A g n u s D e i

A EXPERIÊNCIA DO ESPÍRITO SANTO
Abordagem Teológica
Autor: Mário de França Miranda (sj)
Fonte: revista "Perspectiva Teológica" - ano 30 nº 81
Transmissão: Antonio Xisto Arruda

Abordagem Teológica

O tema é bastante complexo, pelo fato de lidar com um fenômeno rebelde a se deixar capturar pela razão humana. A experiência sempre derrota o conceito que a quer domesticar num sistema. A pluralidade de aproximações confirma bem o que queremos afirmar. Como o próprio ser humano, também a experiência pode ser vista de diversas perspectivas, que nem sempre conseguem se integrar numa versão final e unitária.

Além disso, a abordagem teológica acrescenta um novo fato que complica ainda mais nosso estudo. Pois, ao se pretender "teológica", busca ela, conseqüentemente, considerar o fenômeno da experiência do Espírito na perspectiva de Deus. O que, sem dúvida alguma, é muito problemático. Pois sendo, mais propriamente, uma experiência da ação do Espírito e considerando-se que, em Deus, ser e agir se identificam, teríamos, portanto, que entender e expressar o próprio Deus. Aí não chegamos a não ser que Deus deixe de ser Deus, como já observara Santo Agostinho. Portanto, Deus permanece em sua transcendência e em seu mistério, mesmo quando dizemos experimentá-lo.

Por outro lado a afirmação de que Deus atua na História e que os seres humanos captam tal ação pervade toda a Bíblia. Ao se refratar no humano esta ação divina nos poderá ser acessível indiretamente pelos seus efeitos na estrutura complexa e plural do ser humano. Daí a possibilidade de serem elaborados múltiplos e diferenciados discursos sobre os efeitos desta atuação. Também o discurso teológico deve partir, como os outros, das conseqüências da presença atuante do Espírito, só que em seu nível epistemológico próprio. A saber, os efeitos da ação divina são captados e interpretados à luz da fé, dom de Deus que capacita o homem a ultrapassar uma perspectiva meramente humana e olhar o fenômeno na ótica divina. Captar os efeitos da ação do Espírito enquanto potencializado pelo mesmo Espírito é o que permite ao ser humano um discurso rigorosamente teológico sobre a experiência de Deus.

Esta conclusão qualifica sem mais os relatos bíblicos dos efeitos da ação do Espírito como decisivos para compreendermos e avaliarmos esta mesma ação em nossos dias. Seu estudo constituirá a primeira parte deste trabalho. Contudo tais relatos refletem inevitavelmente o próprio contexto religioso, sociocultural, psicológico, econômico, e levantam, assim, a questão da identidade destas experiências em outras situações culturais e religiosas. De qualquer maneira, como só temos acesso às experiências do Espírito, explicitamente entendidas como tais, através de suas expressões bíblicas, deveremos estudar também o relacionamento "experiência-expressão", enquanto base antropológica para o discurso teológico sobre as mesmas. Enfatizo o "como tais", pois experiências reais do Espírito qualquer um pode ter fora dos quadros bíblicos, mas não reconhecidas como tais. A este estudo dedicaremos a segunda parte desta reflexão.

Posto isto, tentaremos abordar a questão, sem dúvida a mais difícil, que procura discernir verdadeiras e pretensas experiências do Espírito. Reconhecemos, de antemão, a possibilidade de outras abordagens teológicas do nosso tema, seja numa linha mais eclesiológica ou soteriológica, seja no horizonte da teologia fundamental relacionando-a com a revelação, inspiração, fé etc. Assim, não trataremos, explicitamente, do pentecostalismo enquanto fenômeno hodierno diversamente manifestado.

E, finalmente, concluiremos ressaltando a atualidade da nossa reflexão para temas como promoção da justiça, inculturação da fé e diálogo inter-religioso.

I. A experiência do Espírito Santo na Bíblia

O acesso às experiências do Espírito, constitutivas da nossa fé, se dará primordialmente através dos testemunhos de fé do povo eleito e das primeiras comunidades cristãs. Numa palavra, através dos textos da Escritura. Neste sentido, deve ser observado de antemão que as expressões e mesmo os gêneros literários da Bíblia não são neutros com relação às experiências que constituem e expressam. E nem estas são indiferentes à linguagem que as exprime, como bem observa P. Ricoeur1. Esta observação se revela fundamental para o nosso tema, dada a íntima interpenetração de experiência e expressão na manifestação do Espírito de Deus. Assim reconhecemos a Escritura não só como regra suprema da nossa fé enquanto Palavra de Deus (Dei Verbum 21), mas ainda como mediação lingüística desta mesma Palavra.

