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E NÓS NOS GLORIAMOS DA CRUZ
Autor: Gustavo Corção
Fonte: Livro "A Descoberta do Outro" (pp. 191-194)
Transmissão: Clarissa

"... Muitas vezes, lendo as páginas do Novo Testamento, romanticamente,para lhes achar um pitoresco, para entrever um colorido histórico nas cenas evangélicas, e ver uma estrada da Samaria batida de sol, achamos fácil reconhecer o Cristo e pasmamos assombrados ante o terrível equívoco dos judeus. O drama da Paixão, parece-nos, evidente, claro. Compreensível; qualquer um de nós não gostará de ser equiparado aos soldados romanos que jogavam dados praguejando ou a algum mercador que passasse ao longe tangendo seus anos carregados de fazenda, sem voltar sequer o rosto preocupado e ganancioso para ver a Santa Agonia . Lendo a Paixão assim,meditando-a como se fosse um romance de enredo muito sabido, colocamo-nos, como é usual nessas leituras, do lado do autor e em pé de igualdade. Saboreamos a superioridade de saber ponto por ponto o que vai acontecer; sabemos que o pretor é aquele que vai lavar as mãos e Caifás é o que vai rasgar as vestes. E já sabemos que o Cristo é Cristo. Já sabemos.É Ele o Redentor do qual dois mil anos falarão e para o qual serão erigidas as Catedrais de Estrasburgo e Chartres. Sentimo-nos imensamente superiores aos indiferentes do Calvário e estremecemos de horror diante dos que esbofetearam, insultaram e cuspiram na Santa face.

Mas, convém pensar um pouco: qual de nós poderia realmente suportar a dura prova da cruz? Qual de nós poderia agüentar a glória da cruz, a insuportável visão do opróbrio, deixando seu velho critério de vitória, saducaico ou farisaico, baseado no prestígio ou no sucesso? Qual de nós poderia ver atrás daquele rosto ensangüentado e cuspido a face dum Rei?

Parece fácil agora, porque já lemos o texto muitas vezes e temos uma alegoria da paixão gravada em nossa memória. Parece fácil, mas agora mesmo, em cada instante, em cada dia, apesar de saber de cor o enredo da paixão, apesar da graça do nosso batismo, não somos nós mesmos que buscamos o triunfo fácil de ter razão e prestígio, não somos nós mesmos que esperneamos diante da loucura e do escândalo da exinanição do Cristo em sua Igreja???

Realmente, cada vez que nós desejamos a glória mundana ou a política de sermos católicos, ou nos espantamos diante dos insucessos do Vaticano na política internacional, cada vez que nos envergonhamos de ouvir um sermão medíocre ou adotamos uma atitude de irritação diante da vida escandalosa de algum sacerdote,... estamos exatamento como os judeus estavam diante da cruz e de nada nos adiantou saber de cor o enredo da paixão. O cristão está de pé diante da Paixão do Espírito Santo e somente na fé pode suportar este terrível espetáculo.

E aí está. As perguntas que fazíamos atrás, sobre as nossas probabilidades de reconhecimento diante do Calvário pareciam idiotas como o são todas as suposições baseadas em retrospecções históricas. Não tem sentido, fora do recurso retórico, perguntar o que seria hoje São Paulo ou o que faria um de nós diante de Nabucodonosor. Mas, a história do Calvário não é uma história: é um mistério. O nosso memorar não tem o sentido de uma retrospecção histórica, mas de uma visão no mistério da fé. Se alguma tolice havia, ela estava antes no modo impressionista, histórico, colorido, sentimental, de enfrentar a paixão, donde saía a extraordinária presunção de estarmos livres daquele espetáculo da cruz, isentos de seu escândalo e de sua loucura, blindados por dois mil anos de história e pelas pinturas alegóricas da Renascença.

Por isso o homem novo, na volta de seu caminho, esperneia sob o aguilhão. Estava na iminência de ter razão e de tirar daí um renovado prestígio. Apesar da fé do seu batismo já tinha começado seus cálculos sobre a respeitabilidade do quarteirão e já entrevia uma Igreja decente, bem instalada no mundo, bem sucedida, acatada por causa de Maritain, prestigiada pela conversão de Bérgson, uma Igreja confortável, uma Igreja sem cruz.