A g n u s D e i

A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
Autor: Charles Péguy
Fonte: As Tapeçarias - Eva
Tradução: José Fernandes Vidal

Ó mulher, me escutai: quando as almas dos mortos
No pó de suas paróquias vierem procurar,
Após enorme embate, em meio ao pesar,
O pouco que há de haver de seus desfeitos corpos;

E quando hão de se erguer nos campos de batalha
Tantos soldados mortos por reinado vão,
Quando no alto dos fortes já despertarão
Os guardas hibernando em terrífica mortalha...

Quando poeira e cinza em tudo há de se ver,
A Bela Adormecida em bosque acordará,
O pagem, ao rei belo e a rainha dirá:
- Chegou o grande dia, Amo, vamos descer...

Quando não mais se ouvir que só um surdo abalo
De um mundo que se acaba em desmoronamento,
Quando o mundo será como um acampamento
Repleto de surpresas a envergonhá-lo;

Quando a imensa mansão dos vivos e dos mortos
Já não puder mostrar senão sua decadência,
E do fraco e do forte, uma antiga pendência
Já não puder mostrar senão iguais esforços;

Quando já não se vir senão caos à frente
De um mundo que vacila e que se vai ao chão,
E quando já for vista a imensa privação
De um solo que foi firme e sedentário sempre;

E quando irão se erguer dos campos de imundícias
Mil mártires lançados nos fossos romanos,
E quando irão se erguer nos corações humanos
Recordações infindas de tantas malícias;

E quando sob os adros de altas catedrais,
As gentes libertadas das grandes necrópoles
De Paris e de Reims, de todas as metrópoles
Hão de levar o horror das celas sepulcrais;

Quando se reagruparem frente às praças públicas,
Ou se forem postar sob os velhos postigos,
E andarem nos passeios sob olmos antigos,
Quando a aclamar voltarem as grandes repúblicas;

Quando o homem for se erguer da velhíssima tumba,
Há de afastar as sarças e as flores de urtiga,
E quando for subir a escada tão antiga
A cada passo o passo no silêncio afunda;

Quando o homem for voltar ao berço onde nasceu,
Buscar seu velho corpo em meio a seus amigos,
Nessas modestas celas, habituais abrigos
Dos mortos da paróquia e de quem lá morreu;

E irá reconhecer um a um seus parentes
Sob a sombra da igreja postos tão esquálidos,
E tornará a ver sob os ciprestes pálidos
Sete palmos de terra, sua herança somente.

Quando for encontrar todos os seus rebentos,
Os filhos de seus filhos e os que desses são,
E todos da família de seu primo irmão,
Tal como em turmas vinham aos seus casamentos;

Quando todos acharem sua casa, sua raça,
No dia de as perder, se não de as conservar,
Quando todos acharem a razão e a graça,
No dia de as perder, se não de as conservar;

Quando os ressuscitados forem pelas vias
Procurando o caminho, ainda tão pasmados,
Muitos se dando as mãos, com os olhos ofuscados,
Reconhecendo mal onde estão, se haveria

Senda que a mocidade amorosa reencontre,
Ainda tão pasmados de vir esse dia,
Ainda acometidos da antiga agonia,
Reconhecendo mal antes que a aurora aponte

Caminho que lhes mostrem sua infância primeira,
Ainda em aflição de terem assim voltados,
Em seus corpos despidos, pobres e humilhados,
Reconhecendo mal sua casa derradeira;

E os caminhos floridos que eram sua ternura,
E os antigos lilases das velhas vielas,
A rosa e o cravo e quantas mais das flores belas,
Antes das outras ver de nobre formosura;

Quando irão avançar na noite que é sem fim,
Apalpando e buscando sua comitiva,
Quando irão enfrentar prova definitiva
Que vem após a morte e que se fixa assim...

Quando irão avançar nessa adversidade,
Já desacostumados de estradas da terra,
Já desabituados da antiga cidade
E da salutar ordem que sempre lhes dera;

Quando não se ouvirá mais que desmembramento
De um mundo que se vai como que esquartejado,
Quando não se verá mais que derrocamento
De um mundo que se abate qual muro rachado;

Quando vossos perdidos filhos, mãe primeva,
A via hão de fazer dos antigos labores,
E quando hão de passar o tempo de suas dores
À sombra de sua igreja que em seguro os leva;

Quando eles avançarem nesse último val,
Revestidos nos velhos corpos, perturbados,
Com seus antigos zelos, remorsos passados,
Por serem devolvidos ao pendor carnal;

Quando forem rever os dias de aflição,
Agora belos mais que os de felicidade,
Quando forem lembrar os de integridade,
Agora amados mais que os de satisfação;

Quando virem o altar, as primeiras escadas,
Quando virem o templo e sua fila primeira,
Os mármores benditos e a fiel soleira,
Firme pedra angular romana, arcos e arcadas,

Do modo que eles viam na idosa alegria;
Quando irão caminhar lado ao fosso inimigo,
Quando irão recordar em seu viver antigo
Um dia de candura e outro que o contraria;

Quando irão percorrer toda a longa murada,
Quando irão avistar as altas chaminés,
A cada passo sós, feridos no revés
Pela recordação da vida já passada;

...Quando nesse lugar os altíssimos nobres
Não serão mais bem-vindos que os vindos atrás,
E as veste mais pesadas que deslumbram mais
Não terão mais valor que os haveres dos pobres;

E os filhos degredados, rainha do pranto,
Prosseguirão assim na sombra que se fez,
Quando se esforçarão em derradeira vez
No caminho comum, solitário, no entanto...

...Quando forem andando nessa eterna noite,
Quando houverem passado frente ao forno usual,
Ao moinho de vento e ao prado comunal,
Em grupos como à missa iam da meia noite,

Quando forem passar em frente ao maioral,
Ante a forja, a bigorna e o secular poder,
Ferindo-se em cortante latada sem ver,
Ainda adormecidos, se movendo mal

Nas sendas que eram suas de ingênua aspereza,
E quando irão tremer nesse final trespasse,
Por causa da incerteza e de sua fraqueza,
Vós bem podeis trazer luz que os iluminasse.

Então, mãe do leproso e do mordomo-mor,
Vós bem sabeis achar nessa perturbação,
Vós bem podeis achar nessa complicação,
Para aclarar seus passos um luzeiro só,

Quando forem ficar sob a velha poterna,
Vós bem podeis achar para os jovens mendigos,
Para o moço recruta e os soldados antigos,
Para aclarar seus passos humilde lanterna:

Podeis achar com vossos poderes falidos
O pouco que faz falta ao cortejo de luto,
Esse tão pouco que é a todos de tal grupo
Uma recordação dos caminhos perdidos.


N.do T.: Atente-se para o fato de ser nomeada na Fonte do Poema - Eva. Sim, Péguy inesperadamente nos faz solicitar a mãe primeva, sem dela citar o nome, que se recorde daquele caminho que poderia levar a multidão de seus degredados filhos de volta ao Paraíso, de onde foi expulsa. É um imaginoso, poético e triste pedido. Como disse, inesperado. Sabemos que esse Caminho conhece-o bem e está capacitada a no-lo ensinar a Segunda Eva, Maria. E em outras preces é a ela que Péguy recorre. Como, também, rezamos na Salve Rainha : "...a vós bradamos, degredados filhos de Eva..."