»» Artigos Diversos |
O Papa Alexandre VI é figura pouco feliz no conjunto dos Papas, visto que
levou conduta de vida devassa mesmo depois de eleito Pontífice. Se, de um
lado, se deve reconhecer isto, doutro lado é preciso observar que não
promulgou um só decreto que contrariasse à fé e aos bons costumes. O ouro
de Deus passou intacto por mãos sujas; não foi contaminado - o que atesta
a providencial assistência do Senhor Jesus à sua Igreja. - É de notar ainda
que os historiadores têm acentuado exageradamente os pontos sombrios da
conduta de Alexandre VI como também os de sua filha Lucrécia Borgia.
A sinceridade manda que se reconheçam as enormes falhas morais do Papa
Alexandre VI (1492-1503), embora seja notório que os historiadores
carregaram exageradamente as tintas do respectivo quadro. A fim de
conceber uma noção objetiva e fiel do Papado de Alexandre VI, é oportuno,
antes do mais, reconstituir o contexto histórico em que viveu tal Papa.
1. O Contexto Histórico
Tenha a palavra o historiador Carlos Castiglioni, Doutor da Biblioteca
Ambrosiana, em sua obra Historia de ]os Papas', tomo II p. 1738: "Alexandre
VI foi o produto natural da época em que viveu, e o expoente da sociedade
que o elevou ao cume supremo. As cortes da época, em vez de encontrar
motivos de escândalo na corte de Alexandre VI, viram nesta aspectos
admiráveis. Infelizmente o escândalo e a indignação só podiam ter lugar naqueles
personagens de escol que a corrupção pagã do Humanismo não havia
depravado.
O paganismo triunfante naquele século subiu até os escalões mais elevados
da sociedade; galgou os tronos e até mesmo a cátedra de São Pedro... No fim
do século XV e no começo do século XVI as mentes humanos foram transtornadas
por um perigoso sofisma: fizeram do bem e da beleza uma só coisa; em
conseqüência aceitavam, sem a mínima restrição, tudo o que apresentasse
uma bela forma estética ou artística. A religião, com suas faustosas
cerimônias, foi reduzida a uma bela formalidade; os templos passaram a ser
considerados monumentos de arte, carentes de sagrada inspiração. O delito
e o vício já não causavam horror, porque se apresentavam cercados de
cultura e de encanto. Na política, todo o direito repousava sobre a
força. Todas as leis, divinas e humanas, eram sacrificadas ao êxito. O
desprezo da vida tomou o caráter de cinismo, o adultério era uma aventura
de família; as cortes dos príncipes estavam cheias de filhos bastardos e
ilegítimos; podia mesmo acontecer que os bastardos e os ilegítimos
suplantassem os filhos legítimos nas dinastias reinantes... Naquela época
o Papado tomou o aspecto de um Principado civil".
Estas observações podem parecer exageradas. Todavia dão a ver o pano de
fundo ao qual sobreveio a figura do Papa Alexandre VI. O chamado
"Renascimento" levou os eruditos da época a descobrir os textos clássicos
das literaturas grega e latina; muitas obras desentulhadas despertaram nos
seus leitores o desejo de conduzir-se à moda dos homens e das mulheres da
sociedade pré-cristã, isentos da austera orientação do Cristianismo; o
ideal era viver segundo a natureza e seus impulsos espontâneos; renasceu
assim a mentalidade pagã com seus costumes devassos, criando um clima de
euforia, que pretendia exaltar o humano (donde Humanismo). Tal ambiente
relativizava as categorias da Moral cristã.
2. Eleição e traços biográficos de Alexandre VI
Após a morte do Papa Inocêncio VIII, os 23 Cardeais eleitores se reuniram
em conclave no dia 10 de agosto de 1492. Na noite seguinte pronunciaram-se
em favor do Cardeal Rodrigo Borgia, de 62 anos de idade, o qual tomou o
nome de Alexandre VI. Tem-se dito que o eleito subornou seus eleitores - o
que não parece verídico. O historiador Ferdinando La Torre escreveu um
estudo crítico intitulado "Conclave di Alessandro VI" (Florença 1933), em
que chega a estas conclusões: "A eleição de Alexandre VI não foi devida
a simonia. Antes, foi inspirada pelo reconhecimento das qualidades de
estadista que Rodrigo Borgia possuía".
