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Diz-se por vezes que a Igreja Católica teria proibido aos fiéis a leitura da Bíblia. A
afirmação, porém, costuma ser vaga ou destituída de documentos de modo que não se sabe até que
ponto possa ser verídica. Eis por que se impõe o estudo deste assunto:
1. Até o século XVI
Por toda a Antigüidade o Livro Sagrado era recomendado à leitura dos cristãos. São Jerônimo
(+420) é um dos mestres que melhor representam esta atitude pastoral, escrevendo a Eustóquio,
filha de Santa Paula:
Na Idade Média apareceram correntes dualistas e heréticas que se valiam da Bíblia para apoiar
suas concepções errôneas. Tal foi, por exemplo, o caso dos cátaros, avessos à matéria como se
esta fosse, por si mesma, má. Em conseqüência, o Concílio de Tolosa (França) em 1229 proibiu o
uso de traduções vernáculas da Bíblia. Esta disposição foi retirada pelo Concílio de Tarragona
(Espanha) em 1233. A mesma proibição aparece num decreto do rei Jaime I da Espanha em 1235:
"Ninguém possua em vernáculo os livros do Antigo e do Novo Testamento".
No século anterior, os Valdenses (de Pedro Valdo, Pierre de Vaux) apoiavam-se na Bíblia
traduzida para o provençal a fim de negar o purgatório, o culto dos Santos, o serviço militar,
o juramento...; só admitiam os sacramentos do Batismo, da Penitência e da Eucaristia.
No século XIV, John Wichef (1320-84) em Oxford estabeleceu como única norma de fé a Escritura
traduzida para o inglês; interpretando subjetivamente a Bíblia, negava a autoridade do Papa,
a confissão auricular, a transubstanciação eucarística, o culto dos Santos...; provocava assim
grande agitação entre os fiéis. Por isso o Sínodo de Oxford (1408) proibiu a publicação e a
leitura de textos vernáculos da Bíblia não autorizados. O mesmo se deu no Sínodo dos Bispos
alemães em Mogúncia (1485).
2. Do século XVI ao século XIX
As novas idéias que surgiram no decorrer da Idade Média, chegaram ao seu auge na Reforma
protestante no século XVI. Esta proclamou a Bíblia como única autoridade decisiva em matéria
de fé e de costumes; cada crente é livre para interpretá-la segundo "o livre exame" ou a sua
intuição subjetiva. Tais princípios haviam de esfacelar o Cristianismo; logo três reformadores
(Lutero, Zvínglio e Calvino) fundaram três novas modalidades de Cristianismo no século XVI; por
sua vez, as comunidades reformadas foram reformadas e reformadas sucessivamente, derivando-se
deste processo centenas de denominações protestantes independentes umas das outras, porque
dependentes da inspiração subjetiva do respectivo fundador. Ademais os princípios da Reforma
protestante fazem violência à própria Escritura, porque a desligam da Tradição oral, que lhe é
anterior e sem a qual a Bíblia não pode ser devidamente entendida; conforme II Tessalonisense
2,5s.15; II Tessalonisense 3,6...
Eis por que o Concílio de Trento (1543-65) tomou medidas que preservassem os fiéis católicos
dos males acarretados pelas proposições dos reformadores; assim:
A Sociedade Bíblica de Londres, combatida na Inglaterra por estar publicando os livros
deuterocanônicos, insistiu em seu procedimento e, para assegurá-lo, fundou a "Sociedade
Bíblica Francesa e Estrangeira", que continuou a editar os sete livros impugnados pelos
protestantes, mas que finalmente cedeu às pressões contrárias.
No tocante às traduções da Bíblia, o Papa Paulo V em 1564 aprovou as seguintes normas:
No século XIX multiplicaram-se as Sociedades Bíblicas protestantes, cuja finalidade era
difundir a Bíblia em traduções vernáculas. Compreende-se que, na base dos princípios adotados
no século XVI, a Igreja se opusesse a tais iniciativas, consideradas como perigosas para a
reta fé.
