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A IMACULADA CONCEIÇÃO DA VIRGEM MARIA
Autor: dr. Ludwig OTT
Fonte: Livro "Fundamentos do Dogma Católico"
Transmissão: Gercione Lima

1. O DOGMA

Maria foi concebida sem a mancha do pecado original (de fide)

No dia 08 de Dezembro de 1854, o Papa Pio IX através da Bula "Ineffabilis" promulgou a seguinte doutrina revelada por Deus e portanto para ser crida firmemente e constantemente por todos os fiéis: "A Santíssima Virgem Maria foi, no primeiro instante da sua concepção, por um único dom da graça e privilégio do Deus Altíssimo, em vistas dos méritos de Jesus Cristo, o Redentor do gênero humano, preservada isenta de toda a mancha do pecado original". D 1641.

Explicação do dogma

  1. Por concepção subentende-se a concepção passiva. O primeiro momento da concepção é aquele momento no tempo em que a alma criada por Deus é infundida na matéria corporal preparada pelos pais.

  2. A essência do pecado do pecado original consiste (formaliter) na ausência da graça santificante como consequência do pecado de Adão. Maria foi preservada desse defeito de modo que ela entrou na existência em estado de graça santificante.

  3. A isenção de Maria do pecado original foi um dom gratuito de Deus (gratia), e uma excessão da lei (privilegium) concedido unicamente a ela.

  4. A causa eficiente (causa efficiens) da Imaculada Concepção de Maria foi Deus Todo Poderoso.

  5. A causa meritória (causa meritoria) foi a Redenção operada por Jesus Cristo. Daí se segue que até mesmo Maria tinha necessidade da redenção e de fato, foi redimida. Em razão da sua origem natural, ela, como todos os demais filhos de Adão, estava sujeita à obrigatoriedade de contração do pecado original (debitum contrahendi peccatum originale), mas por uma especial intervenção de Deus, ela foi preservada da mancha do pecado original. (debuit contrahere peccatum, sed non contraxit.). Portanto, Maria foi redimida "pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo", embora de um modo bem mais perfeito do que os demais seres humanos. Enquanto os demais mortais foram libertados do pecado original presente em suas almas (redemptio reparativa), Maria, a Mãe do Redentor foi preservada do contágio do pecado original (redemptio praeservativa or prae-redemptio). Portanto o Dogma da Imaculada Conceição de Maria de modo algum contradiz o dogma segundo o qual todos os filhos de Adão estão sujeitos ao Pecado Original e necessitam da Redenção.

  6. A causa final (causa finalis proxima) da Imaculada Concepção de Maria é sua Maternidade Divina: dignum Filio tuo habitaculum praeparasti.

2. PROVAS DA SAGRADA ESCRITURA E DA TRADIÇÃO

A Doutrina da Imaculada Concepção de Maria não está explicitamente revelada nas Sagradas Escrituras. Mas de acordo com muitos teólogos ela está contida de modo implícito nas seguintes passagens:

  1. Gênesis 3,15 (Protoevangelium): Inimicitas ponam inter te et mulierem et semen tuum et semen illius; ipsa conteret caput tuum, et tu insidiaberis calcaneo eius. A tradução dessas palavras, de acordo com o texto original é: "Eu porei inimizade entre tu e a mulher, entre a tua semente (descendência) e a semente dela. Ele (a semente da mulher) te esmagará a cabeça e tu lhe armarás insídias ao calcanhar".

    O sentido literal da passagem é possivelmente o seguinte: entre Satanás e seus seguidores e Eva e sua posteridade, haverá uma constante batalha moral. A posteridade de Eva conseguirá uma vitória final e completa sobre Satanás e seus seguidores, ainda que sejam feridos na batalha. A posteridade de Eva inclui o Messias, em cujo poder a humanidade obterá a vitória sobre Satanás. Portanto, indiretamente essa passagem é messiânica. Cf. D 2123.

