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Antes de mais nada, devemos ter uma boa noção do que foi a Inquisição. Precisamos saber o que
realmente aconteceu. É necessário compreender a Inquisição, seu contexto cultural, jurídico e
político, as causas que levaram ao seu surgimento, os métodos utilizados, a sua extensão, o
número de vítimas e o que provocou o seu desaparecimento.
Como não há espaço suficiente aqui e também não é minha intenção escrever
uma monografia sobre o assunto, vou fazer apenas um resumo com citações do material que
disponho e, no final, darei uma orientação bibliográfica para quem desejar se aprofundar mais.
I - O que é Inquisição?
A palavra Inquisição vem do latim "inquiriere" e quer dizer "procurar", "investigar". Por este
termo é usualmente designada uma instituição eclesiástica específica criada para combater ou
suprimir a heresia.
II - Um esclarecimento: "a Inquisição" ou "as Inquisições"?
Como a Inquisição é um fenômeno histórico que não permaneceu sempre o mesmo mas conheceu
variações de época para época e de lugar para lugar, é conveniente distinguirmos várias
"Inquisições", que devem ser analisadas separadamente. Consideraremos aqui a divisão tríplice,
que parece ser a mais aceita e, na minha opinião, é a mais completa:
"Não foi a Igreja que inaugurou a repressão da heresia por meio da violência. Se a
considerou em todos os tempos como um crime de ´lesa-majestade' divina, nunca pediu a
aplicação dessas penas severas que castigavam toda a lesa-majestade no direito imperial
romano. No decurso dos três primeiros séculos, recorreu apenas à persuasão e às punições
espirituais. Foram os imperadores cristãos, Constantino e seus sucessores, que, como 'bispos
do exterior', castigavam com penas temporais - multas, prisão e flagelação - os rebeldes
contra a verdadeira fé, maniqueus ou donatistas. O primeiro grande processo por heresia que
terminou com uma execução capital, o do espanhol Prisciliano, provocou veementes protestos do
papa Sirício, de Santo Ambrósio e de São Martinho de Tours. Com Santo Agostinho, a perspectiva
mudou um pouco: partidário resoluto dos métodos de tolerância para com os hereges, sobretudo
maniqueus, compreendeu que a heresia constituía um atentado fundamental contra a sociedade
cristã e que esta devia defender-se. Desejava que ela o fizesse com moderação, mas admitia que
se aplicasse a pena de morte em caso de perigo social evidente. Ao contrário, São João
Crisóstomo dizia que 'matar um herege é introduzir na terra um crime inexpiável'.
Coisa curiosa: a época merovíngia e mesmo a época carolíngia, que não passam por muito
benévolas, não conheceram repressões sangrentas da heresia. A razão é simples: o
não-conformismo religioso era então muito pequeno para constituir um perigo real, e o que
restava dos arianos podia ser considerado como prestes a converter-se. O monge Gottschalk,
acusado de heresia em meados do século IX, foi condenado apenas à flagelação. Foi a reaparição
da heresia dualista, maniquéia, cujo caráter anti-social já referimos, que provocou uma reação
mais viva. Esta reação foi obra dos príncipes: Roberto o Piedoso, em 1022, mandou queimar os
hereges de Orléans; o imperador Henrique III, em 1052, mandou enforcar outros em Goslar. Até
meados do século XII, todas as condenações à morte de hereges foram decididas pelas autoridades
civis, muitas vezes impelidas pelas multidões fanatizadas. A Igreja levantou-se contra essas
mortes, principalmente contra as execuções sumárias. Foram inúmeros os Doutores e Pontífices
que fizeram ouvir os seus protestos. 'A fé é uma obra de persuasão', exclamava São Bernardo,
'não se impõe!', e, quando soube da execução pelo fogo de alguns hereges em Colônia,
acrescentou sabiamente que era absurdo fazer 'falsos mártires' desse modo.
Foram numerosos os cânones dos concílios que, excomungando os hereges e proibindo os cristãos
de lhes darem asilo, não admitiam que se utilizassem contra eles a pena de morte. Deviam
bastar as penas espirituais ou, quando muito, as penas temporais moderadas" (Daniel-Rops,
História da Igreja de Cristo, vol. III, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante,
pp. 605-606).
"No mundo antigo, dentro e fora dos limites do império romano, a religião (ainda que
limitada a funções culturais e aberta à pacífica convivência com os cultos de proveniência
estrangeira) mantinha uma união inseparável com as características étnicas e nacionais, e era
muito lógico que o chefe do Estado exercesse a suprema autoridade religiosa. Essa mentalidade
é eficazmente expressa no livro de Rute: 'o teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu
Deus' (1,16). Uma das causas principais da hostilidade contra o cristianismo foi exatamente a
recusa em reconhecer o imperador como chefe da religião. Contra essas ingerências do Estado em
questões religiosas, contra a invasão da autoridade laica no âmbito das consciências (que,
pelo menos dentro de certos limites e sob certo ponto de vista, se pode designar com o termo
de intolerância), os apologetas e os primeiros escritores cristãos reivindicaram os direitos
da pessoa humana e a sua liberdade de consciência (ainda que seja difícil julgar se eles
defendiam essa liberdade para todos ou somente para quem estivesse com a verdade objetiva), e
limitaram dentro de uma área bem mais restrita do que antes os direitos e as competências do
Estado.