Não é tarefa fácil tentar uma certa sistematização do abundante material oferecido pelas Escrituras sobre as experiências do Espírito2. Sem pretender nada deixar de fora vamos priorizar duas características que nos parecem centrais: o Espírito como quem dá vida e como quem interpreta Jesus Cristo.

  1. O Espírito como fonte de vida

    Na tradição, sobretudo, ocidental da Igreja, o Espírito é visto como Aquele que santifica, que nos leva à fé, que nos faz confessar Cristo, que fundamenta nossa esperança e nos capacita para viver o amor teologal. Entretanto, a Escritura nos apresenta também o Espírito de Deus já atuante na criação do mundo (Gn 2,7), dando vida aos seres humanos, e ainda introduzindo-os na vida nova pela ressurreição dos mortos. O Espírito que nos é dado, que habita em nós (Rm 8,9; 1Cor 3,16), é o criador da vida e portanto também da nova vida, sendo assim, para aqueles que o recebem, "penhor" da ressurreição (vida plena). Só nesta visão mais ampla aparece o sentido profundo de Pentecostes: levar à sua realização última a vida iniciada na criação3.

    A tríplice atuação do Espírito na História da Salvação dá-se juntamente com a do Filho. Na criação, um é a origem da vida, o outro, a Palavra segundo a qual tudo é constituído. No evento histórico-salvífico, o Filho realiza o desígnio salvífico do Pai e o Espírito nos torna o mistério acessível. Na plenitude escatológica o Espírito nos capacita e transforma para entrarmos na vida plena com Deus; enquanto o Filho, como juiz definitivo, é o critério que distingue e qualifica os que se salvam4.

    A ressurreição de Jesus Cristo revela a realidade escatológica de sua vida plenamente (Jo 3,34) dotada do Espírito, pois, através dela, se encontra unido à fonte mesma da vida, constituindo-se num "ser espiritual" (1Cor 15,45). Ao contrário do que aparece no Antigo Testamento (Ecl 12,7), o Espírito de Deus não volta, sem mais, a Deus no momento de sua morte. Pois o Pai ressuscita Jesus Cristo "no Espírito" (Rm 1,4). Daí enviar Cristo aos fiéis este seu Espírito que, como dom escatológico, aparece como a antecipação da vida imortal e bem-aventurada para todos os que assumem a sua existência.

    Aqui se impõe uma observação para esclarecer eventuais dificuldades. Mesmo reconhecendo que a revelação da Trindade só se deu com Jesus Cristo e que as expressões "Palavra", "Espírito" e "Sabedoria" não se distinguem e contrapõem nitidamente no Antigo Testamento, julgamos válida uma leitura neotestamentária que englobe, reinterpretando (a partir da verdade definitiva que é Cristo), as manifestações anteriores de Deus. Não nos deve surpreender que a perspectiva neotestamentária forneça aperfeiçoamento e também correções a estas teofanias.

    A Escritura nos apresenta o Espírito Santo como vivificante numa multiplicidade de concretizações. A começar pelo sopro vital (Sl 104,29), passando pela capacidade compreensiva, pelos dotes artísticos, pela inspiração profética, pelo carisma do governo. "Encheu-o do espírito de Deus para que tenha sabedoria, inteligência, conhecimento e aptidão para todos os afazeres: criação artística, trabalhos em ouro, prata e bronze, cinzelatura das pedras de guarnição, escultura em madeira e toda sorte de trabalhos artísticos" (Êx 35,31-33). Todas são antecipações perceptíveis do dom escatológico: neste se une de tal modo o Espírito com a vida de quem o recebe que não mais pode dele se separar, nem com a morte5.

