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O Fundamentalismo é uma atitude presente, de modo especial, entre os
protestantes norte-americanos e trazida para o Brasil. Diante dos
progressos das ciências, que parecem revolver as proposições da fé, muitos
protestantes se prendem a verdades fundamentais deduzidas da letra da
Biblia, rejeitando qualquer método crítico de estudo do texto sagrado. Isto
torna tal corrente fortemente agressiva não somente à cultura moderna, mas
também às demais correntes do Cristianismo, inclusive ao Catolicismo.
Os fundamentalistas baseiam suas atitudes na suposição de que os Estados
Unidos são uma nação escolhida por Deus (em lugar da Inglaterra, que
falhou) e essa nação deve estender sua fé religiosa protestante a toda a
América Latina. Não há dúvida, o Fundamentalismo se baseia sobre premissas
errôneas, não levando em conta que o texto sagrado foi escrito mediante a
tramitação de escritores orientais, distantes de nós e dotados de um
expressionismo que não é o do homem contemporâneo. Ouve-se dizer que
vários dos Novos Movimentos Religiosos são fundamentalistas. Todavia nem a
todos os cristãos é claro o que significa "Fundamentalismo". Eis por que
dedicaremos as linhas seguintes à análise deste conceito tal como é vivido
por correntes protestantes (sabemos que há também o Fundamentalismo
católico, o judaico e o islâmico).
ORIGEM DO TERMO E DO MOVIMENTO
0 vocábulo "Fundamentalismo" tem origem no protestantismo norte-americano
da segunda metade do século XIX e do começo do século XX. Com efeito;
entre 1878 e 1918 formaram-se, dentro do protestantismo dos Estados Unidos,
duas correntes: uma dita "fundamentalista" e a outra "modernista" ou
"liberal". A diversidade entre uma e outra estava no modo de interpretar a
Bíblia. Os fundamentalistas ensinavam que a Bíblia é obra de Deus, e não
dos homens; Deus terá inspirado palavra por palavra a homens santos; por
isto o texto sagrado há de ser tomado ao pé da letra, quer se trate de
história, de poesia, quer de profecia, quer de apocalipse... Qualquer
tentativa de recolocar os livros sagrados em seu ambiente histórico e
penetrá-los mediante o instrumental da lingüística, da literatura antiga,
da geografia, da arqueologia... é tida como concessão à pouca fé e à
profanação do texto inspirado. Aos fundamentalistas se opunham os
modernistas, professores da Universidade de Chicago, tidos como infiéis;
recorriam aos subsídios das ciências profanas para entender a Bíblia e,
além disto, se filiavam à corrente protestante liberal tendente ao
racionalismo.
Para combater o modernismo, em 1910 os fundamentalistas Lyman e Milton
Stewart, da Califórnia, financiaram a publicação de uma coleção de doze
volumes redigidos pelos "melhores e mais ortodoxos estudiosos da Bíblia",
sob a direção do evangelista A. C. Dixon e intitulada "The Fundamentals: A
Testimony to the Truth" (=Os Fundamentalistas: Um Testemunho à Verdade);
desta obra derivou-se o nome de "cristãos fundamentalistas". Estes julgavam poder
deduzir da Bíblia, com toda a certeza e sem necessidade de recorrer a
ciências humanas, as seguintes verdades: a SS. Trindade, a Divindade de
Jesus Cristo, a concepção virginal de Jesus Cristo, a Redenção pelo Sangue
de Cristo, a ressurreição corporal do Crucificado, a sua segunda vinda no
fim dos tempos para julgar os homens e instaurar o Reino de Deus
definitivo, a infalibilidade da Bíblia tomada ao pé da letra, a
autenticidade dos milagres do Evangelho. Tais artigos de fé não poderiam
sofrer a mínima hesitação. Conseqüentemente era rejeitada a Escola da
História das Formas, que estuda o desenvolvimento dos conceitos e palavras
da Bíblia com o cabedal das ciências modernas; esse método de trabalho era
tido como deletério e contrário à veracidade da S. Escritura, pois ensina
que Moisés não é o único autor do Pentateuco, que o livro de Daniel não
data do século VI a.C., mas do século II a.C. ou da época dos Macabeus e
de Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.), que o livro de Isaías encerra três
compêndios de profecias datadas de séculos diversos... Além do mais, os
fundamentalistas, entendendo literalmente Gênesis 1,1-3,24, ensinavam (e
ensinam) a criação do homem a partir do barro, a formação da mulher a
partir de uma costela de Adão, não aceitando qualquer hipótese
evolucionista; em 1925 promoveram em Dayton Tennesee "o processo dos
macacos" contra o biólogo J.T. Scopes, que defendia a origem do homem por
evolução da matéria viva preexistente. Para completar o quadro, seja mencionada
a expectativa fundamentalista de iminente fim do mundo, de reinado de
Cristo sobre a terra por mil anos (milenarismo). Na política foram muito
ativos na década de 1950, aderindo a J. MacCarthy contra o trio satânico,
constituído pelo liberalismo, o secularismo e o comunismo.