A primeira advertência deu-se em 1816. Ao arcebispo católico que recomendava aos seus fiéis a
Sociedade Bíblica fundada em São Peterburgo na Rússia, escrevia o Papa Pio VII:
Se não poucas vezes lamentamos que tenham falhado na interpretação das Escrituras homens
piedosos e sábios, como não deveremos recear grandes riscos se entregarem as Escrituras
traduzidas em vernáculo ao povo ignorante, que, na maioria dos casos, carece de discernimento
e julga com temeridade?" (D. S. Enquirídio 2710s).
Em 1844 o Papa Gregório XVI escrevia:
Declaração semelhante foi proferida pelo Papa Pio IX em 1846. Tal posição da Igreja manteve-se
até o começo do século XX. Era motivada por circunstâncias contingentes e se revestia de
caráter disciplinar, não dogmático. Era, pois, reformável desde que desaparecessem as razões
que inspiraram as apreensões decorrentes da difusão do texto sagrado em língua vernácula. Ora,
realmente no século XX foi-se alterando o contexto histórico. O Papa São Pio X (1903-14) deu
início a uma renovação da piedade da Igreja, que fora profundamente marcada pela réplica ao
protestantismo, ao jansenismo e a heresias dos últimos séculos; a atitude defensiva ou
preservadora não podia deixar de empobrecer a piedade católica; fora necessária, mas não se
podia manter por muito tempo; nem havia no século XX razões para mantê-la. A volta às fontes,
que deve sua inspiração remota a São Pio X, compreenderia a restauração do espírito litúrgico,
o recurso freqüente à Santa Escritura e a renovação da catequese. Conscientes disto, entramos
na história do século XX.
3. No século XX
Em 1920, o Papa Bento XV quis comemorar o 15º centenário da morte de São Jerônimo publicando a
encíclica Spiritus Paraclitus, na qual escreveu:
Quanto às disposições para bem aproveitar a leitura bíblica, o Pontífice as resumia nestes
termos:
Compete aos sagrados pastores, depositários da doutrina apostólica, instruir oportunamente os
fiéis que lhes foram confiados, no reto uso dos livros divinos, de modo particular do Novo
Testamento, e sobretudo nos Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que
devem ser acompanhados de notas necessárias e verdadeiramente suficientes para que os filhos
da Igreja se familiarizem de modo seguro e útil com a Sagrada Escritura e se embebam do seu
Espírito" (nº 25).
Com se vê, não poderia ser mais favorável ao uso da Sagrada Escritura a atitude da Igreja
contemporânea. As palavras de São Jerônimo (+420) tornaram-se norma da autoridade
eclesiástica. As restrições foram impostas não ao texto latino, mas às traduções vernáculas,
em virtude de fatores contingentes; a Igreja, como Mãe e Mestra, sente o dever de zelar pela
conservação incólume da fé a Ela entregue por Cristo e ameaçada pelas interpretações pessoais
de inovadores da pregação; eis por que lhe pareceu oportuno reservar o uso da Bíblia a pessoas
de sólida formação cristã nos séculos em que as heresias pretendiam apoiar no texto sagrado as
suas proposições perturbadoras. É, pois, para desejar que os estudiosos entendam os porquês da
atitude da Igreja no século XVI-XIX e hoje se sintam convidados a difundir a Sagrada Escritura
em comunhão com a Igreja e a Santa Tradição.
"Lê com freqüência e aprende o melhor que possas. Que o sono te encontre com o livro
nas mãos e que a página sagrada acolha o teu rosto vencido pelo sono" (PL 22,404).
O Concílio de Trento definiu mais uma vez o Cânon Bíblico incluindo o deuterocanônicos (Tobias,
Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, I e II Macabeus), como já o tinham feito os Concílios
do século IV. A prova de que o Concílio nada inovou é que o próprio Lutero traduziu os
deuterocanônicos para o alemão; com efeito, na sua edição da Bíblia datada de 1534 encontra-se
o texto dos sete deuterocanônicos, assim como os fragmentos de Ester 10,4-16,24, de Daniel
3,24-90; 13,1-14,42 e ainda a "Oração de Manasses" (Oração que a Tradição cristã não incluiu no
seu cânon). A persistência desses livros nas edições protestantes bem mostra que não foi o
Concílio de Trento que os introduziu no catálogo bíblico, mas Lutero e a Tradição protestante
os receberam na Tradição cristã medieval e antiga ou mesmo dos judeus de Alexandria. Foi
somente no século XIX que as Sociedades Bíblicas protestantes deixaram de incluir nos seus
exemplares da Bíblia os livros deuterocanônicos.