    Esta visão da atividade do Espírito corrige a funesta separação, muito em voga no passado, entre a ordem da criação e a ordem da salvação, reduzindo assim o papel do Espírito no Cosmo e na História. Daqui, para Lhe confinar no âmbito do extraordinário ou do milagroso, é só um passo. Se concedemos, contudo, ser a criação uma ação divina que continua no tempo, caso contrário tudo voltaria ao nada, então devemos concluir, contra uma compreensão mecanicista da mesma, que o Pai envia constantemente seu Espírito às criaturas, dando-lhes vida e energia. Naturalmente, o dinamismo vital do Espírito tende sempre a levar os seres humanos a participarem da vida plena, que é Deus. Daí a afirmação de Santo Irineu sobre o Filho e o Espírito Santo como as duas mãos de Deus na criação (Adv. Haer. V, 6, 1).

    Esta maneira mais unitária de considerar a ação do Espírito se vê contestada em nome de uma confusão indevida entre a vida "natural" do homem e sua vida "sobrenatural", ou entre a noção "cosmológica" de Espírito (AT) e a "histórico-salvífica" (NT).6 É evidente que o conceito de vida, aplicado aos vegetais, aos animais e aos seres humanos, é um conceito análogo. Sobretudo, se não esquecemos a finalidade última da vida humana. Contudo, tendo presente o cristocentrismo de toda criação, podemos considerar o contexto vital indispensável à sobrevivência do homem como pressuposto exigido para sua realização plena em Deus.

    Neste caso, o dinamismo vital insuflado na criação só terá seu sentido último desvelado na revelação escatológica com a pessoa de Jesus Cristo. Aí então surge em toda sua verdade e profundidade, que só a fé deixa entrever, o que é realmente a noção de vida para o ser humano, que naturalmente não se limita ao hábito vital. Este, juntamente com todas as manifestações do espírito humano, são atuados pelo Espírito de Deus quando em sintonia com a dinâmica deste Espírito, que é de nos fazer co-participantes com Cristo da vida plena em Deus. Como a natureza é pressuposta, assumida e aperfeiçoada pela graça, assim também tudo o que implica vida para o ser humano, ao preservá-la, protegê-la, ou desenvolvê-la, entra no dinamismo do Espírito.7

    Numa perspectiva explicitamente trinitária podemos dizer que o Pai, fonte primeira da vida, a comunica plenamente a seu Filho (Jo 5,26) ressuscitando-O (At 2,24). E tudo se realiza "no Espírito" (Rm 1,4). Jesus que, em sua morte, havia restituído o Espírito ao Pai e agora O recebe em plenitude, pode derramá-lO abundantemente sobre o mundo (At 2,32), o que de fato aconteceu (Jo 20,22). "Portanto em Cristo o Pai se revela como Fonte da vida, o Filho como o Mediador, o Espírito Santo como a própria Vida".8

  2. O Espírito como intérprete de Jesus Cristo

    Outra característica marcante do Espírito Santo, bastante ressaltada por João e Paulo, é a de ser Aquele que nos conduz à plenitude da verdade que é Jesus Cristo. "Eu ainda tenho muitas coisas a vos dizer, mas, atualmente, não sois capazes de as suportar; quando vier o Espírito da verdade, Ele vos conduzirá à verdade plena, pois Ele não fala por si mesmo, mas dirá tudo o que ouvir e vos comunicará tudo o que está por vir. Ele me glorificará, pois receberá do que é meu e vo-lo comunicará" (Jo 16,12-14).

    A verdade para João é a revelação de Deus (Pai) através do Filho encarnado (Jo 1,18). A totalidade desta verdade só será revelada quando a Palavra de Deus tiver sido dita até o fim, a saber, na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Antes disso, há uma compreensão na fé da pessoa de Jesus apenas incoativa, o que explica as hesitações, os medos e as dúvidas dos discípulos, como nos narram os Evangelhos. No evento pascal, o Crucificado entrega seu Espírito (Jo 19,30) que, a partir daí, será seu "intérprete" junto a nós. "Se eu não partir, o Paráclito não virá a vós; se, pelo contrário, eu partir, eu vo-lo enviarei" (Jo 16,7). Se Cristo é a porta (Jo 10,9), o Espírito é a chave que a abre.9

    Porém, a plenitude da verdade é o amor que é Deus (1Jo 4,8) e que se revela em Jesus Cristo, sendo o Espírito no seio da Trindade este amor recíproco entre o Pai e o Filho. O Espírito Santo é Espírito do Pai, que envia o Filho para nossa salvação, manifestando-lhe sua vontade através deste mesmo Espírito. Mas também é Espírito do Filho, enquanto Espírito de obediência e de serviço, características da existência de Cristo. Se a verdade de Deus nos é desvelada na entrega total de Cristo, temos de concluir que o Espírito participou ativamente da mesma.

