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Enquanto Maria olha para a cruz, tolda-se a terra de um nevoeiro, como
se tivesse sido atingida bem em seu âmago por
uma espada. Enquanto observa, Maria percebe a semelhança entre o que ela
sente com o que foi profetizado por Simeão,
por ocasião do nascimento de Jesus:
Focalizando novamente a cruz, tudo fica nítido para ela:
- Então, esta é a espada.
É algo que toda a mãe teme: perder um filho. Este medo a perseguiu
sempre, desde as palavras premonitórias de Simeão.
Houve o terror por ocasião de Herodes, com a conspiração de assassinato das
criancinhas. E ainda a profecia de Isaías
sobre o Servo Sofredor sempre a perturbou. É como se a Morte tivesse
pousado sobre o berço de Jesus, desde o seu
nascimento, lançando ali uma sombra escura como uma constante
advertência de que um dia o menino lhe
pertenceria.
Bem no seu íntimo, Maria sabia que Jesus era uma criança nascida para
morrer. Não cresceria para ser um médico, ou um
rabi, ou um doutor da lei. Não se casaria, nem lhe daria netos que
levassem adiante o nome de família. Sabia disto há
muito tempo, mas havia encerrado esse sentimento em seu coração.
Nas poças de lágrimas nadam algumas recordações. O nascimento dele
naquele frio e escuro estábulo em Belém.
Como ele tremia, quando pegou-o pela primeira vez em seus braços, tão
pequenino e indefeso. Aquecera-o em seu seio e
cantara para que dormisse. Lembrava-se também de como, quando beijara
sua testa, ele a olhara tão calmo, tão sem
cuidados.
Novamente focaliza a cruz e vê homens encurvados, repartindo as roupas dele,
e lançando sortes sobre elas. Ergue os olhos
para seu filho e sofre. Ele está nu, e não há ninguém para aquecê-lo. Tem
sede, e não há ninguém para molhar os seus
lábios. Está cansado e não há ninguém para cantar-lhe uma canção para que
adormeça. Sua testa está franzida em agonia,
e não há ninguém para enxugar-lhe os ferimentos.
- Por que meu bebê mereceria isto?
Novamente seus olhos se turvam. Mais uma lembrança vem à tona. E mais
outra. Lembra-se de quando disse a primeira
palavra. Lembra-se dos seus primeiros passos. Recorda-se de como ele
gostava de ajudá-la a assar o pão, e ela então
costumava molhar um pedaço do pão fresco no mel e dava-lhe para comer.
Isto deixava-o contente e fazia com que seus
olhos brilhassem:
- Por que meu bebê mereceria isto?
Recorda-se dele com doze anos, quando já estava a serviço do Pai em
Jerusalém. Lembra-se claramente de ter pensado na ocasião: Ele não é
mais o meu bebê. Está ali na cruz agora por possuir também amor materno.
Está ali porque tem o amor de um Salvador. Mas, o amor não se parece com
o que vê. Gotas de sangue que escorrem pelo madeiro, molhando a
sujeira que está embaixo. Cravos pesados nos pés de Jesus. Costelas
marcando a pele magra. Moscas pousando nas feridas abertas. Olhos inchados
pela febre. Cabelos emaranhados na coroa de espinhos colocada pela manhã.
Mãos erguidas a Deus presas no madeiro. Um dorso encurvado, pendente pelos
punhos empalados, como um grotesco pingente. Isto é o que a mãe de Jesus
vê, enquanto desembainha seu coração para o golpe cruel da espada
romana. É mais do que uma mãe pode suportar. Mas de alguma forma ela
resiste. Principalmente por causa do
homem que está a seu lado, amparando-a.
João, o discípulo amado de Jesus. De braços dados, as duas pessoas a quem
Jesus mais ama neste mundo. Nunca foram tão próximos, como neste momento.
Ouvem Jesus murmurar enquanto ergue a cabeça. Esboça o seu adeus com a
língua ferida e os lábios rachados. João leva Maria para mais perto,
para poupar a Jesus o esforço, pois o seu filho tem muito que dizer a
ela: Obrigado por tudo... devo-lhe tanto... você foi a mãe mais querida
que alguém poderia ter.
Mas os espasmos no peito estão cada vez mais
freqüentes, e aquelas palavras não foram pronunciadas. Jesus apóia-se nos
cravos e com esforço enche os pulmões. A dor é extrema. As palavras saem
com um grande esforço. "Mulher, eis o teu filho". Maria olha para João,
aperta os seus braços enquanto tem os olhos marejados de lágrimas. Os
lábios esboçam um sorriso trêmulo. "João, eis a tua mãe".
O discípulo acena enquanto morde os lábios controlando a emoção. Foi
tudo quanto foi dito. Por um momento íntimo,
contemplam aquele a quem tanto amam. Então Jesus pende novamente.
De repente, Maria percebe, ele está a serviço do Pai. Ora àquele Pai,
para que a morte venha logo para o seu filho,
isto é, para o filho deles. Pois ambos perderam um filho hoje. Ambos têm
uma espada cravada no peito. E assim, apesar
da sua dor, apesar do aço frio que lhe trespassa a alma, ela resiste ao pé
da cruz. Não suporta olhar. Mas não suportaria
afastar-se dali também. Está ali. Pelo seu filho. Como qualquer mãe o
faria.
Ela estava lá quando ele veio ao mundo. Haveria de estar quando ele se
fosse. Estava lá quando ele foi empurrado por
um canal escuro e estreito até seus braços, quando nasceu. Estaria
presente agora quando ele estava sendo empurrado
através de outra passagem dolorosa que o devolvia para os braços do Pai.
"Esta criança é posta para queda e
elevação de muitos em Israel, para ser alvo de
contradição, e para que se manifestem os pensamentos de muitos
corações. E uma espada trespassará também a sua
alma".