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"HÁ OUTRO CRISTO?"
Autor: d. Estevão Bettencourt
Fonte: Revista "Pergunte e Responderemos" nº 427

Em síntese: O panfleto "Há outro Cristo?" ataca o sacerdócio católico e seu ministério, especialmente a S. Eucaristia, usando linguagem irônica e agressiva. Para tanto, interpreta a Bíblia à maneira do autor (J.T.C.), rejeitando o sentido próprio das palavras de Jesus relativas ao Pão da Vida (Jo 6,48-58) e à última ceia (Mt 26,26-28 e paralelos). O folheto faz parte de uma coleção de escritos protestantes que difamam sem fundamento a Igreja e sua fé, numa atitude que transpira inimizade não cristã.


Tem sido espalhado entre os fiéis católicos um panfleto protestante intitulado "Há outro Cristo?", da autoria de J.T.C. É impresso nos Estados Unidos da América pela C.L.C. Editora em língua portuguesa. Ataca violentamente o sacerdócio católico e o ministério por ele exercido, recorrendo a linguagem popular e maldosa, pois, entre outras coisas, atribui a Satanás a instituição da S. Missa e o ensinamento da Igreja relativo ao culto divino.

Nas linhas subseqüentes será analisado o conteúdo do panfleto e lhe serão propostas as devidas respostas.

  1. O CONTEÚDO DO PANFLETO

    O autor do impresso afirma que ao padre são atribuidos poderes que só competem a Jesus Cristo e ao Senhor Deus, a tal ponto que o sacerdote é chamado "um outro Cristo". Com referência à S. Eucaristia, o texto afirma:

      "Segundo a doutrina católica romana, ao sacerdote são dados poderes que estarrecem a mente. O sacerdote é tão divino que pode mandar Jesus Cristo descer do céu (Rm 10, 2-9)".

      "Às ordens do padre, o Rei dos Reis e Senhor dos Exércitos se sujeita a ser engolido por qualquer pessoa a quem o sacerdote o der".

      "Esse sacerdote católico romano é mais do que um Deus... Ele é Criador do seu Criador".

      "O sacrifício de Jesus pelos pecados, há quase 2.000 anos, no Calvário foi perfeito. Não há nada que você ou qualquer igreja possa fazer para melhorá-lo".

      "Jesus odeia esse sistema religioso falso, que tem blasfemado o seu santo nome, sua santa Palavra, enganado bilhões de pessoas".

    Essas frases dão idéia suficiente do teor agressivo do panfleto, que assim provoca uma resposta adequada.

  2. QUE DIZER?

    Dividiremos a resposta em três partes:

    1. O Padre

      1. Na verdade, muitos livros de espiritualidade atribuem ao padre o apelativo de "outro Cristo" (alter Christus). Atualmente esta designação está sendo dada a todo cristão, pois este, pelo Batismo, é inserido em Cristo ou feito membro do Corpo Místico de Cristo. É São Paulo quem escreve: "Vivo eu, não eu; é Cristo que vive em mim" (Gl 2,20). Como se compreende, não se trata de dizer que há muitos Cristos propriamente ditos, mas afirma-se que o cristão, pelos sacramentos do Batismo, da Eucaristia e da Ordem, entra em íntima comunhão com Cristo,... íntima comunhão que Jesus mesmo ilustra mediante a imagem da videira: "Eu sou a videira verdadeira, e vós sois os ramos. Aquele que permanece em mim, e em quem eu permaneço, produz muito fruto" (Jo 15,5).

      2. Essa comunhão faz que o padre participe do sacerdócio de Cristo e se torne a mão estendida de Cristo para a salvação do mundo. Foi o próprio Jesus quem o quis, ao dizer aos Apóstolos após a consagração do pão e do vinho na última ceia: "Fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19); Jesus mandou converter o pão em seu corpo e o vinho em seu sangue. Em Jo 6,53-56 o Senhor fez do sacramento do seu Corpo e Sangue condição para que os fiéis tenham a vida:

        "Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, permanece em mim, e eu nele".

      3. Outra atividade do ministério sacerdotal é o perdão dos pecados conferido em nome de Cristo. Disse o Senhor aos Apóstolos na noite da Páscoa:

        "Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; àqueles aos quais os retiverdes, serão retidos" (Jo 20,22s).