    Assim só pode chegar à "verdade plena" que é esta vida, que é este amor de Deus manifesto na História, aquele que, acolhendo o Espírito, passa a viver este amor teologal (de Deus). "Quem não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (1Jo 4,8). Portanto, a ação do Espírito, como Aquele que introduz na e interpreta a verdade que é Jesus Cristo, não se enquadra numa atividade meramente racional. Acolher o Espírito de Cristo (Rm 8,9) implica traduzir na vida o seu dinamismo de amor. Com outras palavras, o seguimento real de Cristo é condição, sem mais, para conhecê-lO. E como este configurar-se com Cristo é obra do Espírito que inspira e capacita nossa liberdade, tanto mais se torna perceptível a atuação do Espírito quanto mais vivermos a existência de Cristo, uma "existência no Espírito" no sentido mais profundo da expressão.

    Paulo desenvolve uma rica pneumatologia, que ultrapassa o âmbito de nosso estudo. Interessa-nos, sobretudo, o que diz sobre o Espírito como Aquele que nos conduz ao mistério de Deus. "O Espírito esquadrinha tudo, mesmo as profundezas de Deus. Quem dentre os homens conhece o que é próprio do homem, a não ser o espírito humano que nele está? Assim também, ninguém conhece o que é de Deus, a não ser o Espírito de Deus" (1Cor 2,10s.). E porque recebemos este Espírito é que podemos conhecer os dons de Deus (1Cor 2,12), comunicá-los, não através de palavras ditadas pela sabedoria humana, mas com palavras ensinadas pelo Espírito (1Cor 2,13). Este mistério permanece inacessível para a sabedoria do mundo, que o considera loucura (1Cor 2,14).

    Um dos carismas mais importantes para Paulo é a profecia, no sentido de uma pregação inspirada, de uma palavra que ajude a compreensão dos gestos de Deus na História. A profecia deve corresponder tanto à dinâmica da iniciativa de amor do Pai (Espírito do Pai), quanto à resposta obediente do Filho (Espírito do Filho). Daí a crítica de Paulo a uma glossolalia que não serve à edificação da comunidade (1Cor 14). Acrescentemos ainda que como a verdade de Deus está na existência histórica de Cristo, a profecia também se realiza no testemunho vivo do cristão.

    Daí Paulo insistir na práxis cristã como componente necessária do acolhimento do Espírito, e conseqüentemente do encontro autêntico com Jesus Cristo. "Se vivemos pelo Espírito, procedamos também de acordo com o Espírito" (Gl 5,25). É assim a vida na fidelidade ao Espírito que nos garante o acesso à verdade plena. "Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo" (Rm 8,9). Aqui ganha toda a sua densidade teológica a afirmação paulina: "Ninguém pode dizer, ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo" (1Cor 12,3). O que vale igualmente para seu discurso sobre os frutos do Espírito (Gl 5,13-25).10

II. A ação do Espírito refratada no ser humano

  1. A experiência humana e suas implicações

    Não pretendemos entrar na complexa problemática atual em torno do termo "experiência", um dos conceitos filosóficos mais obscuros11. Apenas mencionaremos algumas características desta noção, necessárias para o nosso estudo. Entendemos a experiência como uma modalidade (e também fonte) de conhecimento, que é imediato, enquanto não acontece pela atividade discursiva da inteligência, como seria a conclusão de um silogismo, nem por uma reflexão posterior, e nem pelo acolhimento do saber em razão da autoridade ou de tradição histórica. Portanto, trata-se de uma percepção simples e imediata de algo, que provoca grande certeza fundada numa evidência específica.

    Naturalmente, esta percepção tem sua dimensão intelectual, como veremos mais adiante, mas ela, por si, implica todo o ser humano (inteligência, vontade, sentimentos, imaginação). Jean Mouroux distingue três níveis de experiência: o empírico, o experimental e o existencial. O primeiro é o da experiência cotidiana, vivida, mas não criticada, parcial, superficial, ingênua, e portanto ambígua. Aqui estariam as consolações, os entusiasmos e todas as formas de percepções sensíveis do "divino".

