»» Artigos Diversos

SALVAÇÃO ETERNA
Autor: d. Eugênio Sales
Fonte: Jornal "O Dia"
Transmissão: Antonio Xisto Arruda

A celebração de Finados nos coloca face a face com a morte, fato inelutável, e que é anunciado exatamente com o alvorecer da vida. Esses extremos se tocam. A realidade inevitável, que surge com o nascimento, é de uma grande riqueza e comporta posições díspares. Contudo, absolutamente ninguém a ela escapa. Traz consigo beleza que permanece para a eternidade ou o drama que advém a quem, sem a veste nupcial, é chamado a juízo. Ela se transforma em felicidade que jamais nos poderá ser tirada ou simplesmente se perde na incredulidade. É alvo de louvores ou de maldição, de um desespero sem limites.

A data da comemoração de todos os mortos nos leva a recordar os que nos anteciparam nos umbrais da eternidade. Há muito que aprender dos que já morreram. A celebração litúrgica traz consigo uma fecunda reflexão sobre o fim da existência, com benéficas repercussões sobre o tempo que nos resta viver, antes do encontro com a Morte.

Há uma natural reação, pois a criatura foi feita por Deus para chegar ao seio do Pai sem passar por essa porta. Uma herança que perdemos por culpa dos nossos primeiros pais e que foi resgatada em sua essência, mas não em toda a extensão, pelo Senhor Jesus. A comunicação foi restabelecida pela Redenção através do Sacrifício da Cruz, no qual foi oferecida em holocausto a vida do próprio Jesus. Assim, em vez de maldizer esta circunstância para o encontro definitivo com Deus, agradecemos ao Senhor a certeza de alcançar, mesmo nessas condições, a salvação eterna. Em vez de maldizer, louvamos a misericórdia divina.

A nossa triste condição de sujeitos de modo inapelável ao império da morte, transforma-se em uma rica fonte de benefícios nesta e na outra vida. O Dia de Finados, ao evocar os que já se foram, com a saudade lembra ao nosso coração a transitoriedade dos valores terrenos; nós redimensionamos a atração que sobre nós exercem as paixões pecaminosas, a tendência ao que é proibido pela Lei de Deus. O pensamento da fragilidade da existência terrena possui extraordinário efeito altamente salutar à prática das virtudes. Por isso, os mestres da vida espiritual recomendavam e recomendam a meditação sobre os Novíssimos, a Morte e os outros três: Juízo, Inferno e Paraíso.

Mesmo em matéria alheia à vida religiosa, é sempre fecundo o pensamento do nosso fim. Ao considerar que tudo passa e nada levamos daqui a não ser o merecimento de nossas boas obras, certamente o comportamento muda, e para melhor. Não é necessário ser alguém de Fé viva, mas simplesmente alguém de bom senso. Evidentemente, percebemos que grande influência terá o homem público em todas as suas ações, quando ele exerce suas funções à luz dos bens terrenos tão fugazes.

O Dia de Finados, no Rio de Janeiro, nos mostra algo de particularmente doloroso, intimamente relacionado com a morte: o sepultamento dos indigentes.

Desde 1995, na primeira segunda-feira de cada mês, na Capela do Ossuário da Catedral, é celebrada a Santa Missa pelos nossos irmãos anônimos, enterrados em uma área do Cemitério de Santa Cruz. Muitos deles são desconhecidos: e em vez de nome, levam apenas um número. No próximo dia 2 de novembro, logo após a Missa que celebro na quadra do Caju, onde dormem seu último sono os sacerdotes do clero carioca, com a qual dou início às missas em nossos cemitérios, irei a Santa Cruz celebrar o Santo Sacrifício em sufrágio desses nossos irmãos pobres e anônimos. Em 1999 foram celebradas, nesse dia, 121 missas nas dezessete necrópolis do Rio.

Para se ter uma idéia da gravidade do assunto, de janeiro a agosto deste ano foram sepultados ali, nessas condições, 692 cadáveres, sendo que sem identificação, 563. A cova tem apenas um número. Do total, 79 eram mulheres e quatro menores.

As condições do sepultamento são precárias. Pairam as interrogações sobre desvios de cadáveres, mesmo a título de estudo. No entanto, por questão de justiça, reconheço as rápidas providências tomadas pela Santa Casa da Misericórdia, no que se refere às que lhe competem, nessa matéria.

Devo sublinhar que uma pessoa, de qualquer classe social e não apenas os mais pobres, pode ser transformada em indigente, caso morra de causas violentas. São mortos anônimos, cidadãos que simplesmente desaparecem do cenário da vida, sem nome. E a grande maioria vinda das quase quarenta Delegacias da cidade do Rio de Janeiro, tem como "causa mortis": perfurações por arma de fogo, ação contundente, ação perfuro-contundente, atropelamento e estrangulamento, arma branca, esmagamento do crânio... E aí fica a pergunta: os autores de tanta violência foram descobertos e punidos, ou pelo menos, qual é o andamento dos inquéritos? A Arquidiocese vai buscar lançar alguma luz sobre o problema.

Esses nossos irmãos são aqui lembrados pelo Pastor e por toda a comunidade, para que cada um assuma a sua responsabilidade na aplicação dos Direitos Humanos. Rico ou pobre, todos são iguais diante da morte. Por isso, o pároco de Santa Cruz faz a encomendação, durante o ano, desses excluídos que um dia trouxeram no corpo a imagem de Deus, muitas vezes deformada pela miséria. Embora reste apenas um número, por esse nosso irmão é rezada uma Missa e seus restos mortais descem a uma sepultura - ou arremedo de sepultura - com as mesmas orações que acompanham os outros, mais dotados de favores materiais.

O Dia dos Mortos não nos recorda uma derrota, mas a vitória nas palavras de São Paulo (1Cor 15,54ss): "Quando este corpo mortal estiver revestido da imortalidade, então se cumprirá a palavra da Escritura: A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória, por Nosso Senhor Jesus Cristo".