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PROBABILISMO
Autor: d. Estevão Bettencourt
Fonte: Revista "Pergunte e Responderemos" - nov./2000
Transmissão: José Augusto

Síntese: Há quem diga que a Igreja não professa doutrina unânime contra o aborto, pois alegam que alguns mestres cristãos aceitaram a liceidade do aborto. Ora o sistema moral dito "Probabilismo" ensina que qualquer sentença que goze da probabilidade de ser verídica ou autêntica (porque proposta por cinco ou seis mestres respeitáveis) pode ser tomada como norma de comportamento. Por conseguinte, seria lícito praticar o aborto, porque defendido por alguns autores idôneos (apesar da posição contrária de autores abalizados e mais numerosos).


A revista IBASE, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, em seu número 8 (junho de 2000), pp. 36-38, apresenta o artigo "Pluralidade de Posicionamentos" da sra. Regina Soares Jurkewicz; pretende legitimar o aborto frente à consciência católica, alegando que tal prática foi defendida por autores cristãos da Antigüidade. Tal posição de pensadores cristãos antigos fundamentaria a provável liceidade do aborto, pois, segundo o sistema probabilista, é lícito adotar como norma de comportamento uma sentença que goze de probabilidade, mesmo que ela seja impugnada por bons autores.

A seguir, damos a palavra à sra. Regina Jurkewicz, à qual será proposto um comentário.

O aborto fundamentado no Probabilismo

"Desde quando

Documentos do início do Cristianismo mostram a diversidade dos posicionamentos adotados no pensamento eclesial e as discussões e desacordos entre teólogos sobre o aborto. Há também um panorama bem diversificado nos escritos cristãos dos padres da Igreja - a Patrística - e dos teólogos dos séculos iniciais.

Nos primeiros séculos, os teólogos mais importantes da época argumentavam que o aborto não era um homicídio durante as primeiras etapas da gravidez. Os escritos de Santo Agostinho expressavam a posição geral da Igreja - que condenava o controle da natalidade e o aborto, porque destruíam a conexão entre o ato conjugal e a procriação - mas também não entendiam o aborto como homicídio. Santo Agostinho escreve: 'A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação, uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos'.

Não pretendemos ser exaustivas com relatos históricos sobre o aborto; o que esperamos é desvelar a idéia corrente de que a Igreja católica sempre considerou o aborto um homicídio. Colocar em evidência o dissenso entre teólogos com relação ao tema do aborto na história do catolicismo permite flexibilizar o discurso oficial atual da hierarquia católica, apresentado como fruto de uma história linear e monolítica. Isso é uma inverdade, que muitas vezes chega a ser apresentada como dogma. No entanto, a doutrina do Vaticano sobre o aborto não se inclui em temas sobre os quais o Papa se declara infalível; ela é matéria de legislação eclesiástica relacionada com a penitência. Portanto, pode e deve ser discutida pelos católicos/as.

A Doutrina Católica

Se buscarmos conhecer a tradição católica, veremos que a rigidez em questões morais não é própria do catolicismo. No caso do aborto não há uma opinião católica única, exclusiva, com fundamento teológico. Uma doutrina, bem pouco conhecida pelos/as fiéis, que fundamenta a diversidade de opiniões quando se estabelece um debate oral é a doutrina do Probabilismo. Elaborada por teólogos católicos no século XVII, baseia-se no conceito de que uma obrigação moral que provoque dúvida não se pode impor como se fosse indiscutível. O princípio fundamental que norteia o probabilismo é: onde há dúvida, há liberdade. Trata-se de uma doutrina antiga, mas ao mesmo tempo atual e útil para sociedades plurais como a nossa.

O que afirma o probabilismo? Afirma o direito dos/as fiéis, de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais, se suas argumentações estiverem baseadas em uma probabilidade firme. Essa probabilidade pode ser intrínseca ou extrínseca. Probabilidade intrínseca refere-se à percepção individual da inaplicabilidade de um ensinamento moral. Probabilidade extrínseca diz respeito à possibilidade de buscar apoio em autoridades teológicas para divergir de um ensinamento moral. A tradição católica coloca como suficiente a existência de cinco ou seis teólogos de reputação moral que defendam pontos de vista diferentes.