      Para que o sacerdote possa conferir ou não o perdão, deve conhecer o estado de alma do pecador; isto se faz mediante a confissão das faltas, que assim foi instituída por Cristo. Se o pecador não manifesta arrependimento e o propósito de evitar o pecado, é evidente que não tem condições para ser absolvido. O sacerdote deve então ajudá-lo a se preparar para receber a absolvição devidamente contrito e disposto a fugir das ocasiões de pecado. O exercício do ministério da reconciliação é indiretamente atestado por Mt 9,8: após o perdão dos pecados e a cura do paralítico, as multidões "glorificaram a Deus, que deu tal poder aos homens". O plural "aos homens" não se entende a partir dos antecedentes, pois somente Jesus havia perdoado os pecados do paralítico; o plural só se explica se o evangelista, ao redigir o texto, pensou na faculdade de perdoar concedida por Jesus aos seus ministros.

      4. Mais uma função sacerdotal se encontra enunciada no Novo Testamento: em Tg 5,14 lê-se: "Alguém dentre vós está doente? Mande chamar os presbíteros da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o doente, e o Senhor o porá de pé; e, se tiver cometido pecados, estes lhe serão perdoados". S. Tiago supõe a existência de ministros da Igreja chamados "presbíteros", os quais, entre outras funções, exercem a unção dos enfermos para o alívio do corpo e da alma dos doentes.

      5. Quanto ao Batismo, é também confiado aos Apóstolos e seus sucessores até o fim dos tempos:

        "Ide, e fazei que todas as nações se tornem meus discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19).

      6. Estas diversas ordens do Senhor instituem a ordem sacerdotal, que é a extensão do sacerdócio de Cristo; produz efeitos que só o próprio Deus pode realizar, fazendo passar da morte espiritual para a vida definitiva. Nem por isto o sacerdote é um Deus; é tão somente instrumento de Jesus Cristo, tanto mais obrigado a cultivar a humildade quanto mais intimamente associado ao ministério de Cristo. É, pois, despropositado, falso e caluniador dizer que o padre é o criador do Criador ou mais do que um deus. Bem disse S. Agostinho, referindo-se ao seu sacerdócio:

        "Atemoriza-me o que sou para vós; consola-me o que sou convosco. Pois para vós sou Bispo; convosco sou cristão. Aquilo é um dever; isto, uma graça. O primeiro é um perigo; o segundo, salvação" (Sermão 340,1).

      A responsabilidade do ministério sacerdotal deve inspirar ao padre um santo temor, que é a antítese da arrogância ou da presunção.

      O Concílio do Vaticano II desenvolve o mesmo pensamento nestes termos:

        "Os sacerdotes do Novo Testamento - embora exerçam, em razão do sacramento da Ordem, a tarefa mais elevada e indispensável de pais e mestres no seio do povo e em favor do povo de Deus - juntamente com todos os fiéis cristãos são discípulos do Senhor; feitos participantes do reino dele, pela graça de Deus que os chamou. Na companhia de todos os que se regeneraram na fonte do Batismo, os presbíteros são irmãos entre irmãos, como membros de um só e mesmo Corpo de Cristo, cuja edificação a todos foi confiada" (Presbyterorum Ordinis n9 9).

    2. A Eucaristia

      1. É inegável que o pão e o vinho consagrados se tornam o Corpo e o Sangue de Jesus. Isto se depreende não só das palavras do Senhor pronunciadas na última ceia (cf. Mt 26,26-28; Mc 14,22-25; Lc 22,19s; 1Cor 11,21-25), mas também do sermão do pão da vida ocorrente em Jo 6,48-58. Quem nega a real presença de Cristo na Eucaristia, nega a própria Escritura; daí ser grave irreverência chamar "biscoito" o pão consagrado, como faz J.T.C.

      Mais: deduz-se do texto sagrado que Jesus não quis apenas tornar-se presente estaticamente sobre os altares, mas quis instituir a celebração do sacrifício da nova e eterna Aliança ou da sua Páscoa, pois a Cruz de Jesus é inseparável da Ressurreição do Mestre; Jesus não é "um Cristo morto", como diz o panfleto em foco. Com efeito; merece atenção o fato de que na última ceia o Senhor não ofereceu apenas o seu Corpo e o seu Sangue aos discípulos como alimento, mas ofereceu-os pelos discípulos, em favor destes (hyper hymoon) - o que incute o caráter sacrificial do rito (cf. Lc 22,19s).

