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A revista IBASE, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, em seu número 8 (junho de 2000), pp. 36-38, apresenta o artigo "Pluralidade de Posicionamentos" da sra. Regina Soares Jurkewicz; pretende legitimar o aborto frente à consciência católica, alegando que tal prática foi defendida por autores cristãos da Antigüidade. Tal posição de pensadores cristãos antigos fundamentaria a provável liceidade do aborto, pois, segundo o sistema probabilista, é lícito adotar como norma de comportamento uma sentença que goze de probabilidade, mesmo que ela seja impugnada por bons autores.
A seguir, damos a palavra à sra. Regina Jurkewicz, à qual será proposto um comentário.
O aborto fundamentado no Probabilismo
"Desde quando
Documentos do início do Cristianismo mostram a diversidade dos posicionamentos adotados no pensamento eclesial e as discussões e desacordos entre teólogos sobre o aborto. Há também um panorama bem diversificado nos escritos cristãos dos padres da Igreja - a Patrística - e dos teólogos dos séculos iniciais.
Nos primeiros séculos, os teólogos mais importantes da época argumentavam que o aborto não era um homicídio durante as primeiras etapas da gravidez. Os escritos de Santo Agostinho expressavam a posição geral da Igreja - que condenava o controle da natalidade e o aborto, porque destruíam a conexão entre o ato conjugal e a procriação - mas também não entendiam o aborto como homicídio. Santo Agostinho escreve: 'A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação, uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos'.
Não pretendemos ser exaustivas com relatos históricos sobre o aborto; o que esperamos é desvelar a idéia corrente de que a Igreja católica sempre considerou o aborto um homicídio. Colocar em evidência o dissenso entre teólogos com relação ao tema do aborto na história do catolicismo permite flexibilizar o discurso oficial atual da hierarquia católica, apresentado como fruto de uma história linear e monolítica. Isso é uma inverdade, que muitas vezes chega a ser apresentada como dogma. No entanto, a doutrina do Vaticano sobre o aborto não se inclui em temas sobre os quais o Papa se declara infalível; ela é matéria de legislação eclesiástica relacionada com a penitência. Portanto, pode e deve ser discutida pelos católicos/as.
A Doutrina Católica
Se buscarmos conhecer a tradição católica, veremos que a rigidez em questões morais não é própria do catolicismo. No caso do aborto não há uma opinião católica única, exclusiva, com fundamento teológico. Uma doutrina, bem pouco conhecida pelos/as fiéis, que fundamenta a diversidade de opiniões quando se estabelece um debate oral é a doutrina do Probabilismo. Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental que norteia o probabilismo é: onde há dúvida, há liberdade. Trata-se de uma doutrina antiga, mas ao mesmo tempo atual e útil para sociedades plurais como a nossa.
O que afirma o probabilismo? Afirma o direito dos/as fiéis, de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais, se suas argumentações estiverem baseadas em uma probabilidade firme. Essa probabilidade pode ser intrínseca ou extrínseca. Probabilidade intrínseca refere-se à percepção individual da inaplicabilidade de um ensinamento moral. Probabilidade extrínseca diz respeito à possibilidade de buscar apoio em autoridades teológicas para divergir de um ensinamento moral. A tradição católica coloca como suficiente a existência de cinco ou seis teólogos de reputação moral que defendam pontos de vista diferentes.
Segundo Daniel C. Maguire 'a Igreja resguardava de tal maneira a probabilidade extrínseca que, quando teólogos eminentes tinham um ponto de vista progressista sobre uma questão moral, a lei canônica exigia que os confessores informassem a quem se confessava que havia diferentes pontos de vista também legítimos. Assim, quem quisesse poderia recorrer ao probabilismo. O confessor era obrigado a agir dessa forma, até mesmo quando não estava de acordo com a opinião alternativa'.
Consciência moral
O probabilismo, ainda que seja pouco divulgado, permanece na Igreja Católica como teoria, respaldando o recurso à consciência individual esclarecida. Cada vez mais entre os/as fiéis católicos/as cresce a consciência de que o aborto nem sempre é imoral. Em pesquisa do jornal O Estado de S. Paulo, do dia 28 de agosto de 1997, mais de 80% dos católicos entrevistados apóiam o aborto legal. São mais de cinco ou seis, os/as teólogos/as sérios/as e confiáveis que defendem, atualmente, a possibilidade da decisão por um aborto como um ato moral. Não é útil nem para a Igreja nem para a sociedade impedir esse debate com posições autoritárias e ineficazes".
