»» Artigos Diversos |
William Webster, num ensaio entitulado "A 'Sola Scriptura' e a Igreja
Primitiva" tentou transformar a Igreja Primitiva em defensora da Sola
Scriptura. Em minha contribuição "Not by Scripture Alone" (Não Somente pela
Escritura"; Santa Bárbara Queenship, 1997), no Capítulo 8 e Apêndice,
descrevi três enfoques usados pelos apologistas Protestantes que defendiam a
Sola Scriptura no pensamento patrístico. William Webster escolheu o terceiro
enfoque que iguala a Sola Scriptura com a suficiência material das
Escrituras.
O Sr. Webster escreve:
Primeiramente, o Sr. Webster iguala a Sola Scriptura com a suficiência
material das Escrituras. Em segundo lugar, de acordo com o Sr. Webster, os
Reformadores foram responsáveis pela restauração desse entendimento limitado
da Sola Escritura. A Sola Scriptura consiste de um elemento material e de um
formal. Em primeiro lugar, a Sola Scriptura afirma que todas as doutrinas da
fé cristã estão contidas no corpo do Antigo e do Novo Testamentos. Por
conseguinte, as Escrituras são materialmente suficientes.
Em segundo lugar, as Escrituras não necessitam de outra autoridade
coordenadora tais como uma Igreja Mestra ou a Tradição para determinar seu
sentido. A Sola Scriptura sustenta a suficiência formal das Escrituras. Os
Católicos podem afirmar a suficiência material das Escrituras e, portanto, a
posição do Sr. Webster prova que a crença dos Padres da Igreja na
suficiência material da Sola Scriptura é inquestionável.
Para o Sr. Webster levantar essa questão da Sola Scriptura deve provar que
os Padres da Igreja afirmaram a suficiência formal das Escrituras. Os Padres
afirmaram tanto a suficiência material como a insuficiência formal das
Escrituras.
O Sr. Webster afirma:
Santo Irineu escreve como se antecipasse os primeiros Protestantes:
Infelizmente para o Sr. Webster, Ellen Flessman-Van Leer escreveu com
profundidade e sem equívoco sobre o entendimento de Santo Irineu e
Tertuliano a respeito da Tradição Apostólica. O Sr. Webster deixa-nos a
impressão de que Van Leer e os Padres abraçaram a Sola Scriptura. Nada
poderia estar mais longe da verdade. Ellen Flessman-Van Lerr disse:
Para uma completa refutação da reivindicação acima, cito minha
contribuição em "Não Somente pelas Escrituras" (Santa Bárbara Queenship,
1997), capítulo 8: "O que ensinaram os Padres da Igreja sobre as Escrituras e a Tradição" e o
Apêndice: "Um dossiê dos Padres da Igreja sobre as Escrituras e a
Tradição".
Há um par de temas recorrentes nos escritos dos Padres da Igreja sobre as
regras da fé. Primeiramente os Padres afirmam que a mais perfeita expressão
da fé dos Apóstolos se encontra nas Sagradas Escrituras. Os Padres afirmam a
suficiência material das Escrituras. De acordo com os Padres, todas as
doutrinas da fé Católica devem se encontrar na Bíblia. Em segundo lugar, os
Padres afirmam, ao mesmo tempo e com igual convicção, que a fé apostólica
foi transmitida à Igreja através da Tradição. De acordo com os Padres, as
Escrituras podem somente ser interpretadas dentro da Igreja Católica na luz
de sua Sagrada Tradição. Os Padres, principalmente aqueles que combateram as
heresias, afirmaram que a falha fatal dos hereges era interpretar as
Escrituras de acordo com suas interpretações particulares, diferentemente
da mãe Igreja e de sua Tradição. Em resumo, quando os Padres afirmam a
suficiência e autoridade das Escrituras, eles o fazem não no vazio, mas
dentro das estruturas da autoridade da Igreja e da Tradição. Permitam-me
citar passagem dos mesmos Padres que o Sr. Webster usou:
"Mas aprendendo a Fé e a professando, tenhais em mente e conservai aquilo
somente que vos é agora transmitido pela Igreja e que foi estruturado
fortemente nas Escrituras" (Leituras Catequéticas, 5,12).
O sr. Webster citou tal trecho, mas eu acrescento aqui que ele preste
atenção ao conceito católico de São Cirilo da regra da fé! Em outro lugar,
São Cirilo chama a atenção não para as Escrituras quando fala da definição
do Cânon:
"Aprendei também diligentemente da Igreja quais são os livros do Antigo
Testamento e quais os do Novo" (Leituras Catequéticas, 4,33).
"Pois é suficiente para provar nossa afirmação de que a Tradição veio até
nós por nossos pais, transmitida como uma herança, por sucessão dos
apóstolos e dos santos que os sucederam. Aqueles, por outro lado, que
mudaram suas doutrinas com novidades, necessitariam do suporte de abundantes
argumentos, se quisessem mostrar seus pontos de vista, não à luz de homens
controversos e instáveis, mas de homens de peso e firmeza. Mas já que suas
posições se apresentam sem fundamentos e sem provas, quem é tão louco e tão
ignorante para considerar os ensinamentos dos evangelistas e apóstolos, e
daqueles que sucessivamente brilharam como luzes nas igrejas de menos força
do que tais coisas sem sentido e sem provas?" (Contra Eunômio, 4,6).