      Mais ainda: ao falar do sangue da nova Aliança na ceia, Jesus aludia a Ex 24,8, texto em que Moisés apresenta o sangue da antiga Aliança ("Este é o sangue da Aliança que Javé pactuou convosco"); Cristo assim oferecia-se como vítima para selar a definitiva Aliança, em lugar da vítima irracional cujo sangue selava a primeira Aliança no Sinai; Jesus assim opunha sangue a sangue, sacrifício a sacrifício, imolação realizada na última ceia à imolação realizada outrora no deserto. A última ceia aparece como a nova Páscoa, que, mediante o sangue do verdadeiro Cordeiro imolado pelos pecados do mundo (cf. Jo 1,29), faz cessar os numerosos e imperfeitos sacrifícios do Antigo Testamento; cf 1Cor 5,7; Jr 31,31-33.

      Não seria plausível replicar que na quinta-feira santa Jesus oferecia "seu corpo e seu sangue imolados" como símbolos vazios de conteúdo e meramente figurativos daquilo que devia acontecer na sexta-feira santa.

      Não, as palavras do Senhor são simples e claras; Jesus não teria empregado termos ambíguos e metafóricos em circunstâncias tão solenes, provocando confusão na mente dos discípulos. Por conseguinte, podemos repeti-lo; sobre a mesa (que se transformava em altar) Jesus se colocava em estado de Vítima realizando uma ação sacrificial. Quem ainda concebesse dúvidas sobre o sentido do texto evangélico, poderia resolvê-las considerando a praxe e o ensinamento das gerações cristãs que, desde os inícios da Igreja, tomaram as palavras de Cristo no seu significado próprio e natural.

      2. Levemos agora em conta que Jesus mandou aos Apóstolos que repetissem o rito da última ceia,... dessa última ceia à qual Jesus atribuiu o significado de sacrifício; ver Lc 22,19; iCor 11,24. Desta ordem concluíram os Apóstolos e as gerações subseqüentes que, todas as vezes que renovavam a Ceia do Senhor (também chamada Eucaristia), realizavam a oblação de uma Vitima (Cristo) ou de um sacrifício. Este, porém, não podia nem pode ser a repetição do sacrifício da Cruz, pois Jesus se imolou uma vez por todas conforme a epístola aos Hebreus. A epístola aos Hebreus inculca solenemente a unicidade do sacrifício de Cristo oferecido outrora no Calvário. Sim, Cristo aí aparece como o Sacerdote Único (cf. Hb 4,14; 6,20; 7,21.23s), que se oferece como Vítima Única e Perfeita (cf. 7,28) numa oblação definitiva (cf. 9,11-14.25-28;10,10-14). O Senhor Jesus não precisa de se oferecer muitas vezes, mas sua oblação foi feita uma vez por todas, porque, à diferença do que se dava com os sacrifícios de animais irracionais do Antigo Testamento, a oferta de Cristo possui valor infinito, capaz de expiar todos os pecados, passados, presentes e futuros, do gênero humano; cf. Hb 4,14; 7,27, 9,12.25s. 28; 10,12.14. A ceia, por conseguinte, não pode ser senão o ato de "tornar presente" (sem multiplicar) através dos tempos, e de maneira incruenta (ou sacramental), o único sacrifício de Cristo oferecido cruentamente no Calvário há vinte séculos. Concluímos, portanto:

      1. Na quinta-feira santa Jesus perante os discípulos tornou presente de modo real, mas incruento, o sacrifício que Ele no dia seguinte devia realizar cruentamente na Cruz; tornou-o antecipadamente presente;

      2. Atualmente em cada S. Missa Jesus torna presente de modo real, mas incruento, esse mesmo e único sacrifício que Ele já realizou cruentamente na Cruz.

      Justamente este "tornar presente" a todos os tempos, sem implicar repetição nem multiplicação, constitui o "mistério da fé", título dado por excelência à S. Eucaristia.

      E por que terá Jesus instituído a celebração ritual do sacrifício do Calvário?