Segundo Daniel C. Maguire 'a Igreja resguardava de tal maneira a probabilidade extrínseca que, quando teólogos eminentes tinham um ponto de vista progressista sobre uma questão moral, a lei canônica exigia que os confessores informassem a quem se confessava que havia diferentes pontos de vista também legítimos. Assim, quem quisesse poderia recorrer ao probabilismo. O confessor era obrigado a agir dessa forma, até mesmo quando não estava de acordo com a opinião alternativa'.

Consciência moral

O probabilismo, ainda que seja pouco divulgado, permanece na Igreja Católica como teoria, respaldando o recurso à consciência individual esclarecida. Cada vez mais entre os/as fiéis católicos/as cresce a consciência de que o aborto nem sempre é imoral. Em pesquisa do jornal O Estado de S. Paulo, do dia 28 de agosto de 1997, mais de 80% dos católicos entrevistados apóiam o aborto legal. São mais de cinco ou seis, os/as teólogos/as sérios/as e confiáveis que defendem, atualmente, a possibilidade da decisão por um aborto como um ato moral. Não é útil nem para a Igreja nem para a sociedade impedir esse debate com posições autoritárias e ineficazes".

Comentando...

Alguns pontos formulados pela sra. Regina Jurkewicz merecem reparos.

  1. Sistemas de Moral

    Nos séculos XVI-XVIII os teólogos moralistas se empenharam por formular princípios que ajudassem o fiel católico e os confessores a formar sua consciência diante das alternativas da vida cotidiana: tal ou tal lei me obriga ou não obriga? É-me lícito agir de tal e tal modo? Pecarei ou não pecarei, se agir? ...Se não agir?

    Foram assim construídos o que se chama "sistemas de Moral": o rigorismo, o tuciorismo, o probabiliorismo, o probabilismo... Este último encontrou boa aceitação por parte de teólogos respeitáveis, mas nunca foi unanimemente aceito; chegou mesmo, em alguns casos, a sofrer sérias restrições por parte de alguns Papas (Alexandre VII, Inocêncio XI, Clemente XI, Clemente XIII), porque favorecia o laxismo. A Igreja oficialmente nunca favoreceu o Probabilismo.

  2. Sentenças destoantes

    Sabe-se que até época recente os biólogos e os filósofos não tinham certeza a respeito do momento em que o feto recebe alma humana propriamente dita. Era comum seguir a sentença de Aristóteles (+322 a.C.), segundo a qual o feto masculino se tornaria autêntico ser humano somente no 40° dia após a fecundação do óvulo, ao passo que o feminino somente no 80° dia seria humano propriamente dito. Este modo de pensar perdurou até o século XX, quando o Dr. Jérôme Lejeune demonstrou incontestadamente que, logo por ocasião da conceição, se dá a animação humana ou a infusão de princípio vital (alma) humano. É o que explica que alguns poucos teólogos julgassem que se poderia eliminar o feto antes de se tornar humano. Todavia esta sentença foi explicitamente condenada pelo Papa Inocêncio XI em 1679, que rejeitou como errônea a seguinte proposição:

      "É lícito realizar o aborto antes da animação do feto, para que não seja condenada à morte ou difamada a jovem depreendida em gravidez" (DS 2134 [1184]).

    Aos 28/5/1884 o Santo Ofício declarou "não ser lícita a operação cirúrgica destinada a matar diretamente o feto ou a gestante". A mesma sentença foi repetida aos 19/8/1889. Na Antigüidade e na Idade Média havia quem distinguisse entre o crime de homicídio e o crime simplesmente dito. Eliminar um feto antes da respectiva animação, segundo os conceitos biológicos da época, não seria homicídio (pois o feto careceria de alma humana), mas seria um crime intolerável. Assim se entendam as palavras de S. Agostinho citadas pela sra. Regina Jurkewicz (aliás, sem indicação da obra do autor, citação de segunda mão): o aborto, no caso, não seria homicídio, mas seria um crime, porque equivaleria à extinção do processo de formação do ser humano. Em conseqüência pode-se dizer que a autoridade oficial da Igreja, como também a quase unanimidade dos moralistas, sempre rejeitaram como delituosa a eliminação de um feto em qualquer das fases de sua evolução no seio materno.

  3. Probabilismo

    A sra. Regina Jurkewicz cita o probabilismo como sistema de formação da consciência que poderia legitimar a prática do aborto. Daí a pergunta: que ensina o probabilismo?

