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Martinho Lutero nasceu aos 11/11/1483 em Eisleben (Turíngia), de pai
mineiro um tanto rude e mãe austera. O ambiente de casa era severo; nele
foi educado o menino até os doze anos de idade. A família era católica fervorosa,
mas impregnada de superstições correntes na época: acreditavam em
misteriosas forças sobre-humanas, como seriam duendes, demônios íncubos e
súcubos, bruxas, que apareciam aos homens como se tivessem seu habitat nos
ares, nas águas, nas terras de pântano ou desertas; trovões e relâmpagos
eram atribuídos à ação de espíritos malignos ou infernais; as doenças eram
tidas como causadas pelo Maligno.
Mais de uma vez na sua vida, Lutero acreditou que via e ouvia Satanás sob
forma de cão ou outro animal, que o incomodava. Ao lado de estórias apavorantes,
Lutero recebeu instrução religiosa muito válida; aprendeu a celebrar as
grandes festas da Liturgia e a venerar os Santos, como os Apóstolos, São
Martinho, São Jorge, Santa Ana... A religião que Martinho aprendeu até os
doze anos de idade foi de temor mais do que de confiança, mais externa e
formalista do que interior profunda.
Estudou humanidades, em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach. Em 1501 Martinho
começou os estudos universitários em Erfurt (Turíngia), matriculando-se na
Faculdade de Artes ou Filosofia.
A filosofia que Lutero aprendeu na Universidade, era o aristotelismo
interpretado por Guilherme Ockham (t 1347) e sua escola; era a chamada
"via moderna", também dita "Nominalismo" ou "Terminismo". Afirmava que não
há conceitos universais, que exprimem a essência de alguma coisa; assim,
quando se diz "humanidade", não se exprime o essencial do ser humano ou
aquilo que está em todos os seres humanos, mas apenas se caracteriza um
indivíduo em particular; os conceitos universais seriam meros nomes, não
correspondentes a algo de objetivo ou à essência comum a todos os
indivíduos da mesma espécie. A conseqüência desta tese é que o intelecto
humano não é capaz de apreender as essências ou de atingir o que é
essencial a cada objeto; só perceberíamos um conjunto de notas acidentais.
Desta maneira a razão humana era depreciada. A metafísica era posta de
lado; entravam em seu lugar as ciências meramente experimentais, que
verificam os fenômenos e fazem estatísticas. Somente a fé nos levaria a
falar dos valores transcendentais; pela razão não se provaria a existência
de Deus nem a imortalidade da alma - o que redunda em fideísmo anti-racional.
Mais: se a razão e a metafísica são depreciadas, valoriza-se a vontade ou
o voluntarismo; isto significa que o bem e o mal são tais unicamente porque
Deus o quer e determina; o mal (matar, roubar, caluniar...) poderia ser um
bem se Deus o quisesse. O Nominalismo levava assim ao conceito de Deus
Soberano Arbitrário, mais terrível do que amável, identificado com uma vontade
todo-poderosa e quase caprichosa e tirânica, que tanto poderia condenar um
justo como salvar um pecador sem apagar o pecado deste.
A estas idéias se associava também o descrédito do magistério pontifício, em
favor do conciliarismo, que admitia a supremacia do Concílio Geral (congregando
todos os Bispos) sobre o Papa; a última instância decisória na Igreja seria
o Concílio Geral e não o sucessor de Pedro.
Tendo adquirido o mestrado em Artes ou Filosofia, Lutero se matriculou na
Faculdade de Direito em Erfurt.
Aos 2 de julho de 1505 deu-se um fato decisivo: quando voltava da casa de
seus pais para Erfurt, onde morava, quase foi fulminado por um raio.
Impressionado, exclamou então: "Ajuda-me, Santa Ana, e serei frade!".
Confessou posteriormente que se arrependeu de ter feito tal voto; os amigos
o quiseram dissuadir de cumpri-lo, mas Lutero julgava-se obrigado a
fazê-lo; nem o pai conseguiu desviá-lo do propósito. Sendo assim, quatorze dias
após proferir o voto, ou seja, aos 16/07/1505, Lutero, com vinte e dois
anos de idade incompletos, entrou no convento dos Agostinianos de Erfurt,
tido como uma casa religiosa de observância fervorosa.