      Ele o fez para que a sua Igreja, os fiéis, se oferecessem com Ele ao Pai na qualidade de oferentes e oferecidos ou na qualidade de sacerdotes (cada qual participando, a seu modo, do sacerdócio de Cristo) e hóstias (cada qual participando da condição de Cristo-Hóstia). A oblação de Cristo na Cruz não é um ato meramente pretérito, mas é algo que se perpetua sobre os altares para que o cristão, enxertado em Cristo pelo Batismo, ofereça sua vida, suas tarefas, labutas e esperanças ao Pai com o Senhor Jesus.

    3. A Igreja e a Bíblia

      Os protestantes se ufanam de ter a Bíblia como única fonte das verdades da fé e autoridade decisiva, sem levarem em conta a Palavra oral, que é anterior à Bíblia e a acompanha como referencial necessário para a interpretar. A conseqüência desta premissa são as centenas de denominações protestantes, que usam todas a mesma Bíblia, mas dela deduzem conclusões contraditórias: uns observam o domingo, outros o sábado; uns batizam crianças, outros só batizam adultos; uns têm hierarquia com "bispos", outros não a têm... Levados pelo subjetivismo ou pelo livre exame realizado por cada crente individualmente, os protestantes deduzem da Bíblia o que "lhes parece", a ponto de recusarem a evidência da real presença de Cristo na Eucaristia.

      É falsa a posição de quem só leva em conta a Bíblia, pois a própria Escritura nos diz que nem tudo o que Jesus fez se encontra no texto sagrado (cf. JO 20,30s; 21, 24s). Por isto São Paulo manda observar as tradições que vêm dos Apóstolos (é claro que não qualquer tradição é válida); cf. 2Ts 2,5s; lTm 6,20s; 2Tm 2,2; Hb 2,3. Só se pode entender a Bíblia à luz da Palavra oral, que lhe é anterior e a berçou,... Palavra que ressoa na Igreja. Afinal a Igreja é anterior aos escritos do Novo Testamento; a Igreja viveu decênios sem a Palavra escrita do Novo Testamento, orientando-se pela Palavra oral de Jesus e dos Apóstolos. E a Igreja que entrega a Bíblia aos fiéis e a explana, assistida como é pela ação do Espírito Santo (cf. Jo 14,26; 16,13-15). Esta verdade é sabiamente lembrada pelo Pe. Álvaro Barreiro em seu livro "Povo Santo e Pecador. A Igreja questionada e acreditada", pp. 52s:

        "Os livros do AT são o fruto de um longo mutirão, do qual participou todo o Povo de Deus. Antes de serem fixados por escrito, suas histórias foram contadas e cantadas em prosa e em verso nas famílias, nas rodas de conversa, nas festas e no culto, e assim foram conservadas na memória do povo e transmitidas oralmente de geração em geração. As histórias consideradas de maior importância para a caminhada do Povo de Deus, como expressões mais ricas e mais belas da fé e da esperança, das vitórias e das derrotas, das fidelidades e das infidelidades do povo de Israel, foram selecionadas e transmitidas, e assim permaneceram na consciência do Povo de Deus como Palavra de Deus. A fé do Povo de Deus é, portanto, anterior à sua expressão escrita nas Escrituras.

        A Igreja do Novo Testamento é também anterior à Palavra de Deus na sua forma escrita. Qualquer que seja a explicação dada à questão da origem dos Evangelhos, eles são posteriores à existência da Igreja, pois nasceram da fé da Igreja; surgiram na Igreja e para a Igreja. Os Evangelhos são, como todos os outros textos do Novo Testamento, a expressão escrita da fé e da vida da Igreja, de sua pregação e de suas práticas. Não se pode, portanto, afirmar sem mais que a Escritura funda a Igreja. Com relação à Igreja apostólica temos de afirmar que, histórica e teologicamente, a existência das Escrituras do NT é uma realidade segunda com relação à Igreja, realidade primeira. Os escritos do NT são o testemunho consignado por escrito do desígnio histórico-salvífico de Deus realizado visivelmente na Igreja. Este fato demonstra que o princípio da sola Scriptura, entendido literal e globalmente, é histórica e teologicamente insustentável...

        A Igreja não pode ser julgada por mim individualmente usando a Escritura como arma na minha mão contra a Igreja. A Escritura nasceu da fé da Igreja e continua pertencendo à Igreja".

      É, pois, para lamentar que se propaguem folhetos do tipo do que focalizamos; são preconcebidos e enganadores, além de descaridosos e irônicos. O cristão ama a verdade; ama também a caridade.