"Sobre os dogmas e querigmas preservados pela Igreja, alguns de nós possuímos
ensinamento escrito e outros recebemos da tradição dos Apóstolos,
transmitidos pelo mistério. Com respeito à observância, ambos são da mesma
força. Ninguém que seja versado mesmo um pouco no proceder eclesiástico,
deverá contradizer qualquer um deles, em nada. Na verdade, se tentarmos
rejeitar os costumes não escritos como não tendo grande autoridade,
estaríamos inconscientemente danificando os Evangelhos em seus pontos
vitais; ou, mais ainda, estaríamos reduzindo o querigma a uma única
expressão" (O Espírito Santo, 27,36).
É claro que os Padres da primitiva Igreja apelaram para a Tradição lado a
lado com as Escrituras. Essa Tradição era normativa, substantiva, aplicável a todos, e preservada
pelas Igrejas Apostólicas, particularmente pela Sede de Roma.
"A Reforma foi responsável pela restauração na Igreja do princípio da Sola
Scriptura, princípio que tinha estado sempre presente na Igreja desde o
início da era pós-apostólica. Inicialmente os apóstolos ensinavam oralmente
mas, com o término da era apostólica, toda revelação especial que Deus
queria preservar para os homens foi reunida nas Escrituras escritas. Sola
Scriptura é o ensinamento e a crença de que há uma única revelação de Deus
que o homem possui atualmente: as Escrituras escritas ou a Bíblia, e que,
consequentemente, as Escrituras são materialmente suficientes e, já que
inspiradas por Deus, são por sua natureza a última autoridade para a
Igreja."
Dois pontos devem ser observados a respeito.
"E não há indicação nos escritos dos Padres de uma Tradição que é oral por
natureza, e para defender isso eles apelam para a Tradição Apostólica. A
Tradição Apostólica para Irineu e Tertuliano se constitui simplesmente das
Escrituras."
Observem o prestidigitação do Sr. Webster. Ele iguala o entendimento da
Tradição de Santo Irineu e de Tertuliano com as Escrituras. Ambos os Padres
entenderam claramente a Tradição como uma autoridade substantiva e
coordenadora ao lado das Escrituras. Esses mesmos Padres acreditavam que as
doutrinas da Igreja Católica estavam fundamentadas na Tradição tanto quanto
nas Escrituras. Contudo, não tiraram a errônea conclusão de que a Tradição
é igual às Escrituras já que a Tradição inclui as mesmas doutrinas contidas
nas Escrituras. A diferença primordial entre as Escrituras e a Tradição é
que se unem no mesmo ensinamento, mas através de meios diferentes. Uma
transmite as doutrinas via as Escrituras escritas, enquanto a Tradição
transmite as mesmas doutrinas através da vida, da fé e das práticas da
Igreja. Se as Escrituras fossem igualadas com a Tradição então os escritos
de Santo Irineu e Tertuliano ficariam sem sentido.
De conformidade com Santo Irineu, a Tradição é substantiva em seu conteúdo,
normativa em sua autoridade e continua a viver nas comunidades Apostólicas.
Como Tertuliano escreve:
"Erros de doutrina nas comunidades eclesiais devem ter surgido
necessariamente sobre vários assuntos. Quando, contudo, se encontrava de
forma unânime e igual aquela doutrina que fora passado a muitos, não era
resultado de um erro, mas da tradição. Pode alguém, então, ser tão
irresponsável que diga que aqueles que receberam a tradição estavam em
erro?" (Prescrição contra os Hereges, 28).
De modo igual, as palavras de Tertuliano ficariam sem sentido se
aplicássemos o entendimento do Sr. Webster sobre a Tradição.
O sr. Webster continua:
"Irineu e Tertuliano tiveram contenda com os Gnósticos que foram os
primeiros a sugerir e ensinar que possuíam uma Tradição oral Apostólica que
era independente das Escrituras. Aqueles Padres Primitivos rejeitaram tal
conceito e apelaram unicamente para as Escrituras para sua proclamação e
defesa da doutrina."
Primeiramente, Santo Irineu e Tertuliano não emitiram opinião sobre o
conceito de uma Tradição com autoridade ao lado das Escrituras. Suas
críticas aos Gnósticos foi à tradição que era privada e encontrada somente
entre os Gnósticos usada em oposição a uma Tradição que era pública,
reconhecida, ensinada e preservada pela Igreja Católica. Este foi o ponto
que foi lançado ao rosto dos Gnósticos por Santo Irineu e Tertuliano:
O entendimento do Sr. Webster de que os Padres apelaram somente para as
Escrituras é simplesmente uma fantasia. Como apoio de sua recente idéia de
que Santo Irineu e Tertuliano abraçaram a Sola Scriptura, Sr. Webster cita
Ellen-Flessman-Van Leer, uma erudita não católica.