Mais tarde, isto é, em 1521 Lutero escrevia a seu pai, confessando ter entrado
constrangido na Vida Religiosa: "Tu receavas, com paternal afeto, por
minha fraqueza, porque eu era um adolescente de 22 anos incompletos, idade
em que a adolescência fervilha... e porque conhecias muitos casos em que a
vida monástica resultara infeliz para não poucos. Tu, ao contrário, me
preparavas um honesto e opulento matrimônio... Por fim cedeste e submeteste
tua vontade à vontade de Deus, mas sem deixar de recear por minha causa. Pois
tenho muito presente na memória que, quando, já acalmado, conversavas comigo
e eu te dizia que o céu com seus terrores me tinha chamado, visto que eu não
me fazia frade por gosto nem de bom grado, muito menos por amor do corpo,
mas porque, assediado pelo terror e a angústia da morte repentina, fiz um
voto forçado pela necessidade, tu me replicaste: `Oxalá não haja aí engano
ou alucinação!'" (WeimarerAusgabe 8,573s).
Pergunta-se: por que Lutero ficou no convento, se tinha consciência de ter
optado constrangido ou a contragosto? A explicação é dada pelo desejo de
evitar o pecado e salvar sua alma fugindo do mundo em que as tentações
eram fortes; o perigo de se perder espiritualmente suscitava fases de
melancolia no jovem Lutero. No convento o frade improvisado procurou cumprir
a Regra, orando, jejuando, obedecendo, vivendo em castidade. Todavia sentia-se
angustiado e inquieto pelo temor de não estar agradando a Deus. De modo
especial perturbava-o a incerteza da predestinação: estaria ele
irremediavelmente destinado ao inferno? Era-lhe difícil conceber uma
resposta, visto que a filosofia ockhamista nominalista que aprendera, lhe
insuflava a idéia de um Deus misteriosamente arbitrário em seus desígnios
e tremendamente justiceiro, em vez do conceito de um Pai misericordioso,
cuja vontade salvífica universal se evidencia no fato de haver entregue
seu Filho pela salvação dos homens. Em sua crise, confessa Lutero que
"não amava, mas odiava o Deus justiceiro, que castigava os pecadores e,
se não blasfemava em silêncio, ao menos murmurava, terrivelmente indignado
contra Deus" (MIA 54,185).
Atormentado por dúvidas e remorsos, corria a confessar-se, acusando culpas que
talvez não fossem tais senão em sua imaginação altamente excitada. Afinal o
Deus tirânico que ele forjara, não era o Deus da Tradição cristã, mas sim o
Deus sugerido pelo regime de educação severa e pela formação filosófica
que recebera. Para tentar acalmar a sua alma, Lutero entregava-se à oração,
ao trabalho, ao jejum e à penitência, mas isto tudo lhe parecia inútil,
porque continuava a sentir em seu íntimo a tendência ao pecado ou
movimentos de ira, ódio, concupiscência desregrada...; as obras ascéticas
e virtuosas que praticava, de nada lhe serviam; sentia-se acusado interiormente;
ele, que entrara no convento esperando conseguir paz de consciência e
sentir Deus propício, via-se frustrado - o que muito o afligia.
Eis alguns testemunhos do próprio Lutero a respeito do seu estado de alma:
"Quanto mais me esforçava por cultivara contrição, tanto maior era a
força com que se levantavam as angústias da minha consciência; não me era
possível aceitar a absolvição e outras consolações que os meus confessores
me ministravam. Pois pensava comigo mesmo: Quem me garante que posso acreditar
nessas consolações? Aconteceu logo casualmente que, falando com meu Mestre
e lamentando-me com muitas lágrimas por sentir essas tentações que eu
padecia com freqüência por causa da minha idade, ele me disse o seguinte:
`Filho, que fazes? Não sabes que o Senhor nos mandou ter esperança?' Esta
única palavra me deu força para crer na absolvição" (WA 40,2. p. 412).
Todavia essa confiança era efêmera. Voltava a ser atormentado pela incerteza
de estar na graça de Deus. Escreveu então: "Por que suportei os mais
pesados trabalhos no mosteiro? Por que macerei meu corpo com jejuns,
vigílias e frio? Porque eu me esforçava por chegar à certeza de que assim
conseguiria o perdão dos meus pecados" (WA 43, 3255). "Quando eu era
monge, nada conseguia com minhas penitências, porque não queria reconhecer meu
pecado e minha impiedade... Em conseqüência, quanto mais eu corria e
desejava chegar a Cristo, tanto mais se afastava Ele de mim... Após a
confissão e a Missa não podia dar satisfação a mim mesmo, porque a
consciência não podia encontrar firme consolação nas obras praticadas"
(WA 43, 537). "No mosteiro eu não pensava em mulher nem em dinheiro ou
outros bens, mas o coração temia e estremecia pensando em como tornaria
Deus propício a mim mesmo" (WA 47, 589s).
