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O EVANGELHO DA VIDA
Autor: d. Estevão Bettencourt
Fonte: Revista "Pergunte e Responderemos"
Transmissão: José Augusto

Em síntese: O Santo Padre João II publicou em 1995, a encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida), em que considera longamente o valor e a inviolabilidade da vida humana. Esta é um dom de Deus, confiado ao homem para que o administre dignamente. Daí a recusa de todo ato que elimine a vida da pessoa inocente (aborto, eutanásia direta...). O homicídio e o suicídio em geral são rejeitados; quanto à pena de morte, é tida como medida lícita em casos extremos, que na verdade dificilmente ocorrem em nossos dias. A manipulação de embriões com fins utilitários (para transplante em adultos) ou para detectar moléstia e, eventualmente, matá-los também é condenada. Ao cristão toca o direito e o dever de opor a objeção de consciência frente à lei que contrarie a Lei de Deus. Às mulheres toca, na defesa e promoção da vida humana, um papel muito especial, pois Deus as quis associar de perto ao processo de origem e conservação da vida dos indivíduos humanos. A encíclica vem a ser um documento corajoso, dirigido não somente aos fiéis católicos, mas a todos os homens de boa vontade.


O S. Padre João Paulo II publicou a encíclica Evangelium Vitae (O Evangelho da Vida) em 15 de março de 1995. Versa sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana. Por tratar de tema tão fundamental para a convivência dos indivíduos e dos povos, é dirigida não somente aos clérigos e leigos da Igreja Católica, mas também a todas as pessoas de boa vontade. Diz o Papa em sua Introdução (§ 5): "A presente encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade e, conjuntamente, um apelo dirigido em nome de Deus a todos e cada um: respeita, defende, ama e serve à vida, a cada vida humana! Unicamente por esta estrada encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz, felicidade!".

O texto compreende quatro capítulos. O primeiro considera as atuais ameaças à vida humana (§§ 15-28). O segundo apresenta a mensagem cristã sobre a vida (§§ 29-51). O terceiro, a Lei Santa de Deus (§§ 52-77) e o quarto sugere uma nova cultura da vida humana (§§ 78-101). Segue-se uma Conclusão 102-105).

É no capítulo III que se encontram as disposições da Moral Católica relativas aos problemas que o tema comporta. Por isto nas linhas subseqüentes daremos especial atenção a esse segmento da encíclica.

  1. OS TEMAS CONTROVERTIDOS

    O Santo Padre considera seis problemas concernentes à vida humana, apresentando de cada vez a posição da Igreja, que, no caso, não é senão a lei natural ou a lei do Criador impregnada na natureza de todo homem. Percorramo-los sucintamente.

    1. Homicídio e Legítima Defesa (§§ 54-55)

      A vida humana é precioso dom de Deus, do qual o homem não pode dispor a seu arbítrio. Por isto existe o mandamento: "Não matarás" (Ex 20, Dt 5,17). "É notório que, nos primeiros séculos, o homicídio se contava entre três pecados mais graves - juntamente com a apostasia e o adultério - e exigia-se uma penitência pública particularmente onerosa e demorada" (§ 54). Todavia a Moral Católica reconhece o direito de matar em legítima defesa quando alguém é injustamente ameaçado de morte e não tem outro meio de livrar do agressor. Neste caso, a culpa da morte do injusto agressor recai sobre ele mesmo, pois sua atitude agressiva o expõe a perder a vida. Verdade é que em virtude de um amor heróico, a vítima pode renunciar a esse direito, deixar que lhe tirem a vida. Mas não o deve fazer se sua morte acarreta prejuízo a outrem (à família ou à sociedade).

    2. Pena de Morte (§§ 56-57)

      À autoridade pública toca o dever de defender a ordem pública e a segurança das pessoas, aplicando penas (medicinais) aos que perturbam a sociedade. Entre essas penas, pode vir ao caso a pena de morte, se a sociedade tem como indispensável para coibir a onda de crimes. Observa o S. Padre: "Não se deve chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos de absoluta necessidade, isto é, quando a defesa da sociedade não seja possível de outro modo. Hoje, graças à organização cada vez mais adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes"(§ 56).

      A propósito a imprensa notou que a posição de João Paulo II se tornou mais severa e explícita em relação à pena de morte do que a do Catecismo da Igreja Católica. Esta observação pode ser verídica, mas não implica mudança da doutrina da Igreja. Eis o texto do Catecismo: "Preservar o bem comum da sociedade exige que o agressor seja privado da possibilidade de prejudicar a outrem. A este título, o ensinamento tradicional da Igreja reconheceu como fundamentado o direito e o dever, da legítima autoridade pública, de infligir penas proporcionadas à gravidade dos delitos, sem excluir, em casos de extrema gravidade, a pena de morte. Por razões análogas os detentores de autoridade têm o direito de repelir pelas armas os agressores da comunidade civil pela qual são responsáveis" (§ 2266).