    A semente da mulher foi compreendida como referente ao Redentor (Septuaginta) e consequentemente, a Mãe do Redentor como sendo a Mulher. Desde o segundo século esta direta interpretação messiânica-mariana foi exposta por vários Padres da Igreja. Por exemplo, Santo Irineu, Santo Epifânio, Santo Isidoro de Pelusium, São Cipriano, o autor da "Epístola ad amicum aegrotum" e São Leão o Grande. Não obstante, isso não pode ser encontrado nos escritos da maioria dos Padres entre os grandes doutores do Oriente ou Ocidente. De acordo com esta interpretação, Maria permanece junto a Cristo em perfeita e vitoriosa inimizade contra Satanás e seus seguidores. Muitos dos últimos estudiosos e teólogos da era moderna argumentam, à luz dessa interpretação do protoevangelho que: "A vitória de Maria sobre Satanás não poderia ser completa e perfeita, se por algum momento ela tivesse estado sob seu domínio". Consequentemente ela só pode ter entrado nesse mundo, preservada da mancha do pecado original.

    A Bula "Ineffabilis" aprova essa interpretação messiânica-mariana . Daí se segue a dedução de que Maria, em consequência de sua íntima associação com Cristo, "com Ele e por Ele manteve uma eterna inimizade pela venenosa serpente, triunfou do modo mais admirável sobre ela, esmagando-lhe a cabeça com seu pé imaculado".A Bula não fornece qualquer explicação autêntica da passagem. Devemos observar que a infalibilidade da decisão papal se extende apenas ao Dogma como tal e não às razões que levaram ao Dogma.

  2. Lucas 1,28: "Ave Cheia de Graça!" A expressão "cheia de graça" na saudação do Anjo representa um nome próprio e consequentemente expressa uma qualidade ou característica de Maria. A principal razão pela qual o favor de Deus repousa de modo especial sobre ela, é a sua eleição à dignidade de Mãe de Deus Filho. Com efeito, a concessão da graça divina à Maria deve ser de uma perfeição ímpar. Todavia, só pode ser perfeita se for não apenas intensivamente como também extensivamente. Ou seja, se se extende por toda a sua vida, incluindo aí desde o primeiro instante que ela entrou no mundo.

  3. Lucas 1,41: Isabel, cheia do Espírito Santo diz a Maria: "Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre". A bênção de Deus que repousa sobre Maria é comparada à benção de Deus que repousa sobre Cristo em sua humanidade. Esse paralelo sugere que Maria, assim como Cristo, foi desde o início da sua existência isenta de todo o pecado.

  4. Nem os Padres gregos e nem os da Igreja Latina explicitamente ensinam a Imaculada Concepção de Maria. Não obstante eles a ensinam implicitamente através de duas noções fundamentais:

    1. Maria, a mais perfeita e, pureza e santidade: Santo Efraim diz: "Vós e Vossa Mãe sois os únicos que são totalmente belos em todos os aspectos, pois em Vós, Ó Senhor não há mácula e em Vossa Mãe nenhuma mancha"(Carm. Nisib.27). Santo Agostinho diz que todos os homens devem se confessar pecadores, "exceto a Santa Virgem Maria, a quem eu desejo, por causa da honra de Nosso Senhor, deixar inteiramente fora de questão quando se fala de pecado" (excepta sancta virgine Maria, de qua propter honorem Domini bullan prorsus, cum de peccatis agitur, haberi volo quaestionem: De natura et gratia 36,42). Todavia tal contexto deve ser subentendido como referente à isenção de pecados pessoais.

    2. A similaridade e o contraste entre Maria e Eva. Maria é por um lado, a réplica de Eva em sua pureza e integridade antes da Queda, e por outro lado, a antítese de Eva, na medida em que Eva é a causa da corrupção do gênero humano, ao passo que Maria é causa da salvação. São Efraim ensina: Por último, enquanto uma se tornou causa da nossa morte, a outra se tornou causa da nossa vida". (Op. syr. II 327) Cf. São Justin, Dial.100. Santo Irineu Adv. haer III 22,4; Tertuliano, de carne Christi 17.