Em 1515 Lutero foi designado pelos Superiores da Ordem de S. Agostinho para
lecionar as epístolas de São Paulo. Lendo e meditando tais textos, o frade
foi descobrindo a solução do seu problema, que constava de dois princípios
básicos:
"Quando eu estava no mosteiro, metido em minha cogula, era tão inimigo
de Cristo que, se eu visse uma escultura ou pintura que o apresentasse
crucificado, eu me aterrorizava, de modo que fechava os olhos e teria
preferido ver o diabo" (WA 47, 310). "Muitas vezes me assustei ao
nome de Jesus; quando eu contemplava Jesus na cruz, parecia-me que me
fulminava um raio e, quando se pronunciava o seu nome, teria preferido ouvir
o do demônio" (WA 47, 590).
Em particular quanto ao Ofício Divino (Liturgia das Horas), Lutero refere o
seguinte: "Muitas vezes passava eu dias inteiros lendo, pregando quatro
vezes ao dia, com omissão das horas canônicas. Quando chegava o sábado, eu
me encerrava na cela o dia inteiro em jejum, fatigando-me com assíduas
orações. Levei a coisa tão longe que a cabeça tonteou, e durante cinco
semanas não pude ver a luz do dia. Nessas cinco semanas acumulei boa
provisão de horas canônicas. Tendo recuperado a saúde, determinei cumprir
tudo aqui, mas sentia tantos incômodos que nem podia ver o livro"
(Tischreden 6077 V 474-75). "Eu costumava acumular minhas horas canônicas
por quatorze dias ou quatro semanas, quando tinha muito que fazer...; a
seguir, reservava uma semana inteira ou um dia ou três, em que me
encerrava no aposento, sem comer nem beber até ter rezado tudo"
(Tischreden 5428 V 137). "Certa vez assisti à promoção de doutores (na
Universidade) e descuidei-me das minhas horas. Durante a noite estourou
uma violenta tempestade. Então levantei-me e rezei minhas horas, pois
julguei que por causa de mim tivera origem a tormenta" (Tischreden
4919 IV 580).
O simples fato de sentir impulsos desregrados o atormentava como se tivesse
cometido graves pecados: "Eu experimentava diversos remédios,
confessava-me todos os dias, etc., mas não aproveitava nada, porque sempre
voltava a concupiscência da carne; por isto não me podia tranqüilizar, mas
me atormentava constantemente com esses pensamentos: `Cometeste tal ou tal
pecado. Além disto, sofres de inveja, impaciência, etc. Por conseguinte,
em vão te fizeste Religioso e sacerdote; todas as tuas boas obras são
inúteis'" (WA 40, 2 p. 91s).
A Teologia ensina que o sentir a concupiscência não é pecado se o cristão
não lhe dá consentimento. Mas, em virtude de sua formação ocamista, Lutero
valorizava o sentir mais do que o raciocínio, de modo que sentir o
desmando, mesmo sem lhe consentir, já lhe parecia ser pecado.
Em síntese, Lutero julgava que a concupiscência desregrada é o próprio
pecado original. Visto que aquela jamais se extingue no homem, segue-se que
o pecado original não é apagado pelo Batismo; por isto todo homem é
corrupto e rejeitado pela santidade de Deus; em tudo o que ele faça (mesmo
nas boas obras), ele peca; a vontade não é livre para praticar o bem.
Donde se conclui que a justificação se faz unicamente pela fé, dom de Deus,
sem colaboração ativa do homem. Foi sobre este pano de fundo que sobreveio o
episódio das indulgências.
A temática das indulgências geralmente é mal entendida e relatada por
historiadores profanos que descrevem a reforma luterana. A versão autêntica
e objetiva do assunto é proposta em outro artigo. Aqui apresentaremos apenas
os fatos como se deram na época de Lutero, influindo sobre as atitudes do
frade agostiniano.
Em 1514 teve origem na Alemanha uma situação pouco honesta. Com efeito,
Alberto de Hohenzollem, com 24 anos de idade, foi nomeado Arcebispo de
Magdeburgo (em fevereiro) e Administrador Apostólico de Halberstadt (em
setembro). No ano seguinte, o cabido de Mogúncia o elegeu para esta
diocese primacial da Alemanha. Caso aceitasse a eleição, teria que renunciar
às duas outras dioceses. Suplicou, porém, ao Papa Leão X que lhe
permitisse acumular as três dioceses - o que não era oportuno para a vida
pastoral dos diocesanos. Todavia o Pontífice lho permitiu, por razões de
conveniência ocasional, contanto que pagasse à Câmara Apostólica 10.000
ducados de ouro por tal dispensa, além dos 14.000 florins renanos já
desembolsados para receber o pálio (insígnia) de arcebispo e a confirmação
pontifícia. Para pagar tal dívida, Alberto resolveu pedir emprestado ao
banqueiro Tiago Függer, de Ausburgo, a quantia de 21.000 ducados e 500
florins, equivalente aproximadamente a 29.000 florins renanos.