      Encerrando suas considerações, declara ainda o S. Padre: "Com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus sucessores em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a morte direta e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral" (§ 57).

    3. O Aborto (§§ 58-62)

      É definido como "a morte deliberada e direta, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento" (§ 58). "Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abominável. O Concílio do Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, como 'crime abominável' (Constituição Gaudium et Spes § 57)"(§ 58).

      O Papa nota que, em nossos dias, a sociedade tenta iludir-se a respeito de tal crime, evitando chamá-lo pelo seu nome e recorrendo a uma terminologia ambígua, como no caso da expressão "interrupção da gravidez".

      Sem dúvida muitas mulheres são induzidas ao aborto não por motivos de egoísmo ou comodismo, mas por razões aparentemente mais persuasivas como são a conservação da própria saúde, a falta de condições financeiras, a previsão de que a criança será deficiente ou infeliz em sua vida futura. Por mais poderosas que sejam estas e outras razões, "nenhuma pode justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente" (n° 58). Também é de notar que várias influências se exercem sobre a mulher grávida, induzindo-a ao abortamento: o marido, os familiares, os médicos e os restantes profissionais da saúde que chegam a forçar física ou moralmente a mulher ao aborto e assim se tomam responsáveis pelo crime. Esta responsabilidade, aliás, toca ainda aos legisladores que promovem e aprovam leis abortistas, como também recai sobre os administradores das Clínicas onde se tem os abortos (na medida em que a execução do crime dependa da conivência da administração).

      De modo geral, pode-se dizer que são, de algum modo, responsáveis pela onda atual de abortos aqueles que favorecem a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade. O crime do aborto assim é inserido numa vasta rede de responsabilidades; "é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os construtores e defensores... Achamo-nos perante algo que se pode definir como uma 'estrutura de pecado' contra a vida humana ainda não nascida" (§ 59).

      Há quem queira justificar o aborto alegando que durante certo tempo ou semanas após a fecundação não existe um ser humano propriamente dito, de modo que a eliminação do feto em tais circunstâncias não seria homicídio. A resposta dos cientistas, porém, contesta tal alegação; afirma que, no momento em que o óvulo é fecundado, começa a existir um novo ser, que não é parte da mãe, mas um indivíduo humano próprio posto em desenvolvimento. Nunca se tornará humano se já não o é desde a concepção. Desde o 1º instante está fixado o programa daquele novo ser humano, com as sua características bem determinadas; apenas exigem tempo para se formar plenamente.

      A Igreja sempre rejeitou o aborto, mesmo quando na Idade Média se dizia que a infusão da alma humana só se dava no 40° dia (para os meninos) e do 80° dia (para as meninas). Em qualquer hipótese tratava-se de um ser humano em formação, merecedor de respeito; daí a recusa de o eliminar. Por isto já no fim do século I a Didaqué, catecismo da Igreja nascente, prescrevia: "Não matarás o embrião por meio do aborto nem farás que morra o recém-nascido". Tertuliano (+220 aproximadamente) no Norte da África afirmava: "É um homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima o nascimento ou que se faça desaparecer durante o tempo que antecede o fato. É já um homem aquele que o será" (Apologeticum IX 8).

      A gravidade do aborto é tal que o Direito Canônico prevê a excomunhão latae sententiae, isto é, pelo fato mesmo de se cometer o crime, para todos aqueles que "promovem o aborto, seguindo-se o efeito" (cân. 1398).

    4. Manipulação de embriões humanos (§ 63)

      Há experiências modernas realizadas em embriões humanos condenáveis. Assim, são lícitas as intervenções em embriões tão somente quando respeitam a vida e a integridade do embrião, não comportam riscos desproporcionados para o novo ser e são orientadas para sua cura, para a melhora das suas condições de saúde ou para a sua sobrevivência individual.

      A experimentação em embriões humanos constitui um crime contra sua dignidade, pois têm direito ao respeito devido à criança já nascida e a qualquer pessoa. A utilização de embriões e fetos humanos ainda vivos (às vezes produzidos propositadamente para tal finalidade através da fecundação em proveta) como fornecedores de órgãos ou tecidos para transplante em adultos enfermos, equivale ao assassinato de criaturas inocentes, ainda que com vantagens para outras.