CONCEITUAÇÃO DE FUNDAMENTALISMO
0 fundamentalismo tem semelhanças com o integrismo, o conservadorismo, o
tradicionalismo, mas distingue-se destas correntes afins por sua origem
histórica e sua atuação. Podem-se atribuir dois significados ao
Fundamentalismo (um mais amplo, outro mais restrito), como nota F. Galindo
na obra "El protestantismo fundamentalista. Una experiencia ambigua para
la America Latina", pp. 136-138: "Em sentido amplo, o Fundamentalismo é
uma tendência atual das tradições judaica, cristã e muçulmana, que costuma
manifestar-se em reações mais ou menos violentas contra as mudanças
culturais. Os estudos de psicologia descrevem os seus adeptos mais zelosos
como pessoas autoritárias, indivíduos que se sentem ameaçados num mundo
dominado por potências malvadas que estão em permanente atitude de
conspiração. Pensam segundo esquemas simplicistas e imutáveis; diante
dos problemas de hoje são propensos a dar respostas autoritárias e
moralizantes. Quando as mudanças culturais chegam a um ponto crítico,
essas pessoas se agrupam em movimentos radicais dentro das suas próprias
tradições religiosas.
Em sentido estrito, o fundamentalismo é uma modalidade do protestantismo
norte-americano, uma `subespécie de evangelismo' (Marsden). Mais
precisamente, do ponto de vista histórico, é um movimento protestante
recente, que tem suas raízes no século XIX e se organizou no inicio do
século XX; na década de 1920 envolveu-se em controvérsias com diversas
denominações protestantes norte-americanas. Surgiu como reação a correntes
sociais e teológicas, que os fundamentalistas designaram como liberalismo
e modernismo, correntes tidas como ameaças ao Cristianismo tradicional ou
como apostasia religiosa... Mais precisamente, o Fundamentalismo pode ser
definido como um evangelismo reacionário frente a um evangelismo liberal
ou social".
0 Fundamentalismo estrito alimenta uma concepção pessimista do mundo e da
história, tidos como irremediavelmente entregues ao pecado e fadados a uma
catástrofe apocalíptica. Por isto conclui que o cristão não se deve ocupar
com obras sociais, a fim de tentar melhorar um mundo que não pode ser
melhorado, mas deve apregoar a conversão pessoal, para que cada cidadão possa
escapar dos males iminentes que pesam sobre o mundo e assim participar do
Reino milenar que Cristo há de instaurar após julgar este mundo.
Tal pessimismo se deriva de duas fontes principais:
O pietismo, por sua vez, enfatizava a conversão pessoal e recusava toda
discussão teológica que pudesse suscitar alguma dúvida de fé; daí a
rejeição do espírito crítico-científico, dos princípios racionais de
interpretação da Bíblia, e o apego à letra da Escritura Sagrada. Estas
características do pietismo se tomaram particularmente notórias e
acentuadas quando o protestantismo norte-americano teve que se confrontar
com os estudos científicos da Bíblia realizados nas Universidades
européias, principalmente na Alemanha, e com as teorias antropológicas
evolucionistas.
Eis, pois, em que consiste o Fundamentalismo:
Verifica-se que o Fundamentalismo norte-americano, do qual acabamos de
tratar, se tem fragmentado em facções de consistência duvidosa. Compreende,
porém, duas grandes correntes:
Atualmente nos Estados Unidos são, de modo geral, fundamentalistas os
pastores eletrônicos, que fazem sucesso no país, principalmente na classe
média branca. Os pregadores eletrônicos exprimem a mentalidade dessa classe
conservadora, puritana e nacionalista, convicta de que os Estados Unidos
são a nação eleita, cuja missão é estender o Reino de Deus a todo o
continente americano; a esta convicção se associam as teses fundamentalistas
relativas à letra da Bíblia, à expectativa de fim do mundo apocalíptico,
ao repúdio do comunismo e do ateísmo; acreditam no poder da oração para
obter curas milagrosas em grande escala.