A fim de conseguir reembolsar ao banqueiro, os príncipes eleitores Alberto
e seu irmão Joaquim se entenderam com a Cúria Romana no sentido de se
promover a pregação de indulgências nas três dioceses de Alberto e no
território de Brandenburgo submetido a Joaquim de Hchenzollern, sob a condição
de que a metade do dinheiro arrecadado se destinasse à construção da basílica
de São Pedro em Roma e a outra metade ficasse para Alberto, arcebispo de
Mogúncia. Em outubro de 1515 o Imperador Maximiliano interveio exigindo durante
três anos a contribuição de mil florins anuais em favor da igreja de São
Tiago em Innsbruck.
A pregação dessas indulgências foi confiada ao frade dominicano João Tetzel,
ardoroso pregador, de costumes íntegros, mas orador popular mais do que autêntico
teólogo. Com retórica tratou de comover e convencer os fiéis a dar sua
contribuição. Não vendia bulas papais que prometessem o perdão dos pecados,
como se tem dito, mas soube usar de dialética abusiva e imprudente - o que,
em parte, se compreende pelo fato de que seu trabalho era controlado por
funcionários do banqueiro Függer. Tetzel seguia as normas estabelecidas por
Alberto de Mogúncia no libelo "Instructio Summaria pro Subcommissariis".
Deve-se confessar que todo esse plano de arrecadar dinheiro e as suas finalidades
não merecem aprovação.
Quando a "Instructio Summaria" chegou às mãos de Martinho Lutero, este se
insurgiu "como um cavalo cego", e protestou energicamente junto ao
respectivo autor, Alberto de Mogúncia.
É comum dizer-se que Lutero concretizou tal protesto ao meio-dia de
31/10/1517, afixando às portas da Schlosskirche (igreja do castelo) de
Wittenberg 95 teses sobre as indulgências e
convidando todos os eruditos para uma disputa pública a respeito das
mesmas. Na verdade, porém, esta versão é lendária. Ninguém mencionou tal
façanha enquanto Lutero viveu. O primeiro a referi-ia foi Melancton em
1546; não se sabe donde tirou a notícia, nem ele cita fonte alguma; em
1517 Melancton não se achava em Wittenberg, mas sim em Tübingen; portanto
não foi testemunha do alegado. De resto, sabe-se que Melancton nem sempre
é exato quando narra pormenores da juventude de Lutero. Pode-se supor que,
lendo as 95 teses e o convite de Lutero para um debate público, tenha Melancton
imaginado que se tratava do anúncio de uma disputa acadêmica, anúncio que
se fazia geralmente afixando proclamas às portas das igrejas.
O fato certo é que, aos 31/10/1517, Frei Martinho Lutero escreveu, indignado,
uma carta de protesto ao arcebispo de Mogúncia, enviada com um exemplar de
suas teses. A carta pedia que fosse retirada de circulação a Instructio e
corrigido o modo de pregar as indulgências.
As portas do inferno terrificante pareciam abrir-se àquele frade desesperado:
"Conheço um homem (o próprio Lutero) que sofria tais penas em muitas ocasiões,
ainda que por brevíssimo intervalo de tempo; eram tão grandes e tão
infernais que nem a língua o pode dizer nem a pena escrever, nem o pode
crer quem não o tenha experimentado. Em conseqüência, se essas penas se
consumassem plenamente ou se protraíssem por meia-hora ou mesmo só pela
décima parte de uma hora, esse homem pereceria e todos os seus ossos se
reduziriam a cinzas. Deus se apresentaria horrivelmente irado, e com Ele
também todas as criaturas. Então não é possível fugir, não há consolação
nem interna nem externa, mas tudo é acusação... Não pode crer que seja
temporária aquela pena, só lhe resta um simples desejo de auxílio e um
horrendo gemido; não sabe ele a quem pedir socorro" (WA 1, 557). "Quem
pode amar a quem trata os pecadores segundo a justiça?" (WA 40, 2 p.
445). "Minha vida se aproxima do inferno e cada dia estou pior"
(Briefwechsel 560).
"De modo nenhum nos condena o fato de sermos pecadores, contanto que
desejemos ser justos... Convém, pois, permanecer nos pecados e gemer por
nos libertarmos deles na esperança da misericórdia de Deus" (WA 56,
266). Desenvolvendo tais concepções, Lutero chega a professar a
predestinação ao inferno e rejeita a universalidade da vontade salvífica
de Deus. Existem declarações do próprio Lutero que manifestam o seu estado
de alma angustiado e desesperado na década de 1510: "Bastava o nome de
Jesus Cristo nosso Salvador para que eu tremesse dos pés à cabeça" (WA
44, 716). "Tenho feito a experiência de que, quando alguém cai em
tentação ou quando a morte o atemoriza ou corre algum perigo, vem-lhe a
vontade de desesperar e fugir de Deus como do demônio" (WA 46, 660).