OS SILÊNCIOS DE DEUS
Autor: d. Estevão Bettencourt
Fonte: Revista "Pergunte e Responderemos" - Out./1999
Transmissão: José Augusto
O sofrimento humano, especialmente o das crianças e o das pessoas inocentes,
é motivo de perplexidade, mesmo para quem tem fé. Deus parece indiferente
ao que afeta o ser humano em suas mais íntimas aspirações. No artigo que se
segue, o problema é exposto muito vivamente mediante testemunhos de pessoas
desesperadas. Seguir-se-á a elucidação da problemática:
- No plano natural mesmo, o sofrimento é inerente à dignidade humana e
vem a ser escola que engrandece;
- No plano da fé, o silêncio de Deus é rompido pelo Verbo que se fez
carne e assumiu tudo o que é humano - inclusive a dor mais extrema e a
morte - não a fim de suprimir as desgraças, mas com o objetivo de imprimir
novo sentido à dor humana, fazendo-a penhor de vida plena e transfigurada.
Em Jesus Deus Pai falou e fala aos homens. Os Santos são o eco prolongado
dessa voz.
O sofrimento é geralmente um mistério, pois contraria às mais íntimas
aspirações do ser humano. Principalmente o sofrimento infligido cruelmente
a seres inocentes, como são as crianças e os justos perseguidos, suscita
interrogações: onde fica Deus nesse contexto? Por que se cala, parecendo
ignorar a dor dos seus fiéis? Nas linhas subseqüentes, a problemática será
abordada em duas etapas:
- Exposição do questionamento;
- A solução:
- Filosófica ou racional; e
- A solução da fé.
1. A problemática
São numerosos os testemunhos de autores que exprimem a angústia do ser
humano perante o sofrimento, angústia agravada pelo silêncio de Deus. Eis
alguns depoimentos dos mais significativos:
1.1. O ateísmo
- Em 1936 Albert Camus, escritor francês ateu, encontrava-se em viagem
por uma das estradas da Algéria, em companhia de um amigo, quando se
depararam com horrível cena: um menino muçulmano, atingido violentamente
por um ônibus, jazia sobre o asfalto, sem dar sinal de vida. Voltando-se
para o amigo e apontando para o céu, murmurou Camus: "Como vês, Ele se
cala!". Tais palavras acusavam o Senhor Deus por não intervir no caso,
como se tal desgraça não lhe interessasse. A conclusão de tal observação
repetiria uma pergunta freqüente: como dizer que Deus é bom, se Ele se
mantém impassível diante da dor, principalmente diante da dor de um
inocente?
- No seu romance "La Peste", o mesmo Camus descreve uma cena em que o
Pe. Paneloux diz ao Dr. Rieux que o sofrimento é sinal do amor de Deus, que
de tal maneira quer salvar o homem. Responde Rieux: "Não, padre. Tenho outro
conceito de amor. Eu me recusarei até a morte a amar essa criação, na qual
crianças são torturadas" (La Peste, Paris 1974, p. 238).
- Em 1947 um jovem autor alemão, W. Borchert, escreveu um drama
intitulado "Fora, diante da porta", em que imagina um diálogo entre o
ex-combatente Berkmann e Deus:
"- Mas dize-me: quando é que és bom, ó bom Deus?
Foste bom quando permitiste fosse vítima da explosão de uma bomba meu
filho, que mal completara um ano, o meu filhinho? Então foste bom quando
deixaste que o matassem?...
Não, é verdade, Tu apenas o permitiste. Mas não ouviste quando ele gritava
e quando explodiam as bombas? Então onde estavas, ó bom Deus, quando as
bombas explodiam? Ou foste bom quando caíram mortos onze homens da minha
patrulha? Onze homens ao menos, bom Deus. É certo que os onze homens clamaram
forte na solidão do bosque, mas não estavas lá; realmente não estavas lá,
bom Deus. Foste bom em Stalingrado, bom Deus, foste bom lá; como? Sim? Mas
então quando é que foste bom, Deus, quando? Quando alguma vez te ocupaste
conosco, ó Deus?" (transcrito do artigo de L. Pozzoli "La perdita del
Padre nella letteratura dei 900" em "Rivista del Clero Italiano" 80, 1999,
nº 4, p. 279).
1.2. No povo de Israel
Já no Antigo Testamento o salmista confessava sua angústia pelo silêncio de
Deus:
"Senhor, por que ficas tão longe e te escondes no tempo da angústia? A
soberba do ímpio persegue o infeliz. Fiquem presos nas tramas que urdiram!
0 ímpio se gloria da própria ambição; o avarento que bendiz, despreza o
Senhor. 0 ímpio é soberbo, jamais investiga: 'Deus não existe!' é tudo o
que pensa" (Sl 10, 22-25).
0 Holocausto (Shoah) abalou profundamente a consciência judia pela tragédia
verificada nos campos de concentração de Auschwitz, Dachau, Treblinka... Os
judeus formularam perguntas angustiadas: "Onde estava Deus em
Auschwitz?", "Como pôde permitir que o seu povo fosse exterminado, sem que
Ele mesmo interviesse?", "Por que Deus ficou em silêncio enquanto tantas
crianças judias eram torturadas e mortas de maneiras tão cruéis?"
