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O SAPATEIRO DE BURGOS
Adaptação

Autora Original: Íside M. Bonini Fonte: Lista "Tradição Católica"
Transmissão: Carlos Melo

No século XVI, a Virgem de Pilar realiza no Natal um portentoso milagre, que se repete depois, à vista da população da antiga e bela cidade espanhola.


A Espanha foi desde sempre um país que brilhou entre as principais nações católicas do mundo pela sua fidelidade à Igreja, pelo fervor religioso de seu povo e que legou, para edificação da posteridade, belíssimos exemplos de espiritualidade ainda viva na literatura e no seu rico folclore nacional.

A lenda de Natal aqui descrita data do século XVI e é muito divulgada além das fronteiras espanholas. Vamos revivê-la...

Mendigo triste e digno

Na cidade de Burgos, vivia um sapateiro chamado Estebam, tão pobre como a senhora pobreza. Homem honesto, trabalhador, muito piedoso, mas de saúde precária, enfraquecido pela falta de alimentação conveniente, não conseguindo produzir o suficiente para sair da miséria.

Tendo enviuvado, ficou com três filhos para criar; o que ganhava, porém, não chegava para o sustento de todos. Então, uma parente sua, também pobre mas muito caridosa, prontificou-se a cuidar das duas meninas levando-as consigo à aldeia onde morava, a fim de criá-las e educá-las. O menino, Juan, tendo apenas cinco anos de idade, ficou em companhia do pai; mas ele também constituía um peso naquela casa onde faltava até o estritamente necessário. Entretanto, apesar da pouca idade, procurava ajudar o pai nos afazeres diários; coitado, era tão pequeno e franzino que seu auxílio não valia muito, mas ao pai representava a única felicidade tê-lo junto e poder contar com seu carinho.

Naquele ano, Burgos estava sendo duramente castigada, pois há muito não se vira inverno tão rigoroso. Em conseqüência, paralisaram os trabalhos, a gente não se animava a sair de casa, os que tinham afazeres na rua usavam botas especiais, muito resistentes. Assim sendo, o sapateiro não tinha serviço e a miséria tornou-se ainda mais cruel no pobre tugúrio totalmente desprovido de conforto. Aquele homem sofredor, como autêntico espanhol brioso, sofria calado, sem revelar aos outros suas angústias. Ninguém jamais ouviu de seus lábios a menor queixa, um pedido de auxílio, ou qualquer palavra de revolta. Silencioso, triste e digno, confiava na Providência.

A Virgem sorri

No dia 25 de dezembro, um pressentimento cheio de consolo tomou a alma do sapateiro: tudo se resolveria. Sem saber bem porque, agasalhou o filho o melhor que pôde, e segurando-o pela mão saíram a enfrentar a inclemência do tempo, caminhando por ruas desertas, palmilhando o lodaçal escorregadio, castanholando os dentes de frio, cada qual mergulhado em seus próprios pensamentos. O filho, porém, estava contente por se ter livrado da longa solidão no quarto gelado e poder olhar as coisa interessantes da cidade engalanada para o Natal.

Com as lágrimas caindo-lhe uma a uma dos olhos, o velho caminhava sem ver onde pisava e por onde andava. Exausto, cambaleando de cansaço, batendo os dentes de frio, viu-se, sem saber como, em frente à Catedral. Ali dentro, pensou ele, pelo menos está-se agasalhado e é possível descansar um pouco. Seria melhor entrar.

Entrou. As solenidades da tarde haviam terminado há algum tempo. O povo já se recolhera a suas casas para aconchegar-se ao fogo, e gozar em família as últimas bênçãos daquele dia santificado entre todos. O imenso e esplêndido templo estava deserto. Diante do Santíssimo sacramento tremendo a lamparina quebrando a obscuridade reinante. Ao lado direito da nave encontrava-se a capela dedicada a Nossa Senhora del Pilar, na qual sobressaía a imagem da Virgem, ataviada com suntuosa roupagem guarnecida de rendas e bordados de ouro, trazendo na cabeça riquíssimo diadema cravejado de diamantes e outras pedras preciosas, ofertado pela rainha Isabel a Católica, que o mandara confeccionar por um célebre artífice com o primeiro ouro levado das Américas por Cristóvão Colombo.

Esteban, menos que todos invejava aquela riqueza, pois desde pequeno sempre tivera pela Mãe do Céu uma devoção profunda e sentia um prazer inefável ao contemplá-La. Nesse dia, portanto, menos acabrunhado pela angústia, volveu os olhos para a rica imagem, ansioso por desafogar as mágoas. Mentalmente, sem querer, considerava o valor imenso daqueles diamantes, um só dos quais seria suficiente para alimentar o filho durante bastante tempo. Mas não os cobiçava. Seu coração abria-se doloroso, confiando-se totalmente à Virgem Santa.

