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Talvez nunca a palavra vocação tenha sido tão ouvida e badalada como
nos dias de hoje. Tal palavra parece que vem se tornando cada vez mais
"sociável". Digo isto pelo fato de a pouco tempo atrás pertencer quase que
exclusivamente à esfera religiosa. O que se vê é que, somando-se aos
profissionais autônomos (psicólogos), também empresas, escolas e universidades
dispõem de orientadores vocacionais para ajudarem as pessoas, sobretudo os
jovens, a discernirem ou descobrirem quais suas reais motivações e aptidões
e em que empregá-las para que possam chegar à sua realização pessoal e
social. As inseguranças e incertezas no discernimento vocacional parecem
ser proporcionadas pelo bombardeio de imagens e mensagens devido aos
avanços científicos e tecnológicos, que imprimem uma velocidade no ritmo
de vida inigualável em outros tempos e que despertam um sentimento profundo
de que tudo é provisório, fazendo com que o futuro se torne o grande
desconhecido e, por isso, uma ameaça angustiante. Vive-se o imediatismo e
a ausência de projetos de vida. A vida parece tornar-se sem sentido.
Constantemente ouvimos falar que todos temos vocação. Todos somos
vocacionados, ou seja, chamados à vida, à fé e ao serviço na comunidade e
na sociedade para o bem e para a edificação comum. A Bíblia, tida como
revelação do Deus criador e libertador, apresenta o projeto para a
felicidade do ser humano no mundo: a vida a serviço dos outros sem
interesses egoísticos e egolátricos é o ideal de humanização, de
libertação, de realização, de plenificação, enfim, de salvação. A própria
Bíblia se faz vocação para que a vida seja dom de amor. E os relatos
bíblicos de vocação, que são tidos como "as páginas mais impressionantes
da Bíblia", apresentam os vocacionados como chamados por Deus para
desempenharem uma missão em prol do povo, visando a libertação de tudo
aquilo que atrapalha e impede que a vida seja vivida como dádiva.
Na Bíblia a vocação é um chamado de Deus que exige uma resposta para realizar
uma missão.
O interessante é que toda vocação na Bíblia implica num sair de si, numa
conversão ou mudança de vida e tem por objeto uma missão. No Antigo
Testamento é sempre Deus quem chama, e o faz para uma pessoa ou grupo, para
enviar em missão, dando uma tarefa especial para realizar, concedendo dons
especiais necessários para o cumprimento da mesma, sendo que o próprio
Deus se faz presente, acompanhando no desenvolvimento do encargo.
Foi assim que aconteceu com Abraão (cf. Gn 12,1), com Moisés (cf. Ex 3,10.16),
com Amós (cf. Am 7,15), com Isaías (cf. Is 6,9), com Jeremias (cf. Jr 1,7),
com Ezequiel (cf. Ez 3,1-4), e com tantos outros, até chegar ao
vocacionado por excelência: Jesus de Nazaré. É na pessoa de Jesus que
acontece a encarnação do projeto de Deus para a humanidade. Jesus, por
amor às pessoas, entrega sua vida livre e gratuitamente, para que o humano,
se espelhando nele, se torne mais humanizado.
Para os cristãos Jesus é o protótipo, o modelo de toda vocação enquanto
ensinou o caminho para a plenitude humana e para a salvação. "Eu sou o
caminho, a verdade e a vida" (Jo 14,6), proclamou ele há quase dois mil
anos nas aldeias e cidades dos montes e vales da Galiléia, convidando
pessoas como André, Pedro, Tiago, João, Maria Madalena e tantos outros,
como também a nós hoje, a seguí-lo e a inspirar-se nele. "Vem e
segue-me" (Mc 10,21) é o grande convite ao desapego de nossas vidas e
a uma entrega confiante. E aos que se sentem interpelados, desafiados e se
colocam a caminho, Jesus os envia: "como o Pai me enviou, eu envio
vocês..." (Jo 20,21), para que "façam as obras que eu faço" (Jo
14,12). Aliás, todos nós que fomos batizados, além de escolhidos por Jesus,
somos enviados por ele: "Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que
vos escolhi e designei para irdes produzir frutos e para que o vosso fruto
permaneça..." (Jo 15,16).