A estas perguntas alguns judeus tentaram responder apresentando um "novo
conceito de Deus após Auschwitz". Assim Hans Jonas, numa conferência na
Universidade de Tübingen (Alemanha) em 1984, afirmou que Deus quis,
enquanto durar a história dos homens, "despojar-se do poder de envolver-se
no curso físico das coisas deste mundo" (H. Jonas, "Le concept de Dieu
après Auschwitz. Une voix juive" Paris, PayotRivages, 1994, pp. 34s). 0
mesmo autor continua: "Em Auschwitz Deus ficou mudo. Não interveio, não
porque não o quisesse, mas porque não estava em condições de intervir.
Outorgando ao homem a liberdade, Deus renunciou à sua onipotência" (p.
34). Reconhecendo a autonomia do homem, Deus se terá retirado do mundo e
da história da humanidade, renunciando à sua onipotência.
Outros pensadores judeus foram mais adiante. Em 1944 J. Katzeneison
escreveu: "É bom que Deus não exista, mesmo que seja incômodo sermos
privados de Deus". R. L. Rubinstein perguntou: "Como podem os judeus
crer num Deus todo-poderoso e benévolo depois de Auschwitz?". Para E.
Wiesel, "Deus foi infiel às suas promessas; por isto é impossível
continuar a crer; mas também é impossível não mais crer" (cf. M.
Giuliani, Auschwitz nei pensiero ebraico. Brescia, Morcelliana 1998).
1.3. Entre os cristãos
Também os cristãos sentem angustiados a aparente ausência de Deus. Até
mesmo os mais unidos aos valores espirituais ou os mais enriquecidos com
graças especiais experimentaram (e experimentam) o sofrimento por causa do
silêncio de Deus.
São João da Cruz chama essas fases de aridez "noites do espírito";
nestas não somente Deus parece ausente, mas a alma justa tem a impressão de
estar rejeitada por Deus e condenada à perdição definitiva. A história da
espiritualidade cristã está cheia de casos de Santos e Santas que passam
pela noite do espírito com duração de anos.
A autobiografia de Santa Teresa de Lisieux refere longos períodos de
desolação espiritual da jovem carmelita: um muro parecia separá-la do céu,
quase sempre fechado, enquanto era assaltada por dúvidas de fé e tentações
de desespero. Tal estado de desolação acompanhou Teresa até o fim da vida,
quando finalmente Deus se fez "sentir" e ela pôde respirar na alegria e na
paz, murmurando: "Mon Dieu, je vous aime". Na manhã do dia em que
morreu, disse a Santa: "Passo por uma pura agonia, sem qualquer
consolação... Não; nunca teria acreditado que fosse possível sofrer tanto".
Estes depoimentos bastam para ilustrar o problema: é difícil compreender
que Deus não intervenha em tantos casos para livrar suas criaturas das
mãos de assassinos e malfeitores ou para salvar inocentes que sofrem
cruelmente. Teriam razão os ateus ao afirmar que tal ordem de coisas é
incompatível com a existência de um Deus que seja bom e, ao mesmo tempo,
todo-poderoso?
Tais perguntas sugerem reflexão.
2. Ponderando serenamente...
Não há dúvida, a realidade do sofrimento humano é, por vezes, obscura, de
modo que não se pode elucidar cada caso de dor. Como quer que seja, a razão
e a fé convergem entre si para dissipar a idéia de que o sofrimento é
incompatível com a existência de Deus bom e todo-poderoso. É o que passamos
a demonstrar.
2.1. Fala a razão
A razão aponta dois aspectos positivos e valiosos do sofrimento:
- Sintoma de perfeição ontológica: Verifica-se que o sofrimento
está ligado à perfeição dos seres. Com efeito; subamos a escala dos
seres:
- o mineral não sofre. Pode ser talhado e martelado sem que sinta dor. É
totalmente insensível;
- o vegetal, quando agredido, reage. A planta da qual se corta um ramo,
tende a se restaurar; por conseguinte, no plano em que começa a vida,
começa a réplica àquilo que pretende destruir o ser;
- o animal irracional (cão, gato... ) sofre, gemendo, chorando, urlando...
Goza de vida sensitiva; por isto sente a dor;
- o ser humano, que vive no plano intelectivo, sofre mais ainda.
Não somente sente dor física ou moral, mas também reflete sobre a sua dor
- o que o faz sofrer duplamente. E - note-se bem - quanto mais alguém é
nobre e digno, tanto mais sofre; assim quem muito ama, muito sofre. Só não
sofre quem é alienado ou doente mental ou... tarado e desnaturado... A razão
desse sofrimento está em que a pessoa percebe a diferença existente entre
o ideal (o que deveria ser) e a realidade; essa diferença suscita dor em
quem tem sensibilidade para os verdadeiros valores.