3. O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO DOGMA

Desde os primórdios do século VII, uma Festa em honra da Concepção de Santa Ana, (Conceptio S. Annae), ou seja, da concepção passiva de Maria, era celebrada na Igreja Grega. A celebração e a Festa se espalhou mais tarde para o Ocidente, primeiramente no sudeste da Itália e depois na Inglaterra e Irlanda sob o título: Conceptio Beatae Mariae Virginis. O objeto da celebração da festa foi incialmente a ativa concepção de Santa Ana, a qual, de acordo com o Proto-Evangelho de São Tiago, ocorreu depois de um longo período de infertilidade e foi predito por um anjo como extraordinária manifestação da graça de Deus.

No início do século XII, um monge britânico chamado Eadmer, um aluno de Santo Anselmo da Cantuária e Osberto de Clare, advogou a tese da Imaculada (passiva) Concepção de Maria, ou seja, sua concepção isenta do pecado original. Eadmer escreveu a primeira monografia nesse sentido. Todavia, São Bernardo de Clairvaux, por ocasião da instituição da Festa em Lyons (por volta do ano 1140) advertiu aos fiéis que essa era uma inovação inaudita e ensinou que Maria foi santificada apenas depois de sua concepção, ou seja, quando ela já se encontrava no útero de Santa Ana (Ep.174).

Sob a influência de São Bernardo de Clairvaux, os principais teólogos do século XII: Petrus Lombardus, Santo Alexandre de Hales, São Boaventura, Santo Alberto o Grande e São Tomás de Aquino (cf. S. th III 27,2) rejeitaram a doutrina da Imaculada Concepção. A dificuldade que eles tinham em aceitar tal doutrina era devido ao fato de que eles não conseguiam encontrar um modo de colocar a isenção de Maria do pecado original em sintonia com a universalidade do pecado original e a consequente necessidade que toda a humanidade tem da redenção.

A correta abordagem que levou à solução final do problema foi encontrada pelo teólogo franciscano William de Ware e esta foi aperfeiçoada por seu brilhante aluno John Duns Scotus (1308). Esse último ensinou que a animação (animatio) não precede necessariamente a santificação em ordem de tempo (ordo temporis) mas apenas em ordem de conceito (ordo naturae). Através da introdução do conceito de pré-redenção (preredemtionem) ele conseguiu reconciliar a isenção do pecado original em Maria com a sua necessidade de redenção. A preservação do pecado original é, segundo Scotus , o mais perfeito tipo de redenção. Assim era apropriado que Cristo redimisse a Sua própria mãe dessa maneira. A Ordem Franciscana se aliou a Scotus e em contraste com a Ordem Dominicana, decididamente defendeu a doutrina e a Festa da Imaculada Concepção de Maria.

No ano 1439, o Concílio de Basle (o qual todavia não possuía validade ecumênica) ,em sua 36a Sessão, se declarou a favor da Imaculada Concepção. O Papa Xisto IV (1471-1484) concedeu indulgências durante a celebração da Festa e proibiu as mútuas censuras das facções em disputa (D 734 et seq.). O Concílio de Trento, em seus decretos sobre o pecado original, faz a importante declaração: "Não é nossa intenção envolver Maria, a Bem Aventurada e Imaculada Virgem e Mãe de Deus nesse Decreto" (D 792). Os Papas Paulo V (1616), Gregório XV(1622) e Alexandre VII (1661) defenderam essa doutrina (cf. D 1100). No dia 8 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX, depois de ter consultado todo o episcopado, falando Ex Cathedra, declarou a doutrina da Imaculada Concepção de Maria como Dogma de Fé para toda a Igreja.

4. ARGUMENTO DA RAZÃO

A razão fornece a base para o dogma de acordo com o axioma escolástico, o qual pode ser encontrado nos escritos de Eadmer: Potuit, decuit, ergo fecit (Deus poderia fazê-lo, Ele deveria fazê-lo e portanto Ele o fez). Isto, é verdade, não nos dá plena certeza, mas ainda assim falando, racionalmente estabelece para o dogma um alto grau de probabilidade.