Escolheram Borgia por causa de seu tino diplomático, seu caráter enérgico e
seus evidentes dotes de bom administrador. Além disto, o fato de ser
espanhol falava em seu favor, pois o colocava em situação de independência
frente aos diversos Estados da península itálica, que disputavam entre si
o privilégio de ter um Papa seu conterrâneo.
Escreve a propósito Carlos Castiglioni: "A escolha de Alexandre VI foi
acolhida com júbilo e esperança em Roma e fora de Roma. Giovanni Pico
della Mirandola escreveu-lhe uma carta de felicitações, na qual tecia
magnífico elogio do eleito. Na tarde de 12 de agosto, os cidadãos
conservadores de Roma, ou seja, oitocentos homens da nobreza montados a
cavalo, levando tochas nas mãos, dirigiram-se ao Vaticano para prestar homenagem
ao Papa recém-eleito, enquanto na cidade inteira se acendiam luminárias em
sinal de regozijo.
Aos 26 de agosto foi celebrada com pompa extraordinária a coroação de
Alexandre, abrilhantada pelas múltiplas e encantadoras manifestações da
mentalidade renascentista. Os enviados dos Estados itálicos se regozijavam
entusiasmados e os poetas exaltavam o novo Papa com elogios típicos da
literatura pagã, como se fosse ele o inaugurador de uma nova idade de
ouro. Seja citado, à guisa de espécimen, o seguinte dístico: 'Caesare
magna fuit, nunc Roma est maxima; Sextus regnat Alexander; ille vir, liste
Deus.'
Em Milão e em Florença foram celebradas festas especiais em honra de
Alexandre VI. O próprio rei de Nápoles mostrou-se mais do que satisfeito,
embora não tivesse desejado a eleição de Borgia, por ser do agrado dos
espanhóis, seus inimigos" (ob. cit. p. 1750).
2.2. Traços biográficos
É forçoso reconhecer que desde a juventude Rodrigo Borgia se entregou à
libertinagem de costumes. Não se corrigiu nem mesmo após receber a ordenação
sacerdotal em 1468. Foi vítima de uma sensualidade irrefreada até o fim de
sua vida. Houve tentativas de emenda, mas sempre frustradas pela veemência
das paixões. Chama particularmente a atenção o relacionamento adúltero de
Rodrigo Borgia com a nobre dama romana Vanozza de Cataneis, donde resultaram
quatro filhos reconhecidos por Rodrigo Borgia. Uma das grandes aspirações
do pontificado de Alexandre foi marcada pelo nepotismo; quis providenciar
ao enriquecimento e à promoção dos seus familiares.
Historiadores e novelistas têm explorado a figura de Lucrécia Borgia,
nascida em 1480, a predileta do pai. Era uma jovem alegre e desejosa de se
casar, dando provas de grande ternura. Não foi imune da corrupção moral de
sua época; mas certamente não mereceu a má fama que muito a desfigurou posteriormente.
Por duas vezes foi noiva e por três vezes se casou. O primeiro casamento,
realizado com João Sforza, senhor de Pésaro, foi logo dissolvido. O segundo
conheceu triste desfecho, visto que foi assassinado o seu marido, que era o
duque Afonso de Bisceglia, filho natural do rei Afonso II de Nápoles; o
terceiro enlace matrimonial, com o príncipe herdeiro de Ferrara, Afonso
d'Este, foi bem sucedido; de então por diante Lucrécia se comportou como
esposa cristã irrepreensível, e morreu em 1519 como membro da Ordem
Terceira de São Francisco, louvada pelo pobres, enaltecida pelos eruditos
e pelos artistas.
Papel funesto na vida de Alexandre VI foi desempenhado por seu filho César
Borgia, homem dotado de prendas brilhantes, mas altamente ambicioso e de
vida corrupta; era o tipo do tirano renascentista. Pai e filho aspiravam
à criação de um grande reino na Itália central; caso tal intento se
tornasse realidade, o Estado Pontifício, em grande parte, seria secularizado
ou subtraído à jurisdição da Igreja para atender a interesses da família
dos Borgia. Merece referência também o caso de Jerônimo Savonarola, Prior
do convento dominicano de São Marcos em Florença desde 1491. Era insigne
pregador e notável inteligência. Apregoava a observância estrita da Regra
conventual bem como a reforma geral dos costumes da época, inclusive a do
clero. Visto que tal atividade incomodava a não poucos, foi denunciado à
Santa Sé, que houve por bem proibir-lhe pregar. Após alguma hesitação,
Savonarola recusou obedecer, apelando para a sua consciência. Em
conseqüência foi punido com a excomunhão mediante um Breve papal de 13 de
maio de 1497. Savonarola reagiu, declarando injusta e inválida a
excomunhão, tendo em vista especialmente a figura do Papa que a pronunciara;
pôs-se a proclamar a deposição de Alexandre VI mediante um Concílio geral,
que trataria o Papa como herege incapaz de exercer as suas funções. Todavia
o povo de Florença, que sempre aclamara o frade dominicano e o acatara,
voltou-se contra ele por motivos fúteis; talvez desagradasse à sociedade
florentina a convicção inabalável, demonstrada por Savonarola, de ter uma
missão confiada por Deus a ser executada ferrenhamente.
