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PODER RÉGIO E INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Autor: d. Estevão Bettencourt
Fonte: Revista "Pergunte e Responderemos" - set./2000
Transmissão: Antonio Xisto Arruda

Em síntese: O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil publicou os Regimentos da Inquisição em Portugal (vigentes também no Brasil) datados de 1552, 1613, 1640 e 1774 (este assinado pelo Marquês do Pombal). São acompanhados de uma Introdução redigida pela Profá Sônia Aparecida de Siqueira, que põe em evidência o fato de que a Inquisição nunca foi uma instituição meramente eclesiástica, mas, em virtude da lei do padroado, foi mais e mais dirigida pela Coroa de Portugal em vista de seus interesses políticos. A Santa Sé teve de se opor mais de uma vez aos processos da Inquisição, a fim de tutelar os cristãos-novos e outros cidadãos julgados pelo Tribunal.


A Inquisição está sempre em foco. É motivo de acusações à Igreja, muitas vezes mal fundamentadas ou repetidas como chavões, sem que o público tenha acesso aos documentos básicos que nortearam a Inquisição. Poucas pessoas têm contato direto com os arquivos e as fontes escritas do movimento inquisitorial.

Eis que o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) publicou no número 392 (ano 157) da sua revista, correspondente a julho/setembro 1996 (pp. 495-1020) os Regimentos do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal datados de 1552, 1613, 1640, 1774 (este assinado pelo Marquês de Pombal), além de um Regimento sem data. Tal edição esteve aos cuidados da ProP Sônia Aparecida de Siqueira, sócia-correspondente do IHGB em São Paulo, que escreveu longa Introdução a tais documentos. Como nota o Prof. Arno Wehling, presidente do IHGB em 1996, a Dra- Sônia Aparecida "localizou a Inquisição e seus sucessivos regimentos nos diferentes momentos históricos, sublinhando, inclusive, a progressiva expansão do poder real sobre a instituição, culminando no regime sectarista" (p. 495).

Como se sabe, a Inquisição nunca (nem na Idade Média) foi um Tribunal meramente eclesiástico. Isto era inconcebível outrora, dado que o Estado era oficialmente cristão e, por isto, se julgava responsável pelos interesses da fé cristã; a tal título intervinha ele em questões de foro religioso, por vezes ditando normas àIgreja. Tal realidade se acentuou na pensínsula ibérica (Espanha e Portugal) a partir do século XVI, em virtude dos privilégios do padroado. Com efeito, já que os reis de Espanha e Portugal eram descobridores de novas terras, às quais levavam a fé católica, a Santa Sé lhes concedeu poderes especiais para organizarem a vida da Igreja nas regiões recém-descobertas; daí a grande ingerência nos assuntos religiosos, a título de colaboração com a Igreja, ... colaboração que redundou, aos poucos, em sufocação da autoridade eclesiástica em favor dos interesses da Coroa.

Nas linhas subseqüentes, apresentaremos as origens da Inquisição em Portugal e alguns traços da explanação da Profá Sônia Aparecida, que põem em relevo a intervenção sempre mais prepotente dos monarcas em assuntos inquisitoriais.

1. Origens da Inquisição Portuguesa

O rei D. João III de Portugal (1521-57) desejava que o Papa estabelecesse a Inquisição em seu reino, tendo em vista especialmente a eliminação dos judeus não plenamente convertidos ao Cristianismo. Durante 27 anos, S. Majestade e a Santa Sé se defrontaram, visto que o rei pedia poderes, em matéria religiosa, que o Papa não lhe queria conceder: assim, conforme o monarca, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo rei, assim como os outros Inquisidores (subordinados), podendo estes últimos ser não apenas clérigos, mas também juristas leigos, que passariam a ter a mesma jurisdição que os eclesiásticos. Mais: conforme o desejo do rei, os Inquisidores estariam acima dos Bispos e dos Superiores das Ordens Religiosas, de modo que poderiam processar e condenar eclesiásticos sem consultar os respectivos prelados; os Bispos ficariam impedidos de intervir em qualquer causa que os Inquisidores chamassem a si. Ainda: os Inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e levantar as que eram impostas pelos Bispos. Como se vê, o rei queria desta maneira obter o controle total sobre os Bispos e a Igreja em Portugal.

Finalmente aos 17/12/1531 o Papa Clemente VII concedeu a Inquisição em Portugal, mas em termos que contrariavam às solicitações de D. João III: em vez de outorgar ao rei poderes para nomear os Inquisidores, o Papa nomeou diretamente um Comissário da Sé Apostólica e Inquisidor no reino de Portugal e nos seus domínios. Esse Comissário poderia nomear outros Inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos Bispos, que poderiam também, por seu lado, investigar as heresias.

Os termos desta Bula ou concessão nunca foram aplicados em Portugal. O Inquisidor nomeado, Frei Diogo da Silva, era o confessor do rei; não aceitou o cargo, talvez por pressão do monarca. Apesar disto, em meio a grande agitação popular, começaram a funcionar tribunais inquisitoriais em algumas dioceses anarquicamente. Em conseqüência, o Papa suspendeu a Inquisição e, alegando que o rei o enganara (escondendo-lhe a conversão forçada de judeus no reinado de D. Manoel, 14951521), ordenou a anistia aos judeus e a restituição dos bens confiscados (Bula de 07/04/1535).