    O segundo nível é o da experiência consciente e provocada, constituída com elementos capazes de serem medidos e manipulados. No fundo, é uma experiência provocada, encontrada não só na ciência, mas ainda nas técnicas religiosas de oração, autodomínio etc.

    O terceiro nível é o da experiência pessoal do ser humano em toda sua totalidade, seus componentes estruturais e seus princípios de ação. É uma experiência constituída e captada na lucidez de consciência e na generosidade do amor, portanto uma experiência pessoal no sentido estrito da palavra. Toda experiência espiritual autêntica se situa neste nível. Os outros níveis são etapas a serem ultrapassadas em direção a uma experiência que abarque a totalidade da pessoa12.

    A experiência humana, enquanto humana, é um fenômeno captado e percebido pelo ser humano. Nela entra não só a percepção, mas também o pensamento que a entende como tal. Daí devermos afirmar que toda experiência humana é experiência interpretada. Não experimento e, posteriormente, faço uma leitura do que experimentei. Experimento interpretando, experimento identificando o experimentado, mesmo se não reflexamente, seja uma árvore ou uma cadeira. Uma experiência mística pode ser incomunicável, inexplicável ou mesmo inefável, mas nunca inidentificável13.

    A experiência não é só objetiva, nem só subjetiva. Daí a falsidade, seja do fundamentalismo, no primeiro caso, seja do relativismo, no segundo. A experiência influi na interpretação e a suscita, mas também o quadro interpretativo influi na experiência. A experiência é outra, se é diversamente experimentada. Assim, os primeiros discípulos de Jesus fizeram com Ele uma experiência salvífica, enquanto seus opositores fizeram uma experiência especificamente diferente, considerando-O uma ameaça a ser eliminada.

    O quadro interpretativo implica modelos de pensamento, teorias, valores, sentimentos, expectativas, que constituem a linguagem da época. O experimentado, a interpretação e a linguagem ou quadro interpretativo se condicionam mutuamente, vindo a constituir a experiência humana. Esta, enquanto humana, é necessariamente epocal, situada, numa palavra, histórica. Embora a realidade interpretada seja a mesma, tanto a experiência com ela, quanto sua expressão, são historicamente condicionadas. Esta afirmação vale também quando esta realidade é Deus.

    A realidade interpretada goza, também, de certa autonomia com relação ao quadro interpretativo onde acontece. Pois ela nem sempre corresponde ao que dela se esperava, questionando e fazendo explodir o modelo que a interpretava. Este último é, assim, corrigido, ampliado, aperfeiçoado, reinterpretado ou, em certos casos, até mesmo substituído. A experiência dos primeiros cristãos com Jesus Cristo revelou a insuficiência do quadro interpretativo veterotestamentário, inadequado para a percepção e expressão da pessoa do Salvador. Portanto a relação entre quadro interpretativo e experiência é constitutivamente dialética14.

  2. A experiência humana da ação do Espírito

    Característica primeira desta experiência está no fato de ser interpretada num horizonte de compreensão fornecido pela fé cristã. Conforme o que foi dito anteriormente, o cristão não tem apenas uma interpretação diversa da leitura feita pelo não cristão. Ele tem realmente uma outra experiência, assim como a linguagem científica permite ao pesquisador não só uma interpretação científica da experiência, mas realmente uma experiência científica.

    Algumas experiências humanas são mais afins à ação do Espírito. Assim o sentido da transcendência, a consciência moral, o compromisso de vida, a sensação estética, as relações interpessoais, o sofrimento e a morte15. São exemplos que não confinam, contudo, a experiência do Espírito a setores da realidade. De qualquer modo, nela deve estar presente uma intencionalidade própria, dirigida à Realidade Última, que confere ao que realiza esta experiência um sentido último para o sujeito e para toda a realidade envolvente16. Esta é a intencionalidade da fé, dirigida a Deus, revelado e atuante em Jesus Cristo.

    Esta experiência tem sua causa no próprio Deus (Espírito). Não é um mero produto da interpretação humana nem criação do "sagrado" pelo próprio homem. Portanto, e isto é fundamental para nosso estudo, é uma experiência determinada por Deus. Mesmo mantendo o que foi dito anteriormente sobre o quadro interpretativo e sua importância para qualquer experiência humana, devemos enfatizar que a experiência do Espírito goza sempre de certa autonomia. Caso contrário não teria ocorrido uma revelação cristã e, nem mesmo, teríamos experiências provindas realmente da ação do Espírito.

