitivamente um cérebro, acostume-o desde pequeno a
tomar os sentidos das palavras, estampados nos dicionários, como se fossem
traduções diretas de coisas e fatos. Em seguida, quando ele montar um
raciocínio com essas palavras, faça-o acreditar piamente que a conclusão se
aplica aos fatos e a coisas correspondentes.
Esse é o método infalível de ir parar longe da realidade. Após algumas
décadas de experiência na leitura de jornais e livros brasileiros, posso
assegurar que ele é praticamente o único método admitido nos debates
públicos neste país.
Querem um exemplo? A palavra "iluminismo" designa idéias de liberdade e
razão, opostas ao dogmatismo, à fé cega e às tiranias. "Inquisição", por sua
vez, quer dizer um tribunal que mandava os heréticos para a fogueira. Logo -
segundo o método acima referido -, se estivermos falando de tortura, podemos
concluir razoavelmente que a Inquisição fez uso regular desse expediente e
que a difusão do Iluminismo extirpou essa prática hedionda do rol das
atividades humanas decentes.
Essa crença é hoje em dia um "topos", um lugar-comum, não apenas tido por
verdade auto-evidente, mas usado como premissa capaz de transmitir sua
veracidade a quaisquer conclusões que se tirem dele.
No entanto, se em vez de se contentar com palavras você decidir investigar
os fatos em detalhe, indo além do que se pode encontrar em livros de
divulgação escritos pelo método brasileiro de raciocinar, descobrirá que os
inquisidores foram as primeiras autoridades a enxergar na tortura algo de
imoral e, sem poder aboli-la por completo, as primeiras a limitar
severamente a sua prática, vetando a efusão de sangue e proibindo que o
mesmo prisioneiro fosse torturado mais de uma vez. Isso foi um dos passos
mais decisivos na evolução dos direitos humanos.
Os iluministas, por seu lado, consagraram a noção do Estado - em vez da
religião ou da cultura - como autoridade moral suprema, portanto do
governante como "guia dos povos". Com isso, prepararam o terreno não só para
o advento do Terror revolucionário na França, mas para a emergência dos
totalitarismos modernos que reinstauraram a prática ilimitada da tortura.
Essa realidade histórica é totalmente escamoteada quando, com a maior
inocência, o sujeito raciocina com base no valor nominal dos termos.
Igualmente inepto - só para dar outro exemplo - é o raciocínio que atenua as
culpas de terroristas sob a alegação de que são minorias em luta clandestina
contra um governo tirânico, ao mesmo tempo que condena com veemência o
"terrorismo de Estado". Nominalmente, as duas coisas são inversas, mas de
fato o terrorismo de Estado só veio a existir por obra de grupos
clandestinos que, subindo ao poder, conservaram, agora como técnicas de
governo, suas antigas práticas de luta - havendo portanto entre o terrorismo
clandestino e o estatal uma relação análoga à de ovo e galinha, entre os
quais não há oposição lógica mas apenas diferenças de fases na evolução
temporal de uma só e mesma criatura.
O terrorista avulso de hoje é o terrorista estatal de amanhã, como o foram
Lênin e Hitler, Mao e Fidel. E há sempre um intervalo misto, como no caso
das Farc, que fazem terrorismo avulso nas regiões submetidas ao governo
central, terrorismo estatal nas áreas sob seu próprio domínio.
Tomar as palavras como coisas é introduzir, em debates sérios, um elemento
de magia hipnótica. Feito com inocência, é prova de burrice e incultura.
Feito de propósito, é esplêndida vigarice.