Estas disposições hão de ser entendidas dentro das circunstâncias históricas em que foram
promulgadas; visavam à preservação da fé ameaçada pelo uso capcioso da Bíblia no século XVI.
Tiveram por conseqüência a pouca difusão do texto sagrado entre os católicos e a falta de
contato da piedade posterior com as suas fontes bíblicas; tornaram-se, por isto, ponto
nevrálgico na disciplina da Igreja, de tal modo que os jansenistas dos século XVII/XVIII as
impugnaram."A Igreja Romana, segundo as prescrições do Concílio de Trento, reconhece a edição
Vulgata da Bíblia e rejeita traduções feitas para outros idiomas, se não estiverem acompanhados
de notas provenientes dos escritos dos Padres e dos doutores católicos, a fim de que tão grande
tesouro não seja exposto às corruptelas das novidades...
"Não ignorais quanta diligência e sabedoria são necessárias para se traduzir fielmente
a Palavra de Deus; em conseqüência, nada há de mais fácil do que nas traduções vernáculas,
multiplicadas pelas Sociedades Bíblicas, se introduzirem erros gravíssimos, seja por
imprudência, seja por fraude de tantos tradutores; tais erros, aliás, permanecem ocultos, para
a perdição de muitos, dada a multidão e a variedade de tais Sociedades. Às Sociedades Bíblicas
pouco ou nada interessa o fato de que os homens que lêem a Bíblia em vernáculo, caiam em um ou
outro erro; mais lhes importa que acostumem aos poucos a exercer o livre exame a respeito do
sentido das Escrituras e a menosprezar as tradições divinas contidas na doutrina dos Padres e
guardadas na Igreja católica, repudiando assim o próprio magistério da Igreja" (D. S.
Enquirídio nº 2771).
"Pelo que Nos toca, Veneráveis Irmãos, à imitação de São Jerônimo jamais deixaremos de
exortar todos os fiéis cristãos a que leiam todos os dias principalmente os Santos Evangelhos
de Nosso Senhor, os Atos e as epístolas dos Apóstolos, tratando de convertê-los em seiva do
seu espírito e em sangue de suas veias" (Enquirídio Bíblico nº 477).
"Todo aquele que se aproxima da Bíblia com espírito piedoso, fé firme, ânimo humilde e
sincero desejo de aproveitar, nela encontrará e poderá degustar o pão que desce dos céus".
A atitude de Bento XV representava algo de novo na Igreja posterior ao Concílio de Trento, mas
estava na linha de conduta pastoral do Papa anterior, São Pio X. Pouco mais de dois decênios
decorridos, o Papa Pio XII, na sua encíclica Divino Afflante Spiritu, recomendava por sua vez
a difusão da Bíblia entre os fiéis: "Os prelados favoreçam e prestem ajuda às piedosas associações cuja finalidade é
difundir entre os fiéis os exemplares das Sagradas Letras, principalmente dos Evangelhos, e
procurem que nas famílias cristãs se faça ordenada e santamente a leitura diária das mesmas;
recomendem eficazmente a Santa Escritura traduzida para as línguas vernáculas com a aprovação
da Igreja"
A orientação dos Pontífices foi assumida pelo Concílio do Vaticano II (1962-65), especialmente
em sua Constituição Dei Verbum, c.6, que trata da Sagrada Escritura na vida da Igreja: um
forte estímulo aí é dado à frequentação cotidiana da Escritura por parte dos fiéis, como
também à difusão do texto sagrado em línguas vernáculas:
"Este Sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos,
a que aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Filipenses 3,8) mediante a leitura
freqüente das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo.
Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da Sagrada Liturgia, rica
de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão
espalhando..., com a aprovação e o estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, de que
a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o
colóquio entre Deus e o homem; com Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os
divinos oráculos.