      As técnicas de diagnose pré-natal permitem detectar eventuais anomalias do nascituro. São lícitas quando isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a mãe e se destinam a tornar possível uma terapia precoce. Quando, porém, são executadas com o propósito de matar a criança, caso nela se descubra algo de indesejado, deixam de ser lícitas. Supõem, da parte do operador, uma mentalidade errônea, segundo a qual o valor da vida humana é dimensionado apenas segundo o bem-estar físico. Na verdade, pode-se averiguar a coragem e a serenidade de muitos deficientes físicos ou mentais, que recebem carinho da parte de seus semelhantes. A Igreja é solidária com os cônjuges que aceitam acolher seus filhos gravemente deficientes, assim como é grata a toda as famílias que, pela adoção, acolhem os que são abandonados por seus pais em virtude de limitações físicas ou psíquicas.

    5. A Eutanásia (§§ 64-67)

      A eutanásia propriamente dita é qualquer ação ou omissão que, por sua natureza, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento. É prática absurda e desumana, pois pretende transferir para o homem o senhorio da vida, que pertence a Deus só. É um dos mais alarmantes sintomas da cultura de morte, que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar, onde o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso libertar-se a todo custo. Em alguns países as pessoas idosas e debilitadas são isoladas da família e da sociedade como improdutivas, de modo que elas mesmas vão perdendo o prazer de viver.

      A eutanásia propriamente dita é crime mais grave quando praticada por familiares, médicos ou legisladores contra essas pessoas que não a pediram nem deram seu consentimento para a mesma; não compete ao homem decidir quem deve viver e quem deve morrer; a vida do mais fraco não pode tornar-se dependente do alvitre do mais forte.

      Às vezes os familiares podem desejar a eutanásia não por motivos egoístas ou para se ver livres de um encargo penoso, mas sim por compaixão. Contudo a verdadeira compaixão não é aquela que inflige a morte, mas aquele assiste à pessoa sofredora com a sua companhia, solidariedade e apoio. A propósito, afirma o Apóstolo São Paulo: "Nenhum de nós vive para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor" (Rm 14, 7s).

      Morrer para o Senhor significa viver a própria morte como ato supremo de obediência ao Pai (cf. Fl 2, 8). Viver para o Senhor significa também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal e uma prova, se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é vivido por amor e com amor" (§ 67). Diferente da eutanásia propriamente dita é a obstinação terapêutica. Com efeito; pode haver aplicação de recursos altamente sofisticados e onerosos ao paciente que não obtenha daí os benefícios adequados ou proporcionais. Nessa situação, quando a morte se apresenta como algo de iminente e inevitável, é lícito renunciar ao tratamento que apenas produz um prolongamento precário e penoso da vida. "A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionais equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana diante da morte" (§ 65). É claro, porém, que somente uma junta médica ou pessoas capacitadas podem avaliar os resultados obtidos mediante tais recursos extraordinários, a fim de orientar as consciências diante do prolongamento da vida em questão.

      É lícito o uso de analgésicos para minorar as dores do paciente, mesmo que isto comporte o risco de abreviar a duração da vida; em tal caso, não procura a morte do enfermo, mas procura-se oferecer-lhe condições de existência menos penosas para que possa dispor de sua fase terminal com relativa tranqüilidade. O recurso a analgésicos não deve ser tal que prive o moribundo da consciência de si mesmo sem motivo grave: "Quando se aproxima a morte as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer às suas obrigaçõe morais e familiares e devem sobretudo poder preparar-se com plena consciência para o encontro definitivo com Deus" (§ 66).

    6. Lei Civil e Lei Moral (§§ 68-75)

      Em nossos dias pleiteia-se, da parte do Estado, o reconhecimento de certos atentados à vida humana e, conseqüentemente, a assistência segura e gratuita dos médicos da rede pública e particular para executarem tais atentados como aborto eutanásia.

      Os argumentos em favor desta reivindicação de leis estatais são os seguintes:

      1. A vida de quem ainda não nasceu ou de quem está gravemente debilitado, é um bem relativo. Tem de ser confrontado com outros bens numa perspectiva proporcionalista ou calculista, pragmática, utilitarista.

      2. Só quem vive uma situação concreta, pode avaliar os bens e males em jogo; por conseguinte, só a mãe grávida e o ancião podem decidir sobre a eliminação ou não. Ao Estado toca respeitar as respectivas opções, chegando a admitir o aborto e a eutanásia.

      3. A lei civil não pode exigir que todos os cidadãos vivam segundo o mesmo grau de moralidade Ela deve, antes, exprimir a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes pelo menos em certos casos o direito ao aborto e à eutanásia.

      4. A proibição e a punição do aborto e da eutanásia levam a práticas clandestinas, realizadas sem a devida segurança médica. Por conseguinte, recomenda-se dar legalidade a tais práticas para que possam gozar do apoio de profissionais capacitados.

      5. Defender uma lei que não é concretamente aplicável (as leis que proíbem aborto e eutanásia) implica, em última análise, minar a autoridade de qualquer outra lei.