- Oh! Boa e santa Mãe, - dizia - em nome de teu Filho que tens nos braços, agasalhado e alimentado, tem pena do meu pobre Juan! Olha para ele, vê como está fraco e maltrapilho, tiritando de frio, com os sapatos já gastos e sem conserto...

Sapatos. Por força do hábito, como bom sapateiro fitou os pés de Jesus, murmurando encantado:

- Que lindas sapatilhas! Como estão bem trabalhadas, foi certamente um sapateiro muito hábil quem os confeccionou! Oh, com que gosto colocou as pérolas e como ressaltou bem o diamante no centro. Eu jamais teria feito trabalho assim caprichado. Como são lindas, e ricas!

Assim embevecido ante a obra de arte, quase esqueceu o filho deitado no tapete fofo e quente que cobria os degraus do altar. Sentindo o calor agradável a envolvê-lo, o aconchego gostoso, o menino dormia tranqüilamente.

Pensando na saúde sempre mais precária, que talvez não lhe permitisse viver o bastante para criar os filhos, Esteban começou a chorar.

De repente, quando erguia o olhar suplicante, viu a imagem da Virgem animar-se. Estremeceu de susto. Estaria perdendo o uso da razão por causa dos sofrimentos? Não, não. A Virgem sorria de fato. Olhava para ele com extrema bondade, com pena. Enquanto isso, o Menino Jesus descalçava o pezinho e, graciosamente, atirou-lhe uma das sapatilhas. Como um presente.

Esteban, na sua grande simplicidade, apertou carinhosamente o rico presente e com gratidão infinita proferiu os mais cálidos agradecimentos. Em seguida, muito alvoroçado, despertou o filho e com o coração aliviado das angústias, regressou rapidamente à casa.

Não tendo jamais praticado qualquer ação reprovável ou desonesta, Esteban desconhecia a malícia, os escrúpulos da intranqüilidade de consciência; assim, pois, saiu calmamente à procura de um joalheiro para vender o diamante que havia destacado da sapatilha.

Um joalheiro, ao qual o sapateiro procurou em sua casa, para tentar obter algum dinheiro ainda naquele dia, tal a sua necessidade, quando viu o diamante, de tanto valor, nas mãos do pobre homem maltrapilho, desconfiou tratar-se de roubo. Perguntou de onde provinha, como o obtivera e mil coisas mais. Esteban, porém, achou melhor não revelar a procedência, temendo que o comerciante não acreditasse num milagre da Virgem. A história verdadeira ele só contaria ao Prior do convento, seu amigo, assim que este regressasse da viagem costumeira em visita a outros conventos vizinhos. Agora só queria o dinheiro para as suas necessidades. O joalheiro, perplexo e desconfiado, entregou-lhe certa quantia por conta do negócio, dizendo-lhe que voltasse no dia seguinte; a jóia precisava ser devidamente avaliada e só um colega, bom entendedor, poderia estipular o valor justo. Esteban, longe de qualquer suspeita, concordou. Recebeu a pequena quantia e, com ela, adquiriu alimentos e roupas, e em seguida voltou para casa radiante de felicidade. Até que enfim o seu querido Juan ia ter no Natal um jantar substancioso e uns agasalhos.

Fora o sorriso da Santíssima Virgem que obtivera para o sapateiro e seu filho aquela graça natalina.

Dura provação

O joalheiro, porém, assim que o estranho vendedor do diamante se afastou, foi diretamente comunicar o fato à polícia, querendo livrar-se o quanto antes da responsabilidade de uma aquisição ilícita.

No dia seguinte já não era Natal! E enquanto Esteban e Juan saboreavam felizes a mudança ocorrida com o dinheiro entrado em casa, surgiram dois esbirros e puseram-se a vasculhar cantos e recantos. Não lhes foi difícil encontrar a sapatilha, que Esteban tinha colocado como uma relíquia à cabeceira da cama de Juan. Indiferentes aos protestos, os esbirros algemaram o infeliz sapateiro e conduziram-no à presença do Juiz, o qual mandou logo instaurar o devido processo por crime de roubo. O réu ficaria na cadeia aguardando a sentença.

Esteban, aflito, atormentado com a sorte do filho, pediu e obteve a graça de ser ele entregue aos cuidados do senhor Prior, até que tudo se resolvesse. Mais tranqüilo, deixou-se estar na prisão sem temor algum.