As razões sobre as quais se baseavam tais decisões de Clemente VII, são assaz significativas: a conversão -dos judeus infiéis deve ser propiciada mediante a persuasão e a doçura, das quais Cristo deu o exemplo, respeitando sempre o livre arbítrio humano; a conversão violenta ou extorquida dos judeus sob o reinado de D. Manoel era tida como façanha que não se deveria reproduzir. A Santa Sé assim procurava defender e proteger os cristãos-novos, vítimas do poder régio.

O Papa Clemente VII, que resistira a D. João III, morreu em 1534, tendo por sucessor Paulo III. O rei voltou a insistir junto ao Pontífice para conseguir o tipo de tribunal de Inquisição que atendia aos interesses da Coroa. Não o obteve propriamente, mas por Bula de 23/05/1536 Paulo III restabeleceu a Inquisição em Portugal, nomeando três Inquisidores e autorizando o rei a nomear outro; além disto, o Pontífice mandava que, durante três anos, os nomes das testemunhas de acusação não fossem acobertados por segredo e durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados; os Bispos teriam as mesmas faculdades que os Inquisidores na pesquisa das heresias. Por intermédio de seu Núncio em Lisboa, o Papa reservava a si o direito de fiscalizar o cumprimento da Bula, de examinar os processos quando bem o entendesse e de decidir em última instância.

É a partir desta Bula (23/05/1536) que se pode considerar estabelecida a Inquisição em Portugal. O rei, que não se dava por satisfeito com as disposições da Santa Sé, começou a burlá-las. Quis, antes do mais, subtrair a Inquisição à vigilância do Pontífice e, para tanto, suscitou incidentes numerosos a ponto de obrigar a partir o Núncio Capodiferro, que tinha poderes para suspender o tribunal, caso não fossem respeitadas as cláusulas de proteção aos cristãos-novos. Além disto, nomeou Inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então arcebispo de Braga, que, com seus 27 anos, não tinha idade legal para exercer tais funções. Enfim aproveitava ou provocava ocasiões ou pretextos para fazer que o público cresse na má fé dos judeus convertidos (cristãosnovos): assim apareceu um cartaz nas portas da catedral e de outras igrejas de Lisboa, anunciando a chegada próxima do Messias ...; um alfaiate de Setúbal apresentou-se ao público como Messias - o que não foi levado a sério pela população, mas bastou para que os agentes do rei fizessem grandes represálias e tentassem convencer Roma dos perigos do judaísmo em Portugal.

Apesar da má vontade do rei, o Papa fazia questão de manter sob seu controle o Santo Ofício em Portugal. Reforçando normas anteriores, o Pontífice emitiu nova Bula em 12/10/1539, que proibia aduzir testemunhas secretas e concedia outras garantias aos acusados, entre as quais o direito de apelação para o Papa; determinava outrossim que os emolumentos dos Inquisidores não fossem pagos mediante os bens dos prisioneiros.

Também esta Bula não foi observada em Portugal. O Papa então resolveu suspender a Inquisição pelo Breve de 22/09/1544; tomou a precaução de fazer publicar de surpresa em Lisboa este documento, levado secretamente para lá por um novo Núncio. O rei, profundamente golpeado, jogou a sua última cartada; requereu ao Papa que revogasse a suspensão e restaurasse a Inquisição sem qualquer limitação, e acrescentava a ameaça: "Se Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se espera, não poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os príncipes e os fiéis cristãos que o souberem, conhecerão que disso não sou causa nem ocasião".

Tais palavras continham a ameaça de desobediência formal ao Papa e de cisão na Igreja. D. João III seguiu o conselho que lhe fora dado pelos seus dois enviados à Santa Sé em 1535: negasse obediência ao Papa, imitando o exemplo do rei Henrique VIII da Inglaterra. Entre a obediência ao Papa, como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permitisse instituir um tribunal, que era no fundo um instrumento da política régia, o rei de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.

O Pontífice via-se naquele momento (1544/45) premido por outras graves preocupações, como a convocação e a preparação do Concílio de Trento, sobre o qual o Imperador Carlos V e outros monarcas tinham seus interesses. Em conseqüência, acabou por aceitar os pontos principais da solicitação de D. João III: por Bula de 16/07/1547, nomeou lnquisidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique e retirou aos Núncios em Lisboa a autoridade para intervirem nos assuntos de alçada da Inquisição; esta seguiria seus trâmites próprios, diversos dos habituais nos processos comuns. Ao mesmo tempo, porém, o Papa mitigava suas disposições: promulgou um Breve que suspendia o confisco de bens por dez anos; outro Breve suspendia por um ano a entrega de condenados ao braço secular (ou a aplicação da pena de morte). Em outro Breve ainda o Papa fazia recomendações tendentes a moderar os previsíveis excessos da Inquisição e a permitir a partida dos cristãos-novos para o estrangeiro. Pouco antes de morrer ou aos 08/01/1549, Paulo III editou novo Breve, que abolia o segredo das testemunhas - Breve este que provavelmente nunca foi aplicado em Portugal.

2. Inquisidor sempre mais regalista

Eis algumas passagens muito significativas da Introdução redigida pela Prof. Sônia Aparecida: