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SEMANA SANTA
Por: d. Eugênio Sales (Arcebispo do Rio de Janeiro-RJ)
Fonte: Jornal "O Dia" de 16.04.2000
Transmissão: Cledson Ramos Bezerra

Na Semana Santa e, principalmente, no Tríduo Sagrado, a Liturgia nos faz reviver a entrada festiva do Senhor em Jerusalém, a bênção dos santos óleos, a constituição do sacerdócio e da eucaristia, o lava-pés, a viva memória da crucificação e morte do Salvador e, no sábado, o silêncio doloroso junto ao sepulcro. A vitória sobre o pecado e a alegria da redenção completam esses dias de extraordinária riqueza. Elas possuem uma poderosa força espiritual que atinge o âmago da vida cristã. As semanas da Quaresma nos predispõem devidamente a usufruir desse retorno a Deus, tempo de salvação, o aproveitamento de abundantes graças.

Neste ano do Grande Jubileu, a Quaresma é ainda mais enriquecida. Há, em toda a cristandade, um frenesi oriundo da comemoração do segundo milênio do nascimento do Redentor.

Quantas reflexões afloram em nosso espírito e fazem palpitar o coração do fiel! Uma compreensão maior desses eventos nos pródromos do cristianismo certamente constitui uma valiosa ajuda na Semana Santa e, dentro dela, no Tríduo Sagrado. Como os primeiros cristãos festejavam a data? Como aproveitavam os benefícios que jorram da paixão, morte e ressurreição piedosamente recordadas?

Apesar de todas as pesquisas já realizadas, ainda parece pobre a descrição da liturgia no início da Igreja primitiva. Então não havia grandes comunidades que pudessem dar maior solenidade à celebração da fé. Elas eram pequenas, reuniam-se os cristãos na maioria dos casos com grande dificuldade, arriscando perder a vida se fossem descobertos pelos pagãos e outros perseguidores. Pelo mesmo motivo, também os primeiros escritos conservam uma grande discrição. Não queriam expor o sagrado conhecimento aos pagãos.

Uma obra do final do século I, a Didaqué, no seu nono capítulo, oferece uma descrição de reuniões e do culto cristão. Parece que se inspira na chamada disciplina arcana, isto é, na guarda do segredo que cuidadosamente preservava o sagrado do conhecimento público. Impõe um estilo muito hermético. Assim se expressa: "Ninguém deve comer de vossa eucaristia, senão aqueles que são batizados em nome do Senhor. Porque vale a palavra do Senhor: Não jogueis aos cães o que é sagrado". Além do mais, prevalecia o ensinamento oral sobre os documentos, pois a Sagrada Escritura é posterior à própria tradição oral. Não eram muitos os textos.

Contudo, os parcos testemunhos escritos que temos relatam como nas primeiras gerações os cristãos já celebravam, solenemente, o dia anual da Páscoa. Sentia-se absoluta necessidade de instituir uma preparação condigna, para a grande vigília pascal, que durava longas horas e terminava normalmente com o raiar da Páscoa.

Terminada a cruel perseguição à Igreja, em 313, já não se atém ao silêncio imposto, sai das catacumbas e do esconderijo da liturgia doméstica. Sendo grande parte do povo cristão, a Igreja quer cantar e proclamar publicamente, a plenos pulmões, as maravilhas das obras de Deus. Vários fatores acrescentam-se a essa justificação. Por exemplo, a redescoberta por Helena, mãe do Imperador Constantino, em Jerusalém, da Cruz do Senhor, que os fiéis desse lugar tinham mantido oculta. Como a liturgia se expande, é lembrada com crescente e festiva participação das multidões, em templos públicos. Ambrósio, o grande bispo de Milão, e seu discípulo, Agostinho, dão-nos testemunho da beleza das cerimônias religiosas, com ricos repertórios de cantos, com procissões solenes e com a celebração dos mistérios vividos e ensinados por Jesus. Ambrósio não acha possível oficiar a Quinta-feira Santa sem repetir, com emocionante realismo, o lava-pés. Falam eles do "Tríduo do Cristo crucifixo, sepultado, ressuscitado" (Agostinho, Ep. 55,24). Na noite da Páscoa, os catecúmenos eram admitidos a mergulhar na morte e na ressurreição de Jesus, através do sacramento do batismo, fiel à interpretação que São Paulo tinha dado: "Pelo batismo nós somos sepultados com ele na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim também nós vivamos desde já a vida nova" (Rm 6,4; cfr. Cl 2,12; Ef 2,5-6).

De grande valor para nossos dias é a descrição feita por Egéria ou Etéria, uma cristã riquíssima, talvez do sul da França ou superiora de um importante convento na Espanha, que, com sua corte, visitou a Terra Santa, provavelmente entre 388 e 395, ou um pouco mais tarde. Ela nos deixou a primeira descrição do esplendor e da seriedade com que se celebravam a Semana Santa. Nos capítulos de 24 a 49 do seu relatório, ela descreve a vida litúrgica em Jerusalém na Semana Santa. Ela relata a importância que se dava a uma sólida preparação dos catecúmenos para o batismo, na vigília pascal. Fala ainda da solene veneração da Santa Cruz na Sexta-feira Santa, cerimônia que durava várias horas. Era a Igreja que nascia, raízes dessas celebrações litúrgicas em nossos dias. O exemplo dos primeiros cristãos nos ajuda em uma preparação adequada e em uma celebração condigna da Semana Santa neste ano santo, o Grande Jubileu do Nascimento de Jesus. Acresce que em todo o Brasil comemoraremos, com alegria, o quinto centenário do descobrimento. A fé cristã foi trazida à nossa Terra, espalhou-se e iluminou a Pátria brasileira. Neste rico tempo recordamos a paixão, a morte e a ressurreição do Senhor. Vivamos este período em clima sagrado, que não é um tempo de turismo. Imensa riqueza é posta à nossa disposição. Aproveitemo-la para aperfeiçoar a obra iniciada pelos primeiros missionários e propiciar um futuro melhor aos brasileiros.