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Nós, cristãos católicos, neste mês de junho, temos várias festas litúrgicas
importantes, destacamos: Ascensão do Senhor, Pentecostes,
Santíssima Trindade e Corpus Christi. Nesta reflexão queremos
aprofundar o sentido da festa do Corpo e Sangue de Cristo.
[...] Apoiando-nos nos
pressupostos da teologia litúrgica de Corpus Christi, tentaremos uma
aproximação bíblica a esta solenidade, isto é, abordaremos seu significado e
suas implicações para os cristãos a partir do enfoque da tradição teológica
bíblica.
ISTO É MEU CORPO E SANGUE DADO E DERRAMADO POR VÓS...
Dois foram o motivos que nos impeliram ao desenvolvimento desta reflexão:
Culturalmente o cristianismo bebe de duas matrizes de pensamento: o grego e
o judaico. A crença da imortalidade da alma se fundamenta no pensamento
filosófico de Platão cristianizado por Santo Agostinho. Esta tradição tinha
como verdadeiro e raiz última da realidade, o mundo das idéias (em termos
cristãos, o mundo espiritual) em detrimento do mundo sensível, o mundo do
nosso corpo carnal. Em outras palavras podemos dizer: é a desvalorização
deste mundo em função do mundo espiritual, que é mais perfeito, ideal,
enfim, o Reino dos Céus (na concepção cristã). Neste sentido a afirmação da
senhora tem toda a razão de ser.
Porém queremos resgatar a vertente do pensamento judaico que nos apresenta a
idéia da Ressurreição dos corpos. Esta idéia pode ser percebida em dois
momentos do Credo que professamos: "...desceu a mansão dos mortos;
ressuscitou ao terceiro dia..." e "...creio na ressurreição da carne..."
Nossa doutrina católica tem no Credo, síntese de toda a fé católica, a
crença na ressurreição. Esta crença provém de Jesus (Mt 22,30; 28,6; Mc
24,6-8).
A missão jesuânica tem sua revitalização na experiência da ressurreição de
Jesus após a sua morte na Cruz. Jesus pregou a ressurreição dos corpos, a
ressurreição de um corpo glorioso (Mt 22, 23-33). Jesus fala de seu
projeto e missão, o Reinado de Deus, com seu corpo, ou seja, com sua vida e
experiência. A pregação de Jesus não teria sentido se não fosse a partir de
sua morte e ressurreição. Isto é tão forte que a Cruz, o Pão e o Vinho,
principais símbolos da fé cristã, nos remetem ao seu corpo enquanto
explicitador de Deus e do Reinado. Assim, temos:
Pão = seu corpo
Vinho = seu sangue.
Os escritos do Novo Testamento colocam Jesus como O intervir de Deus na
História. Podemos constatar isto claramente no prólogo de João: "No
princípio era o Verbo; e o Verbo estava em Deus; e o Verbo é Deus; e o Verbo
se fez carne habitando entre nós." (Jo 1,1-14). Em outras palavras: o
nascimento, a vida, pregação, morte e ressurreição de Jesus estão em função
de sua missão: tornar seu corpo o ponto de encontro de Deus com a
humanidade. Este ponto de encontro só foi possível com o deslocamento do
templo: do templo de pedra para o seu corpo. Assim, o discipulado de Jesus,
e toda a humanidade, tem no corpo do mestre o encontro e a experiência de
Deus.
Podemos, portanto, perceber que na tradição teológica cristã bíblica a
solenidade litúrgica de Corpus Christi pode ser entendida como a presença de
Deus nos alimentos do Pão e do Vinho (Eucaristia) bem como a participação de
Deus na história humana.
FAZEI ISTO EM MEMÓRIA DE MIM!
O sentido teológico mais atual desta celebração, com a reforma litúrgica do
Concílio Vaticano II, é a unidade do povo ao redor do seu Senhor presente na
Eucaristia, sua força na caminhada do povo em marcha e o compromisso com os
irmãos mais sofridos de nossa sociedade.. Chegamos ao final do trajeto que
nos propusemos seguir. Nossa intuição tinha razão de ser: a tradição bíblica
e litúrgica não se opõem mas, por caminhos diferentes - e porque não
complementares! -, alcançam o mesmo querigma, núcleo da fé cristã: o corpo
de Jesus é o ponto de encontro de Deus com a humanidade. Arriscamo-nos em
uma resposta ao nosso mal-estar a partir da afirmação daquela senhora, que
não sabemos se chegará aos seus ouvidos. Porém, entrevemos em sua afirmação
um alerta para nós cristãos, e, ao mesmo tempo, uma crítica profunda à nossa
realidade atual.
Nossa tradição teológica cristã e as práticas populares do cristianismo, em
algum momento da caminhada histórica, relevou a segundo plano a
corporeidade, passando a desenvolver uma teologia de repugnância ao corpo. O
castigo e desprezo do corpo tornaram-se o caminho para chegar a Deus. Porém,
este caminho nos levou a um distanciamento cada vez maior dele.
Por outro lado, a secularização se apropriou do corpo de tal forma que nos
dá a impressão de que o corpo é filho da sociedade moderna: há um nexo
indissociável entre ambos. O corpo passou a ser objeto comercial, gerando
assim, a escravidão da grande maioria das pessoas na corrida por um corpo
perfeito. Corpo este gerador de milhões para o mercado neoliberal e que
camufla uma realidade de expropriação do corpo e dessacralização do ser
humano.
A solenidade de Corpus Christi é um grito de alerta e um apelo aos
seguidores de Jesus em resgatar o corpo como o lugar privilegiado do
encontro com Deus e com os irmãos. É na valorização de nossos corpos,
enquanto sacramento, que Jesus Ressuscitado continua vivo com seu corpo
glorioso. Façamos isto em Sua memória! (Jo 6,56).
Para início de conversa, esta afirmação toca diretamente num dilema
irreconciliável que o cristianismo se debate: crer na imortalidade da alma
ou na ressurreição dos corpos?
Cruz = lugar do corpo de Jesus
E a junção destes três
símbolos suscitam o grande paradoxo cristão: a morte (Cruz) de Jesus
possibilitou sua permanência real e viva entre nós (Pão e Vinho) (Jo 6,51).