Os pregadores eletrônicos que, conforme algumas estatísticas, atingem setenta
milhões de telespectadores ou radioouvintes, costumam pedir dinheiro, que
eles recebem em elevadas quantias. Um exemplo, entre outros, seja o do
famoso missionário televisivo J. Swaggart, que em 1988 atingia semanalmente
9.300.000 pessoas e tinha a receita de 140.000.000 de dólares; suas
pregações visavam principalmente ao comunismo, ao humanismo secularista e
à Igreja Católica, tidos como inimigos.
A corrente neo-fundamentalista não se contenta com sua atividade nos
Estados Unidos; estende a sua influência à América Latina, onde já
numerosas seitas estão atuando. Em nossos países, esse fundamentalismo assume
característica fortemente anticatólica; os americanos que vêm para cá,
alimentam, ao menos em seu íntimo, a persuasão de que estão desempenhando
um papel providencial e, de certo modo, messiânico. São proselitistas e
comunicam esse afã proselitista aos adeptos que vão conseguindo
conquistas. Desejam ocupar o lugar da Igreja Católica, considerada como
"Cristianismo viciado".
A penetração relativamente fácil desse Fundamentalismo em nossos países
latino-americanos explica-se, em grande parte, pela ignorância religiosa de
nossa gente; os católicos estão despreparados para enfrentar a capciosa e
agressiva pregação dos novos arautos; não sabem o que professam em seu
Credo; pela pobreza econômica e cultural de nossas populações, que se
deixam facilmente atrair por promessas de curas e graças extraordinárias,
assim como por "profecias relativas a intervenções drásticas de Deus, que
porá ordem no mundo"; pelo poderoso apoio financeiro que vem dos Estados
Unidos e facilita o uso dos meios de comunicação, as viagens, as
instalações de ordem escolar e hospitalar, o recurso à imprensa escrita, a
divulgação de panfletos impressos nos Estados Unidos em diversas línguas;
há quem julgue que certos regimes latino-americanos favorecem os fundamentalistas
por causa do anticomunismo professado por estes.
CONCLUSÃO
Diz-se que em todo erro está latente um cerne de verdade. Na base deste
princípio pode-se dizer que o Fundamentalismo faz questão de defender certos
valores ameaçados pela cultura pluralística ou mesmo materialista do mundo
atual. Os fundamentalistas querem preservar a identidade cristã inconfundível
na sociedade contemporânea.
Todavia, ao defender tais valores, o Fundamentalismo se mostra cego, pois
pretende ignorar que a Bíblia foi escrita segundo trâmites humanos, ou seja,
por homens de épocas recuadas, dotados de recursos de expressão muito
diversos dos do homem moderno. É esta convicção que justifica - ou mesmo torna
obrigatório - o estudo científico das Escrituras, com recurso às ciências
auxiliares (lingüística, história, arqueologia, paleografia,
papirologia...). Ignorar os gêneros literários e o procedimento dos
antigos escritores é fechar-se ao mundo da Bíblia e à sua mensagem, em vez
de cultivar fielmente a sua doutrina. Em última análise, a recusa de
reconhecer os moldes humanos da Palavra de Deus é, indiretamente, a recusa
do próprio mistério da Encarnação, pois na plenitude dos tempos o Verbo de
Deus falou aos homens mediante a natureza humana assumida no seio de Maria
Virgem em terra oriental, dentro do quadro histórico e geográfico da
Palestina.
A propósito do Fundamentalismo escreveu a Pontifícia Comissão Bíblica num
relatório datado de 18/11/1993: "0 Fundamentalismo recusa admitir que a
Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa em linguagem humana e haja
sido redigida, sob a inspiração divina, por autores humanos cuja capacidade
e cujos recursos eram limitados. Por isto, tende a tratar o texto bíblico
como se fora ditado literalmente pelo Espírito e não chega a reconhecer que
a Palavra de Deus foi formulada em linguagem e fraseologia condicionadas por
determinados modos humanos de pensar presentes nos textos bíblicos... 0
Fundamentalismo insiste também, de modo indevido, sobre a inerrância dos
pormenores dos textos bíblicos, principalmente quando se trata de fatos
históricos ou de pretensas verdades cientificas... 0 Fundamentalismo assim
esvazia o apelo lançado pelo próprio Evangelho".