    O princípio básico do probabilismo é o seguinte: sempre que houver alguma opinião realmente provável em favor da liceidade de algum ato, é lícito seguir tal opinião, ainda que a opinião contrária seja realmente mais provável e segura. Este princípio, porém, só se aplica às questões discutíveis, não àquelas sobre as quais haja um pronunciamento do magistério da Igreja, ao contrário do que pensa a sra. Regina Jurkewicz, que atribui simplesmente aos fiéis "o direito de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais".

    E como avaliar a probabilidade de alguma opinião ou sentença? A probabilidade é a qualidade de determinada sentença que a torna aceitável a uma pessoa prudente, embora tal pessoa receie que a opinião contrária seja mais provável. A opinião se torna realmente provável quando cinco ou seis teólogos respeitáveis a têm como provável ou quando um grande mestre como S. Tomás de Aquino, Sto. Antonino, Sto. Afonso de Ligório - a considera provável.

    O primeiro autor que propôs o probabilismo foi Frei Bartolomeu Medina O.P. (1528-1580), professor de Salamanca; seguiram-no outros teólogos dominicanos: Ludovico Lopez (+1596), Domingos Banez (+1604), João de S. Tomás (+1644)... Aderiram-lhe quase todos os teólogos da Companhia de Jesus. Os probabilistas chegaram a formular o seu sistema em poucas palavras: "A lei duvidosa não obriga".

Que dizer do probabilismo?

  1. Antes do mais, seja observado que o probabilismo não se aplica jamais nos quatro seguintes casos:

    • está em jogo grave perigo espiritual ou material ameaçando alguém. Assim quando se trata da vida de um ser humano, não é lícito agir com o risco de estar matando esse alguém. Tal é o caso do feto, cuja vida é ameaçada pelo aborto; não é lícito praticar aborto, com o risco de estar matando um ser humano;

    • quando está em jogo um direito firme e certo de alguém. Assim o juiz não pode recusar a alguém o direito de posse de determinado objeto se tal direito está bem fundamentado, ainda que haja razões prováveis para negar o direito à propriedade; o juiz tem a obrigação de agir segundo a sentença mais provável. Caso muito interessante se deu com São Paulo: em Corinto havia cristãos de consciência fraca, que julgavam ser ilícito comer carne imolada previamente aos ídolos em templo pagão (daria comunhão com os demônios); todavia os mais esclarecidos sabiam não haver mal nenhum no consumo de tal carne e desejavam usar da sua liberdade; o Apóstolo, porém, pediu-lhes que renunciassem a tal uso para não escandalizar os membros mais frágeis da comunidade; estes tinham direito a não ser escandalizados; cf. 1Cor 8, 13; Rm 14, 1-23;

    • quando se trata das verdades da fé e da salvação eterna: assim não é lícito ensinar qualquer sentença teológica quando se tem dúvida a respeito da veracidade de tal sentença; também não é lícito batizar com "água de Colônia" quando se tem dúvida a propósito do Batismo assim ministrado;

    • quando se trata da validade dos sacramentos. Assim não é lícito celebrar a Eucaristia com matéria duvidosa (pão de mesa, vinho do botequim...).

  2. Além disto, deve-se notar que o probabilismo facilmente leva ao laxismo ou à depravação dos costumes, pois a avaliação da probabilidade de alguma opinião pode ser muito subjetiva e pessoal. Também é muito subjetivo o juízo sobre o caráter duvidoso de alguma lei; os preconceitos, conscientes ou inconscientes, podem facilmente influenciar a pessoa que julga. A vida moral cristã requer zelo e empenho frente aos muitos escolhos que se lhe deparam; será necessário recorrer muito mais à virtude da prudência do que aos critérios de probabilidade ou de dubiedade.

    Eis as principais ponderações que ocorre fazer ao artigo da sra. Regina Jurewicz. Em qualquer hipótese, porém, deve-se dizer que o probabilismo não pode ser invocado para justificar o aborto, porque, mesmo que fosse um sistema aceitável de Moral, ele nunca seria aplicável aos casos em que está em jogo a vida humana: quando esta se vê ameaçada, é obrigatório ao médico e aos seus auxiliares tudo fazer para salvá-la. Além do mais, como dito, o probabilismo só se aplica às questões discutíveis entre os teólogos, não à contestação do magistério da Igreja. De resto, a iliceidade do aborto não é regida por opiniões de teólogos, nem somente pelo magistério da Igreja, mas é derivada da Lei de Deus, que no Decálogo preceitua: Não Matarás!