Donde se vê que o sofrimento não somente não é incompatível com a
auto-realização de alguém, mas chega a estar indissoluvelmente associado à
nobreza do ser humano. É sintoma de grandeza moral (desde que vivenciado
sem masoquismo nem sadismo).
- Escola de aperfeiçoamento espiritual: A experiência ensina que o
sofrimento contribui, muitas vezes (verdade é que nem sempre), para o
engrandecimento de quem sofre. Quebra o egoísmo ou o egocentrismo e torna
a pessoa mais compreensiva, mais aberta para o próximo e o mundo. Purifica o
olhar da mente, permitindo escalonar melhor os valores e ajudando a
desmascarar mais precisamente as bolhas de sabão, coloridas por fora, mas
vazias por dentro. 0 sofrimento desfaz ilusões e leva o ser humano a
procurar em plano superior a resposta cabal para seus anseios naturais.
Isto é tão verídico que já os filósofos gregos antes de Cristo faziam o
trocadilho: páthos máthos (=sofrimento é educação). 0 autor da epístola aos
Hebreus chega a dizer que Jesus, como homem, aprendeu mediante o que
sofreu: "émathen aph'hon épathen" (Hb 5, 8).
A Escritura põe em relevo o valor pedagógico do sofrimento. Assim diz o
Senhor a Israel: "Reconhece no teu coração que o Senhor teu Deus te
educava, como um homem educa seu filho" (Dt 8, 5). A carta aos Hebreus
retoma a temática: "É para a vossa educação que sofreis. Deus vos trata
como filhos. Qual é, com efeito, o filho cujo pai não o educa? Se estais
privados da educação, da qual todos participam, então sois bastardos e não
filhos" (Hb 12, 7s). "Deus nos educa para o aproveitamento, a fim de
nos comunicar a sua santidade" (Hb 12, 10). Assim como a energia do
átomo só se desprende quanto o átomo é bombardeado, assim também a energia
do herói ou da heroína só se atualiza e mobiliza quando martelada pela
dor...
Passemos agora à instância da fé.
2.2. Fala a fé
O que vai dito a seguir, só pode ser plenamente entendido por quem tenha
fé. Todavia é de notar que a noção de um Deus omisso, negligente ou
malvado é inconcebível: ou Deus é a suma perfeição, infalível em tudo, ou
não é, não existe. Um Deus que o homem possa criticar por ser Ele
imperfeito (menos justo ou santo do que o homem) não pode existir, pois tal
conceito seria contraditório. Quando o homem não entende o comportamento de
Deus, não diga que Ele está sendo falho (tal hipótese é inconsistente), mas
reconheça que a sabedoria de Deus é mais ampla do que a da criatura; por
isto é por vezes misteriosa, ... misteriosa, porém, porque mais profunda
do que a do homem. Não é lícito configurar Deus à semelhança de um Grande
Homem ou Grande Banqueiro.
Dito isto, passemos a uma reflexão teológica mais profunda.
Ensina a Escritura que Deus criou o homem num estado de bonança, em que estaria
isento de sofrimento e morte; cf. Gn 2, 17; 3, 16-19; Sb 1, 13s; 2, 23s.
Todavia o homem perdeu a graça original pelo pecado que cometeu. Em
conseqüência está sujeito à dor e à morte. Tal é a explicação que a fé
apresenta para o fenômeno. Deus, porém, não é indiferente a tal estado de
coisas: o próprio Deus assumiu a natureza humana com todas as conseqüências
do pecado; provou a dor e a morte, transfigurando-as ou tornando-as canais
para a posse da plena vida. Depois que Jesus morreu na cruz, o sofrimento
não desapareceu da face da terra, mas adquiriu sentido novo ou, melhor,
mudou de sinal: deixou de ser mero símbolo de perdição para tornar-se sinal
de redenção e salvação.
Assim pode-se dizer que Deus não se calou nem se cala diante do sofrimento
humano. Este assume, por vezes, proporções gigantescas devidas à perversidade
humana, mas é acompanhado pela Providência Divina. Aliás, diz S. Agostinho
que Deus nunca permitiria os males (cometidos pelo homem ou pelas
criaturas em geral) se não tivesse, em sua sabedoria, recursos para tirar dos
males bens ainda maiores; nem sempre nos é dado contemplar os frutos positivos
do sofrimento, mas é de crer que a sabedoria divina não se engana e
revelará aos homens, no fim da história, o feliz desfecho de muitas misteriosas
tragédias.
Diz Pascal (+1662) que Cristo estará em agonia até o fim dos tempos. Sim;
em cada justo é Cristo quem prolonga a sua Paixão redentora
(cf. CI 1, 24). Assim os Santos são, ao longo da história da humanidade,
os sinais de Deus; padecendo com Cristo, indicam aos seus irmãos o
significado de vitória que o sofrimento assume quando unido ao de Cristo.
Pelos Santos, que nunca faltarão no decorrer dos tempos, Deus rompe o
trágico silêncio e fala aos homens.