0 Fundamentalismo, além disto, leva a grande estreiteza de vistas: tem como
conforme à realidade, porque contida na Bíblia, uma cosmologia antiga superada,
o que impede o diálogo ou uma concepção mais aberta das relações entre
cultura e fé. Baseia-se sobre uma leitura não crítica de alguns textos da
Bíblia para confirmar idéias políticas e diretrizes sociais marcadas por
preconceitos, por exemplo, racistas, totalmente contrários ao Evangelho'.
O Fundanmentalismo vem a ser perigoso, porque dá a impressão ilusória de que
as pessoas necessitadas de respostas para seus problemas as possam
encontrar interpretando a Bíblia ao pé da letra. Na verdade, a Bíblia não
responde diretamente a todos os problemas humanos; ela apresenta não raro
princípios gerais, dos quais cada qual deverá tirar conclusões precisas.
Em nossa época, tão angustiada e atormentada por interrogações sobre o
futuro, muitas pessoas sentem a necessidade de uma orientação precisa e
segura, e imaginam poder encontrá-la na Bíblia; os sectários, como as
Testemunhas de Jeová, exploram o texto sagrado prometendo intervenções
drásticas de Deus que satisfazem aos anseios de solução alimentados por muitos
dos nossos contemporâneos. Tal abuso da Bíblia é condenável.
"A letra mata, o espírito vivifica", diz São Paulo (2Cor 3,6).
Como quer que seja, os fundamentalistas lembram aos fiéis católicos a
exigência de guardarem a sua identidade, sem deixar de responder às
indagações e interpelações do mundo contemporâneo. Este artigo muito deve
ao Editorial de La Cività Cattolica 1994, II, pp. 3-16.
Esse protestantismo norte-americano assim instituído inspirava-se
fortemente no puritanismo calvinista, que era acentuadamente pessimista:
ensinava que o homem é incapaz de fazer o que seja, para salvar-se; por
isto é irrevogavelmente predestinado por Deus para salvar-se ou para condenar-se;
o homem também seria incapaz de transformar o mundo e a sociedade; donde
se seguia aceitação passiva da (des)ordem de coisas vigentes como sendo
disposta por Deus; daí, por exemplo, a manutenção da escravidão dos
negros: esta teria sido decretada por Deus, que amaldiçoou Cam - de quem
descenderiam os negros - e submeteu Cam e os seus descendentes a Sem e a
Jafé (Jafé, do qual descendem os brancos, conforme errônea interpretação
de Gn 9,21-27). Na verdade, os puritanos calvinistas que foram para a
América, julgavam que a Inglaterra, a "nação eleita", o "novo Israel",
escolhido por Deus para ser "um povo sujeito a Deus", falhara, de modo que
tocava a eles ser essa nação santa sujeita a Deus; deviam criar uma nova
terra de Canaã na nova Inglaterra; cumpririam assim os desígnios de Deus.
Deste modo o puritanismo comunicou ao protestantismo norte-americano a
convicção de ser "uma nação sujeita a Deus", até mesmo "a única nação
cristã do mundo", portadora da maravilhosa missão de instaurar o Reino de
Deus sobre a Terra e, de modo especial, estender a todo o continente americano
(e, por conseguinte, à América Latina) "a excelência dos seus princípios
divinos". Daí se seguia a conquista, por direito divino, dos territórios do
Caribe, a tutela sobre Cuba, a anexão de Porto Rico e o predomínio
econômico-político sobre todo o continente americano, segundo o princípio de
Monroe: "A América para os americanos (do Norte)".
AS FACETAS DO FUNDAMENTALISMO HOJE
Todavia ambas as correntes são contrárias ao ecumenismo, pois, sob o influxo
do Calvinismo, não têm estima pelas outras denominações cristãs. São
contrárias ao luteranismo, porque é religião de uma raça estrangeira, a
alemã; contrárias ao anglicanismo, pois este depende de Londres e da
Inglaterra, que os "Padres peregrinos" tiveram de abandonar por causa da
sua intolerância; contrárias à Igreja Católica, porque esta é a Igreja dos
estrangeiros, que acolhe raças inferiores (irlandeses, italianos, poloneses,
negros...), ao passo que o autêntico americano é WASP (White = branco;
Anglo-saxon = anglo-saxão; Protestant = protestante). Por estas mesmas
razões, os fundamentalistas não fazem parte do Conselho Mundial das
Igrejas, mas criaram o "Conselho Americano das Igrejas Cristãs".