      6. Numa sociedade moderna pluralista, deve-se reconhecer a cada pessoa plena autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não nasceu, sem ingerência da lei civil; esta não deveria fazer escolha entre as diversas opções dos cidadãos, legalizando umas e rejeitando outras.

      Está subjacente a esses diversos argumentos um certo relativismo ético, que caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem julgue que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele garante tolerância e respeito mútuo entre os cidadãos. As normas morais objetivas e vinculantes são consideradas expressões de autoritarismo e intolerância.

      O relativismo ético se dissipa, apesar de tudo o que ele tenha de atraente, se consideramos que a Moral não pode estar baseada na vontade volúvel dos homens, mas está, sim, fundamentada numa lei anterior a qualquer lei civil, que é a lei natural, inscrita no coração de todo homem. É essa lei natural que proíbe matar o inocente, roubar o alheio, adulterar, caluniar... Se esse fundamento natural da Moral se apaga, a própria democracia é abalada, pois fica reduzida a mero mecanismo de regulação de interesses diversos e contraditórios.

      A democracia é um meio, não um fim. O seu valor ético depende da moralidade dos fins a que aspira e dos meios que usa. Uma democracia cuja vida e morte dependam exclusivamente do arbítrio dos homens, não poderá assegurar bem estar e paz estável. Com efeito; é ilusória a paz não fundada sobre a dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens observa-se mesmo que, nos regimes de democracia, há muitas vezes uma cúpula de cidadãos mais poderosos que manipulam a legislação e os órgãos legislativos em favor de interesses que não correspondem aos da coletividade.

      Em suma, existem valores morais essenciais e congênitos que exprimem a dignidade do ser humano (entre os quais o respeito à vida); nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado jamais poderá modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover.

      Esses valores geram obrigação para as consciências, de tal modo legitimam a chamada "objeção de consciência"; o cidadão tem, sim, o direito de não observar as leis que contradizem a tais valores. "Os cristãos, como os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência não prestar a sua colaboração formal em ações que, apesar de admitida pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus" (§ 74). Esse dever é também um direito, e deveria estar previsto e protegido pela própria lei; Quem recorre à objeção de consciência, deve ser salvaguardado não apenas das sanções penais, mas ainda de qualquer dano no plano legal, disciplinar, econômico e profissional.

  2. A CULTURA DA VIDA

    O capítulo IV da encíclica quer propor "uma nova cultura da vida humana" (§§ 78-101). Enfatiza sob vários ângulos o valor da vida e, mais de uma vez faz alusão ao papel que toca à mulher na promoção da mesma. Assim, ao tratar do dom que cada um pode fazer de si em prol da vida alheia (inclusive doando seus órgãos), o Santo Padre se refere ao heroísmo das mães modelares nos seguintes termos. A tal heroísmo do cotidiano pertence o testemunho silencioso, fecundo e eloqüente, de todas as mães corajosas, que se dedicam sem reservas à própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios filhos, e depois prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar todos os sacrifícios, para transmitir quanto de melhor elas conservam em si. No cumprimento dessa missão, nem sempre estas mães heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos de civilização, com freqüência promovidos e propagados pelos meios de comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso e da modernidade, são apresentados como já superados os valores da fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...) Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de fato, tem o poder de vos restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda" (n° 86).

    Mais adiante o S. Padre refere-se ao verdadeiro feminismo: "Nessa virada cultural a favor da vida, as mulheres têm um espaço de pensamento e ação singular e talvez determinante: compete a elas fazerem-se promotoras de um 'novo feminismo' que, sem cair na tentação de seguir modelos masculinizados, saiba reconhecer e exprimir o verdadeiro gênio feminino em todas as manifestações da convivência civil, trabalhando pela superação de toda forma de discriminação, violência e exploração.

    Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concilio Vaticano II, também eu dirijo às mulheres este premente convite: Reconciliai os homens com a vida. Vós sois chamadas a testemunhar o sentido do amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que se realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular. A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. (...) Este modo único de contato com o novo homem que se está formando cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem - não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral - que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher. Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do fato mesmo de ser pessoa e não de outros fatores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde. Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica virada cultural" (n° 99).

    São estes alguns dos principais tópicos da encíclica "O Evangelho da Vida" de João Paulo II. Na verdade, nada propõe de novo, mas adapta a clássica e constante doutrina da Igreja às circunstâncias e aos problemas dos tempos atuais. Em última análise, é a reafirmação do Evangelho e da visão de fé que o cristão deve ter sobre o mundo movido por interesses egoístas e utilitários, que redundam em detrimento do próprio homem. É a Igreja Mãe e Mestra, perita em humanidade, quem assim fala, apregoando a Palavra do próprio Deus.