Comentando...
Alguns pontos formulados pela sra. Regina Jurkewicz merecem reparos.
Nos séculos XVI-XVIII os teólogos moralistas se empenharam por formular princípios que ajudassem o fiel católico e os confessores a formar sua consciência diante das alternativas da vida cotidiana: tal ou tal lei me obriga ou não obriga? É-me lícito agir de tal e tal modo? Pecarei ou não pecarei, se agir? ...Se não agir?
Foram assim construídos o que se chama "sistemas de Moral": o rigorismo, o tuciorismo, o probabiliorismo, o probabilismo... Este último encontrou boa aceitação por parte de teólogos respeitáveis, mas nunca foi unanimemente aceito; chegou mesmo, em alguns casos, a sofrer sérias restrições por parte de alguns Papas (Alexandre VII, Inocêncio XI, Clemente XI, Clemente XIII), porque favorecia o laxismo. A Igreja oficialmente nunca favoreceu o Probabilismo.
Sabe-se que até época recente os biólogos e os filósofos não tinham certeza a respeito do momento em que o feto recebe alma humana propriamente dita. Era comum seguir a sentença de Aristóteles (+322 a.C.), segundo a qual o feto masculino se tornaria autêntico ser humano somente no 40° dia após a fecundação do óvulo, ao passo que o feminino somente no 80° dia seria humano propriamente dito. Este modo de pensar perdurou até o século XX, quando o Dr. Jérôme Lejeune demonstrou incontestadamente que, logo por ocasião da conceição, se dá a animação humana ou a infusão de princípio vital (alma) humano. É o que explica que alguns poucos teólogos julgassem que se poderia eliminar o feto antes de se tornar humano. Todavia esta sentença foi explicitamente condenada pelo Papa Inocêncio XI em 1679, que rejeitou como errônea a seguinte proposição:
A sra. Regina Jurkewicz cita o probabilismo como sistema de formação da consciência que poderia legitimar a prática do aborto. Daí a pergunta: que ensina o probabilismo?
O princípio básico do probabilismo é o seguinte: sempre que houver alguma opinião realmente provável em favor da liceidade de algum ato, é lícito seguir tal opinião, ainda que a opinião contrária seja realmente mais provável e segura. Este princípio, porém, só se aplica às questões discutíveis, não àquelas sobre as quais haja um pronunciamento do magistério da Igreja, ao contrário do que pensa a sra. Regina Jurkewicz, que atribui simplesmente aos fiéis "o direito de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais".
E como avaliar a probabilidade de alguma opinião ou sentença? A probabilidade é a qualidade de determinada sentença que a torna aceitável a uma pessoa prudente, embora tal pessoa receie que a opinião contrária seja mais provável. A opinião se torna realmente provável quando cinco ou seis teólogos respeitáveis a têm como provável ou quando um grande mestre como S. Tomás de Aquino, Sto. Antonino, Sto. Afonso de Ligório - a considera provável.
O primeiro autor que propôs o probabilismo foi Frei Bartolomeu Medina O.P. (1528-1580), professor de Salamanca; seguiram-no outros teólogos dominicanos: Ludovico Lopez (+1596), Domingos Banez (+1604), João de S. Tomás (+1644)... Aderiram-lhe quase todos os teólogos da Companhia de Jesus. Os probabilistas chegaram a formular o seu sistema em poucas palavras: "A lei duvidosa não obriga".
Eis as principais ponderações que ocorre fazer ao artigo da sra. Regina Jurewicz. Em qualquer hipótese, porém, deve-se dizer que o probabilismo não pode ser invocado para justificar o aborto, porque, mesmo que fosse um sistema aceitável de Moral, ele nunca seria aplicável aos casos em que está em jogo a vida humana: quando esta se vê ameaçada, é obrigatório ao médico e aos seus auxiliares tudo fazer para salvá-la. Além do mais, como dito, o probabilismo só se aplica às questões discutíveis entre os teólogos, não à contestação do magistério da Igreja. De resto, a iliceidade do aborto não é regida por opiniões de teólogos, nem somente pelo magistério da Igreja, mas é derivada da Lei de Deus, que no Decálogo preceitua: Não Matarás!