"Para Irineu, por outro lado, a tradição e as Escrituras convivem ambas
perfeitamente sem problemas. Elas estão independentemente lado a lado, ambas
com autoridade total, ambas incondicionalmente verdadeiras, fidedignas e
convincentes" (A Tradição e As Escrituras na Igreja Primitiva, p. 139).
Em outro lugar, Van Leer comenta Tertuliano:
"Tertuliano disse explicitamente que os apóstolos transmitiram seus
ensinamentos ou oralmente ou mais tarde através de epístolas, e o corpo todo
desses ensinamentos ele designava com a palavra "traditio"... Isso é tradição
no sentido real da palavra. Ela foi usada na mensagem original dos
apóstolos, vindo em seguida à revelação, e na mensagem proclamada pela
Igreja, a qual foi recebida através dos apóstolos" ( Ibid. pp. 146, 147 e
168).
Van Leer conclui:
"Irineu e Tertuliano apontam para a tradição da Igreja como a fonte de
autoridade do ensinamento inalterável dos apóstolos, porque eles não mais
podiam apelar para a memória imediata como o faziam os primeiros escritores.
Em seu lugar eles permaneciam firmes na afirmação de que esse ensinamento
tinha sido transmitido fielmente de geração para geração. Poder-se-ia dizer
que, em seu modo de pensar, a sucessão apostólica ocupa, nos Padres
Apostólicos, o mesmo lugar que é dada à memória viva" (ibid. p.188).
Claramente o Sr. Webster não entendeu Van Leer, nem Santo Irineu, nem
Tertuliano. O Sr. Wesbster continua:
"A Bíblia foi a última autoridade para os Padres da Patrística. Ela era
materialmente suficiente e o árbitro final em todas as matérias de verdade
doutrinal. Como J.N.D. Kelly destacou: 'A evidentíssima posição do
prestígio gozado pelas Escrituras é o fato de que todo o esforço
teológico dos Padres - fossem seus objetivos polêmicos ou construtivos - era
despendido no acervo da exposição da Bíblia. Mais tarde, generalizadamente
se admitiu que, para que qualquer doutrina fosse aceita, fosse primeiramente
baseada nos fundamentos das Escrituras' (Primitivas Doutrinas Cristãs, San
Francisco: Harper & Row, pp. 42 e 46)."
Aqui temos o Sr. Webster apresentando erroneamente a fé de J.N.D. Kelly, o
erudito patrístico Anglicano. Interessante é como o Sr. Webster deixou de
citar o que se segue na mesma obra:
"Seria desnecessário juntar mais evidências. Durante todo o período as
Escrituras e a tradição foram colocadas como autoridades complementares,
diferentes na forma instrumental, mas coincidentes no conteúdo. Pesquisar o
que era tido como superior ou mais definitivo, é estudar a questão com
termos enganosos. Se as Escrituras eram completamente suficientes em
princípio, a tradição era reconhecida como a mais segura pista para sua
interpretação, porque na tradição a Igreja reteve um legado dos apóstolos
que estava embebido em todos os órgãos de sua vida institucional, laço
infalível do sentido e significação reais da revelação, da qual as
Escrituras e a tradição eram como testemunhas repetitivas" (Primitivas
Doutrinas Cristãs, pp. 47-48).
O Sr. Wesbster cita então vários parágrafos de São Cirilo de Jerusalém, São
Gregório de Nissa e São Basílio o Grande em apoio a Sola Scriptura. E resume
seus achados sobre a primitiva Igreja:
"Esses Padres são simplesmente representativos da totalidade dos Padres.
Cipriano, Orígenes, Hipólito, Atanásio, Firmiliano, Agostinho são alguns
poucos dos Padres que podem ser citados como proponentes do princípio da
Sola Scriptura, em adição a Tertuliano, Irineu, Cirilo e Gregório de Nyssa.
A primitiva Igreja operava com base no princípio da Sola Scriptura e foi seu
princípio histórico que os Reformadores procuraram restaurar na Igreja."
Irineu, Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nissa e Basílio são os únicos
Padres citados pelo sr. Webster para fundamentar a Sola Scriptura. Eu citei
passagens desses mesmos Padres para contradizer-lhe devidamente. Seria fácil
a qualquer um recortar e copiar trechos dos Padres à sua vontade, contudo
para encontrar a verdadeira fé de um Padre devemos verificar seus escritos
completos.
*Joseph A. Gallegos é graduado pela Universidade da Califórnia, pela
Universidade Irvine e da Costa Oeste, Los Angeles. É um Apologista Católico
muito ativo, tendo criado a "Corunum Apologetics BBS" em 1992, e um Site
internacional (http://www.cin.org/users/gallegos) por sua erudição no
pensamento patrístico com respeito ao Papado e à Tradição. É autor de "O
que ensinaram os Padres da Igreja sobre as Escrituras, a Tradição e a
Autoridade da Igreja" em "Não somente pelas Escrituras" (Queenship
Publishing, 1997).