O processo chamou a atenção do povo em geral. Ninguém acreditava em coisa tão absurda. O sapateiro era por demais conhecido e ninguém duvidava da sua integridade moral. Todavia, por mais que jurasse a sua inocência, afirmando que o sapatinho lhe fora dado pelo Menino Jesus da Virgem de Pilar, ninguém acreditava. Foi submetido a terríveis torturas para confessar o roubo; a princípio Esteban resistiu, mas os sofrimentos atrozes acabaram por anular-lhe a consciência e ele confessou um crime não cometido, só para terminar com aquela tortura insuportável.

Na Espanha do século XVI, punia-se com a morte qualquer sacrilégio contra as coisas sagradas, sendo, pois, Esteban condenado à forca. A sentença emocionou a cidade inteira, onde o bom sapateiro gozava a justa fama de cidadão honrado e exemplo de piedade cristã.

Antes da execução, exigia a lei que o condenado fizesse confissão pública do crime cometido. Por isso, vestindo o camisolão que então usavam os réus, com a corda ao pescoço e uma vela na mão, Esteban foi retirado da prisão e conduzido ao local do furto; foi obrigado a atravessar grande parte da cidade, escoltado por soldados e pela multidão de povo que aumentava a cada esquina. Padres e coroinhas carregando a cruz encabeçavam a dolorosa procissão; logo após vinham os magistrados e a seguir o prisioneiro entre um piquete de soldados e a população quase toda da cidade.

Enquanto isto se passava nas ruas, Juan, acompanhado pelo Prior do convento estava na Catedral, ajoelhado num canto escuro da capela de Nossa Senhora e ambos rezavam com o maior fervor. O Prior, extremamente emocionado, acariciava a cabeça do infeliz menino, murmurando palavras de carinho e de conforto, falando do poder misericordioso da Virgem padroeira e sugerindo-lhe as preces e súplicas em favor do pai.

Eis que o ruído da grande massa popular chegou até eles. A multidão aproximava-se como ondas impetuosas e logo, pelas portas escancaradas, invadiu o sagrado recinto. Esteban foi quase arrastado ante a imagem da Virgem e intimado a fazer a pública confissão, a penitenciar-se do crime que nunca cometera. Ajoelhado ante a Virgem, o pobre homem volvia para ela o olhar agoniado; de seus lábios, porém, não saía palavra alguma; os soluços impediam-no de falar, só o coração, torturado, elevava-se numa angústia infinita para a Mãe que tanto venerava.

O pequeno Juan viu o pai. Num assomo de desespero soltou-se do braço que o cingia e arrojou-se como doido ao seu pescoço, chorando e soluçando de cortar coração. Fez-se profundo silêncio. Naquela multidão ali apinhada bem poucos olhos estavam enxutos.

"Vede, homens incrédulos"

Em meio a seu desespero, Juan volveu o rosto desfigurado para a imagem e com voz despedaçada pelos soluços, suplicou:

- Meu bom Jesus, tu bem sabes que meu pai não roubou teu sapatinho, bem sabes que ele seria incapaz disso. Então, porque permites que o condenem à morte? Dize aos senhores esbirros que o soltem, ele nunca fez mal a ninguém. Senhora Mãe de Jesus, por favor, dizei a essa gente que papai não é ladrão!

Um esbirro tentou afastar a criança, que mais fortemente se agarrou ao pai.

Esteban soluçava; do peito arquejante saiu-lhe um lamento, uma só palavra: Mãe!

Eis que milhares de olhos se fixaram arregalados na imagem. Todos percebiam que ela se animava, como se fosse viva. E viram o Menino Jesus, com sua mão descalçar a sapatilha que lhe restava e, sorrindo, atirá-la ao condenado, enquanto a Virgem parecia dizer:

- Vede, homens incrédulos, o ato de bondade de meu Filho.

A multidão prorrompeu em aclamações retumbantes e quase em delírio se apoderou do prisioneiro e do filho carregando-os em triunfo para fora da Catedral, gritando:

- Foi milagre, foi milagre! Viva a nossa Santa Virgem del Pilar, viva o nosso amado Senhor Nino!

Decorridos alguns dias, o Arcebispo de Burgos, acompanhado do Prior, dirigiu-se à modesta casa do sapateiro e, mediante avultada quantia, resgatou as sapatilhas para recolocá-las nos pés do Menino Jesus.

Graças a esse dinheiro, Esteban pôde instalar-se numa casa mais confortável, trazendo para junto dele as duas filhas, sempre cercado do carinho e da admiração de todo o povo de Burgos.