Deus continua chamando através de Jesus e espera a sua resposta!
Um dos mais belos relatos vocacionais bíblicos do Novo Testamento podemos
encontrar em Mateus 9,35-38. Ei-lo:
O motivo é a compaixão que Jesus sente pelas multidões tidas por ele como
"ovelhas sem pastor": imagem bem conhecida no Antigo Testamento,
especialmente nos profetas Jeremias (cf. Jr 23) e Ezequiel (cf. Ez .34).
"A falta de pastor alude ao povo abandonado e traído pelos seus líderes,
sejam eles políticos, religiosos ou intelectuais que, em vez de servir ao
povo, servem-se do povo para satisfazer seus caprichos pessoais e principalmente
sua sede de poder. Em vez de promover a justiça a serviço da liberdade e da
vida, promove a injustiça, roubando o que o povo tem e o que o povo é".
É tendo em vista este quadro e esta realidade de abandono, de opressão, de
exploração, de marginalização e de exclusão que Jesus se coloca como o
"Bom Pastor" que cuida de suas "ovelhas", ama-as e defende-as dos perigos,
pois quer que "tenham vida em abundância" (Jo 10,10).
É por isso que Jesus insiste que se peça, se reze, se suplique ao "dono da
plantação" para que envie muitos "operários". Isto demonstra a preocupação
de Jesus com as pessoas, com o povo sofrido, enviando-lhes, em missão, os
seus discípulos. O trabalho da "colheita" exige engajamento e luta para
alcançar a comunhão desejada entre as pessoas e com Deus.
Como batizados, todos fomos indistintamente chamados a "fazer-se"
discípulos de Jesus numa prática de vida operosa, agindo como ele agiu,
proclamando a eminência do Reino por palavras e ações, suplicando e
rezando a Deus para que cada vez mais e mais pessoas se juntem a nós em
Jesus Cristo para que neste nosso mundo possa habitar a liberdade, a
justiça, a solidariedade, a dignidade humana e a paz.
Portanto, se é verdade que todos temos uma vocação, uma missão a
desempenhar, também é verdade que todos os que descobriram sua vocação têm
um papel fundamental no auxílio àqueles que adormecidos ou desatentos não
descobriram a sua, e por isso, não fazem de sua vida um dom de amor na
luta pelo bem de todos. Porquanto, não nos esqueçamos daquelas palavras do
mestre: "Se compreenderdes e praticardes o amor, felizes sereis"
(Jo 13,17).
Enfim, há quem diga que a única e verdadeira vocação cristã radical é o
amor. E mais, há quem diga que no coração do mundo palpita o amor,
permanentemente tentando ressoar em nossos corações. Resta-nos ouvir seu chamado
e abrir as portas para que ele possa entrar. E como o amor é mais forte do
que tudo nesta vida, no final, ele vencerá.
"Jesus percorria todas as cidades e aldeias, e ali ensinava em suas
sinagogas, proclamando a Boa Nova do reino e curando toda doença e toda
enfermidade. Vendo as multidões, tomou-se de compaixão por elas, porque estavam
exaustas e prostradas como ovelhas sem pastor. Então diz aos seus discípulos:
'A colheita é grande, mas os operários são poucos. Pedi, pois, ao Dono da
plantação que envie operários para a sua colheita'".
Esse texto, além de apresentar uma visão panorâmica e sintética da
atividade-missão de Jesus, que se traduz no ensinamento, no anúncio do
Reino e na ação de curar (leia-se também libertar e salvar), realça a
necessidade de que muitos "operários" sejam enviados por Deus à colheita evangélica.
A colheita é a figura que Mateus usa para indicar o agir divino e a
colaboração humana em vista da unidade do Reino. É um acontecimento de
encontro, de felicidade e de vida. Além do mais, Mt 9,35-38 introduz o
capítulo 10 de Mateus que sublinha a continuidade da missão do mestre nos
discípulos. Se olharmos em Mt 10,1, veremos que a missão dos discípulos é
continuar o que Jesus começou, fazer aquilo que ele fez.