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A celebração de Finados nos coloca face a face com a morte, fato inelutável,
e que é anunciado exatamente com o alvorecer da vida. Esses extremos se
tocam. A realidade inevitável, que surge com o nascimento, é de uma grande
riqueza e comporta posições díspares. Contudo, absolutamente ninguém a ela
escapa. Traz consigo beleza que permanece para a eternidade ou o drama que
advém a quem, sem a veste nupcial, é chamado a juízo. Ela se transforma em
felicidade que jamais nos poderá ser tirada ou simplesmente se perde na
incredulidade. É alvo de louvores ou de maldição, de um desespero sem
limites.
A data da comemoração de todos os mortos nos leva a recordar os que nos
anteciparam nos umbrais da eternidade. Há muito que aprender dos que já
morreram. A celebração litúrgica traz consigo uma fecunda reflexão sobre o
fim da existência, com benéficas repercussões sobre o tempo que nos resta
viver, antes do encontro com a Morte.
Há uma natural reação, pois a criatura foi feita por Deus para chegar ao
seio do Pai sem passar por essa porta. Uma herança que perdemos por culpa
dos nossos primeiros pais e que foi resgatada em sua essência, mas não em
toda a extensão, pelo Senhor Jesus. A comunicação foi restabelecida pela
Redenção através do Sacrifício da Cruz, no qual foi oferecida em holocausto
a vida do próprio Jesus. Assim, em vez de maldizer esta circunstância para o
encontro definitivo com Deus, agradecemos ao Senhor a certeza de alcançar,
mesmo nessas condições, a salvação eterna. Em vez de maldizer, louvamos a
misericórdia divina.
A nossa triste condição de sujeitos de modo inapelável ao império da morte,
transforma-se em uma rica fonte de benefícios nesta e na outra vida. O Dia
de Finados, ao evocar os que já se foram, com a saudade lembra ao nosso
coração a transitoriedade dos valores terrenos; nós redimensionamos a
atração que sobre nós exercem as paixões pecaminosas, a tendência ao que é
proibido pela Lei de Deus. O pensamento da fragilidade da existência terrena
possui extraordinário efeito altamente salutar à prática das virtudes. Por
isso, os mestres da vida espiritual recomendavam e recomendam a meditação
sobre os Novíssimos, a Morte e os outros três: Juízo, Inferno e Paraíso.
Mesmo em matéria alheia à vida religiosa, é sempre fecundo o pensamento do
nosso fim. Ao considerar que tudo passa e nada levamos daqui a não ser o
merecimento de nossas boas obras, certamente o comportamento muda, e para
melhor. Não é necessário ser alguém de Fé viva, mas simplesmente alguém de
bom senso. Evidentemente, percebemos que grande influência terá o homem
público em todas as suas ações, quando ele exerce suas funções à luz dos
bens terrenos tão fugazes.
O Dia de Finados, no Rio de Janeiro, nos mostra algo de particularmente
doloroso, intimamente relacionado com a morte: o sepultamento dos
indigentes.
Desde 1995, na primeira segunda-feira de cada mês, na Capela do Ossuário da
Catedral, é celebrada a Santa Missa pelos nossos irmãos anônimos, enterrados
em uma área do Cemitério de Santa Cruz. Muitos deles são desconhecidos: e em
vez de nome, levam apenas um número. No próximo dia 2 de novembro, logo após
a Missa que celebro na quadra do Caju, onde dormem seu último sono os
sacerdotes do clero carioca, com a qual dou início às missas em nossos
cemitérios, irei a Santa Cruz celebrar o Santo Sacrifício em sufrágio desses
nossos irmãos pobres e anônimos. Em 1999 foram celebradas, nesse dia, 121
missas nas dezessete necrópolis do Rio.
Para se ter uma idéia da gravidade do assunto, de janeiro a agosto deste ano
foram sepultados ali, nessas condições, 692 cadáveres, sendo que sem
identificação, 563. A cova tem apenas um número. Do total, 79 eram mulheres
e quatro menores.
As condições do sepultamento são precárias. Pairam as interrogações sobre
desvios de cadáveres, mesmo a título de estudo. No entanto, por questão de
justiça, reconheço as rápidas providências tomadas pela Santa Casa da
Misericórdia, no que se refere às que lhe competem, nessa matéria.
Devo sublinhar que uma pessoa, de qualquer classe social e não apenas os
mais pobres, pode ser transformada em indigente, caso morra de causas
violentas. São mortos anônimos, cidadãos que simplesmente desaparecem do
cenário da vida, sem nome. E a grande maioria vinda das quase quarenta
Delegacias da cidade do Rio de Janeiro, tem como "causa mortis": perfurações
por arma de fogo, ação contundente, ação perfuro-contundente, atropelamento
e estrangulamento, arma branca, esmagamento do crânio... E aí fica a
pergunta: os autores de tanta violência foram descobertos e punidos, ou pelo
menos, qual é o andamento dos inquéritos? A Arquidiocese vai buscar lançar
alguma luz sobre o problema.
Esses nossos irmãos são aqui lembrados pelo Pastor e por toda a comunidade,
para que cada um assuma a sua responsabilidade na aplicação dos Direitos
Humanos. Rico ou pobre, todos são iguais diante da morte. Por isso, o pároco
de Santa Cruz faz a encomendação, durante o ano, desses excluídos que um dia
trouxeram no corpo a imagem de Deus, muitas vezes deformada pela miséria.
Embora reste apenas um número, por esse nosso irmão é rezada uma Missa e
seus restos mortais descem a uma sepultura - ou arremedo de sepultura - com
as mesmas orações que acompanham os outros, mais dotados de favores
materiais.
O Dia dos Mortos não nos recorda uma derrota, mas a vitória nas palavras de
São Paulo (1Cor 15,54ss): "Quando este corpo mortal estiver revestido da
imortalidade, então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi tragada
pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Graças sejam dadas a Deus,
que nos dá a vitória, por Nosso Senhor Jesus Cristo".