O fato é que o convento de São Marcos foi assaltado pelo povo; o Prior foi
detido e levado perante um tribunal que lhe era contrário. Na base de
confissões extorquidas e falsas, foi condenado à morte. Aos 23 de maio de
1498, juntamente com dois confrades, foi degradado como "herege, cismático
e desprestigiador da Santa Sé".
A excomunhão proferida sobre Savonarola foi válida, pois a jurisdição do
Papa não depende do seu teor de vida. Foi, porém, excessivamente severa.
Savonarola era homem de vida ilibada e retas intenções. Todavia cedeu a
certo fanatismo em sua atitude profética e em sua ingerência em assuntos
políticos. A posteridade lhe tem feito justiça, reconhecendo a grandeza de
sua personalidade, movida pelo amor à causa do Evangelho.
O nome de Alexandre VI está associado ainda ao Tratado de Tordesilhas. Com
efeito; o Papa foi árbitro entre Espanha e Portugal, que litigavam entre
si a respeito das terras recém-descobertas e por descobrir. Em sua Bula de
4 de março de 1493, o Papa traçou uma linha imaginária de um a outro polo
do globo, passando a cem léguas a Oeste da mais ocidental ilha dos Açores
(chamada linha Vaticana ou de Alexandre VI). Tal linha dividiria o planeta
em duas partes, atribuindo ao rei Fernando o Católico, de Espanha, as
terras do Oeste da linha e a Portugal as do Leste. A Bula que o
estipulava, incutia aos reis católicos a obrigação de levar o Evangelho
aos habitantes de tais regiões. No século XVII houve quem interpretasse
erroneamente o gesto do Papa como sendo a doação do Novo Mundo à Espanha.
A França e a Inglaterra não quiseram reconhecer a decisão papal e procuraram
estabelecer suas colônias nas novas terras sempre que isto lhes foi
possível.
Não se pode deixar de notar que Alexandre VI foi grande protetor das Ordens
Religiosas; aprovou Congregações recém-fundadas e se empenhou pela evangelização
do Novo Mundo e da Groelândia.
Observa Carlos Castiglioni: "Desde que eleito, Alexandre VI empreendeu um
tipo de vida muito simples e frugal, com surpresa para toda a corte
pontifícia. Sua mesa era tão sóbria que os familiares do Papa preferiam
afastar-se dela" (ob. cit., p. 1750).
Em conclusão, ainda segundo o mesmo historiador: "Alexandre foi um
príncipe do seu tempo, com os vícios e os pecados dos outros príncipes,
com a única diferença de que não quis encobrir nem velar seus vícios com
hipocrisia e fingimento. Seu desacerto consiste em ter vivido como viviam,
na sua época, os homens do grande mundo político, sem levar em conta a sua
condição de sacerdote, Cardeal e Papa. Se não fora Papa, teria sido objeto
de compaixão, ou talvez de aplausos, por causa de seus vícios. Ninguém há
de querer isentá-lo de suas faltas em sua vida pessoal e em família, mas é
justo reconhecer que nenhum erro contra a fé se encontra em seus
escritos".
O pontificado de Alexandre VI é uma prova a mais de que a Divina
Providência rege e conserva a Igreja, apesar da eventual inércia dos
próprios Pontífices Romanos. Esta frase final merece ser enfatizada, pois,
de um lado, reconhece a miséria da criatura que Deus escolhe para o
pastoreio do seu rebanho, mas, de outro lado, afirma sabiamente que não é
o homem que governa a Igreja, mas é o próprio Cristo, que age no grande
sacramento da Igreja. Ele parece dormir na Barca de Pedro, mas não falta
na hora do perigo, de modo que a Barca não soçobrará até o fim dos tempos;
cf. Mc 4, 35-41.
2.1. A Eleição