O edito de Milão, de 313, reconheceu oficialmente esse princípio: 'decidimos [...] dar aos
cristãos e a todos livre faculdade de seguir a religião preferida, e [...] julgamos que com
princípio justo e muito razoável se devia decidir não negar essa liberdade a ninguém, quer
siga a religião cristã, quer uma outra para ele melhor...'. O cristianismo foi o primeiro,
portanto, a afirmar vitoriosamente a liberdade de consciência e a genuína laicidade do Estado,
negando a este o direito de impor uma religião e de vincular as consciências, ou, em outros
termos, foi o primeiro a introduzir o dualismo entre religião e política, entre Estado e
Igreja.
Logo, porém, a tendência anterior se reafirmou. Durante a controvérsia ariana, os imperadores
impuseram, mais de uma vez, a sua vontade em questões religiosas, obrigando aceitar fórmulas
dogmáticas, ora num sentido, ora em outro.
O edito de Tessalônica, em 380, não concede mais liberdade de religião, mas impõe a todos
professar o cristianismo, interpondo a autoridade civil em defesa da ortodoxia, representada pelo
bispo de Roma, Dâmaso: '... todos os outros [...], dementes e insensatos, sofrendo a infâmia
da heresia, [...] devem ser punidos não somente pela vingança divina, mas também pelo poder
que a vontade celeste nos concedeu'. Em 385, o imperador Máximo condena à morte Prisciliano,
fundador de uma seita herética difundida na Espanha: é a primeira sentença de morte para um
caso de heresia, pronunciada por iniciativa da autoridade civil e não por iniciativa da
Igreja, pois, pelo contrário, quase todo o episcopado contemporâneo concordou com Ambrósio em
protestar contra essa medida até então inusitada e contrária à mansidão evangélica. A demorada
luta contra os donatistas na África foi para Agostinho ocasião de um aprofundamento da
questão: num primeiro momento, ele condenou o uso da força para defesa da verdade, enquanto
mais tarde, diante dos massacres e das pilhagens dos donatistas, e sobretudo diante da
obstinação dos hereges, admitiu a coerção, útil para afastar os obstáculos postos pela má
vontade, que impediam a verdade de brilhar com toda sua luz.
Em 529, Justiniano ordenou a todos os súditos do imperador que se fizessem cristãos, sob pena
de confisco dos bens e de perda dos direitos civis: somente na Ásia Menor cerca de 70.000
pagãos foram por isso batizados. Nem todos na era compartilhavam dessa mentalidade, a qual
constituía uma perigosa volta para trás em relação às posições conquistadas
em 313, e Teodorico, rei dos Ostrogodos, ariano, concedia aos judeus, nessa mesma era, a
liberdade de culto com estas palavras: 'Religionem imperare non possumus, quia nemo cogitur ut
credat invitus'. Em seu todo, o pensamento cristão dos primeiros séculos oscila entre dois
pólos opostos: se os apologistas defendem a liberdade de consciência, sobretudo quando o
poder imperial ameaça a Igreja, antes ou depois de 313, outros invocam o apoio do braço
secular não somente para a administração temporal do Estado cristão, mas para a repressão da
heresia. Aparece desde então a ambigüidade que a seguir será muitas vezes recriminada nos
pensadores cristãos, ou seja, de querer a liberdade quando estão em minoria, de negá-la aos
outros quando conquistam a maioria" (Giacomo Martina, História da Igreja - de Lutero a
nossos dias, vol. II - A era do absolutismo, Edições Loyola, pp. 147-151).
Glossário
Uma das ferramentas prediletas dos opositores da Igreja de Cristo é esta: a Inquisição. Para
eles, o fato de ter existido um tribunal eclesiástico que julgava, torturava e matava hereges
é a evidência incontestável da falibilidade da Igreja e da sua traição ao Evangelho. "O
espetáculo de monges presidindo a terríveis suplícios para arrancarem confissões a acusados já
exaustos é, com efeito, daqueles que mais revoltam" (Daniel-Rops, História da Igreja de
Cristo, vol. III, A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, p. 610). Como responder a
estas acusações? Como fazer uma apologia diante de fatos historicamente incontestáveis? Como
católicos, qual deve ser a nossa atitude quando nos confrontamos com o problema da
Inquisição?
III - A busca e a supressão da heresia antes da Inquisição