A g n u s D e i

MÁRTIRES BRASILEIROS
Autor: d. Eugênio Sales
Fonte: Jornal "O Dia" (05.03.2000)
Transmissão: Cledson Ramos

Neste 5 de março [de 2000], a Igreja, oficialmente, reconhece o martírio ocorrido em Cunhaú e Uruaçu, no Rio Grande do Norte, nos distantes idos de 1645, durante a ocupação holandesa. São elevados à honra dos altares, como bem-aventurados, 30 vítimas do ódio a Deus e sua Igreja, e entre eles estavam sacerdotes. O número dos massacrados era bem superior ao que as páginas da História guardaram.

O prefeito da Congregação das Causas dos Santos, na reunião de 21 de dezembro de 1998, quando o santo padre confirmou a heroicidade cristã que abriu as portas para a beatificação, chamou-os de "proto-mártires do Brasil". São glorificados com essa dignidade exatamente quando o Brasil celebra os 500 anos do descobrimento. Os novos bem-aventurados serão fatores eficazes junto a Cristo, em favor do crescimento de nosso imenso País na fé cristã e adesão à sua Igreja.

O martírio pode ser visto sob diversos aspectos. Entretanto, para ser considerado cristão, a morte deve ser acolhida livremente. Assim, o fiel morto em uma guerra religiosa não receberia esse título. Igualmente supõe a entrega da vida a um Deus pessoal e não apenas a um ideal, mesmo nobre, como a luta pela Justiça ou por uma ideologia. Por isso, o martírio é mais que qualquer heroísmo: é o amor consciente, acima de tudo. Isso nos faz entender o impacto que, desde os primórdios do cristianismo, esse gesto exerce sobre os cristãos e mesmo os pagãos.

O motivo do martírio cristão está em Jesus Cristo, que se identifica com o servo de Javé, a ser esmagado, e cuja morte traz a salvação do mundo. Morrer com Cristo, sem resistência, é uma entrega a Deus que é aceita por Ele. Em conseqüência, é uma participação na Cruz de Cristo, na força redentora de sua morte. A intrepidez pessoal desse gesto de entrega tem sua profundidade na identificação com a sorte de Jesus entregue sempre à vontade do Pai. "Morrer com Cristo, para com Ele ressuscitar", diz São Paulo (Rm 6,3-11). O mártir é alguém contra os valores enaltecidos neste mundo: o poder, o prazer, o dinheiro, o prestígio. Jesus, por seu sacrifício, patenteia o Evangelho e suas exigências na vida do fiel e o morto por amor a ele faz suas todas as opções do mesmo Cristo. Torna-se o testemunho da veracidade da mensagem evangélica de absoluta confiança no Pai.

Na história da Igreja as mais famosas perseguições tiveram início no Império Romano, com Nero, (54-68) decretada após o incêndio de Roma. Esse imperador tornou-se o símbolo da crueldade. Tácito (Annales, XV,44) descreve as atrocidades. Uma outra que se salientou ocorreu durante o governo do Imperador Décio (249-251). A Igreja havia crescido e estava bem-estruturada. Segundo relata Cipriano de Cartago, Décio temia mais a eleição de um santo bispo em Roma do que o surgimento de um rei que fosse seu opositor. Muitos cristãos apostataram (chamados "lapsi") ou fugiram. E também elevado foi o número dos que enfrentaram a tortura e a morte.

As últimas grandes perseguições do Império Romano ocorreram no governo do Imperador Diocleciano (284-305). Foi decretada a destruição de todas as igrejas, confisco dos livros dos cristãos e a degradação social de todos os que aderiram ao cristianismo. Até o exército romano sofreu rigorosa "limpeza" por motivo da fé cristã. Diz o historiador Eusébio que no Egito houve dias em que até 100 mártires eram sacrificados.

A liberdade da Igreja concedida por Constantino pôs termo a essa dolorosa fase da História eclesiástica. No entanto, dois aspectos devem ser considerados. O crescimento da Igreja por todo o mundo, apesar de tantos sofrimentos. E o outro, é ser o martírio, ora mais ora menos, o companheiro da longa viagem da instituição fundada por Cristo há 2 mil anos atrás. Sempre perseguida, mas viva até nossos dias.

A beatificação dos sacrificados por ódio à fé católica em Cunhaú e Oruaçu, no Rio Grande do Norte, na Arquidiocese de Natal, se insere, de modo admirável, no longo calvário da Igreja. Sangue e morte, mas sempre ressurreição e vida fecunda.

Neste dia 5, não participamos apenas da glorificação desses intrépidos cristãos, mas abrem-se para nós grandes perspectivas de favores espirituais e, de maneira fecunda, surge o apelo que vem do Evangelho pelo sacrifício da própria existência terrestre, por fidelidade à fé católica. O papa João Paulo II, em sua homilia no encerramento do XI Congresso Eucarístico Nacional, realizado em Natal no ano de 1991, ao se referir a esse notável fato histórico religioso, tem expressões de significativa beleza, recordadas por mim meses atrás: "Quando insultado – ferido pelos hereges por sua recusa em renegar a fé na eucaristia e a fidelidade à Igreja do papa - exclamou, quando lhe abriam o peito para arrancar-lhe o coração: 'Louvado seja o Santíssimo Sacramento!'"

As celebrações pelos 500 anos da descoberta do Brasil, a beatificação dos mártires de Cunhaú e Uruaçu representam os frutos da intensa evangelização desenvolvida em nossa Pátria.

Dentro do Grande Jubileu, com milhões e milhões de pessoas visitando as basílicas romanas e a Terra Santa, está inscrito também esse evento ocorrido nas localidades do Rio Grande do Norte, que nos falam da fidelidade à Igreja e da coragem de enfrentar um meio adverso. Na passagem do segundo milênio do Nascimento de Cristo, foram extraordinárias as manifestações e incompreensível o silêncio sobre a causa das mesmas celebrações. Dois milênios de quê? Do Nascimento de Jesus. A verdade deve ser restaurada, mesmo que irrite. O mundo ignora o motivo por que tantos deram sua vida, sofrendo o martírio.