    Enquanto experiência humana da ação divina do Espírito implica esta experiência que a ação de Deus necessariamente afeta as dimensões plurais do ser humano, nelas se constituindo e se expressando. De fato, a liberdade que acolhe a atuação divina está "situada" num contexto histórico, sociocultural, econômico, dotada de uma estrutura psicológica, inserida numa determinada comunidade humana e apoiada em experiências passadas próprias. Este fato possibilita uma pluralidade de leituras da experiência do Espírito, que são válidas em seu nível epistemológico e muito úteis por desvelar os mecanismos condicionantes da experiência em questão.

    Pelo fato de estarmos lidando com uma realidade teologal são tais discursos sempre penúltimos, não podendo pretender um juízo global e final sobre a mesma. As conclusões apresentadas pelas ciências humanas devem ser levadas a sério e devidamente valorizadas. Porém os critérios decisivos na questão da autenticidade ou não de tais experiências devem provir do próprio Espírito que as suscita, numa palavra, devem ser de ordem teológica. E como para a fé cristã o Deus da criação é o mesmo Deus da salvação, em princípio, haverá sintonia entre as leituras científica e teológica.

    Além das ambigüidades próprias da condição humana, postas a descoberto pelas ciências, um dado da antropologia cristã complica ainda mais a realidade que estudamos. Vivemos num mundo marcado pelo pecado, impropriamente chamado de pecado original pela tradição. Sentimos a força centrípeta da concupiscência, sua tendência egocêntrica, que nos leva a buscar a nós mesmos em tudo que pensamos e fazemos. Realidade presente em nós e no contexto plural onde vivemos, sem que possamos distinguir muito bem uma e outra presença, já que somos humanos devido à comunidade cultural onde vivemos. Ou dito teologicamente, existe uma concupiscência sociocultural. Este dado, sem dúvida alguma, problematiza ainda mais a identificação do que chamamos uma experiência da ação do Espírito.

    Por outro lado, contudo, a totalidade da vida de Cristo representa, no interior da História, a expressão perfeita da experiência da atuação do Espírito. Daí podermos e devermos afirmar que toda experiência autêntica desta atuação é constitutivamente cristológica. Pois sua vida, enquanto realidade perceptível e histórica, resultante da fidelidade a esta atuação do Espírito, nos torna acessível a verdadeira concretização histórica desta ação transcendente. Neste sentido Jesus Cristo, vida e palavras, será sempre mediação de nossa experiência do Espírito. Nesta não podemos prescindir da figura histórica de Jesus Cristo. Pois toda a ação do Espírito é de nos levar a confessar Jesus como Senhor (1Cor 12,3) e de nos configurar a Ele (Gl 4,6; Rm 8,15). Além disso, é através desta atuação que se faz presente Cristo ressuscitado na comunidade cristã (Rm 15,18s.), pois quem age é o Espírito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19), por Ele enviado (Jo 7,39; 20,22s.).

    Retomando nossa terminologia anterior podemos dizer que a experiência da atuação do Espírito em Jesus de Nazaré, tal como foi testemunhada pela comunidade primitiva, é elemento fundamental do quadro interpretativo cristão. Se o Espírito é o hermeneuta da pessoa de Jesus Cristo, Este por sua vez é a expressão histórica definitiva da atuação deste mesmo Espírito e marco último de sua verdade.

III. O necessário discernimento

Depois do que vimos sobre o complexo e plural acolhimento da atuação do Espírito por parte do ser humano, não nos deve admirar que a busca de critérios, que a identifiquem, seja uma constante ao longo da história do cristianismo. Pois uma constatação imediata da presença ativa do Espírito, ignorando a mediação histórica, hermenêutica, comunitária da mesma, foi sempre uma forte tentação no interior do cristianismo até nossos dias17.

A necessidade de distinguir a ação autêntica do Espírito das falsas manifestações constituiu já uma preocupação de São Paulo, que fala do discernimento como um dos carismas (1Cor 12,10), o qual, aliás, não exclui um exercício geral de avaliação, próprio de todo cristão (1Cor 14,29; 1Ts 5,21). "Discernir qual a vontade de Deus" (Rm 12,2), "o que agrada ao Senhor" (Ef 5,10), "o que melhor convém" (Fl 1,10) é próprio da existência cristã, de uma vida segundo o Espírito. Também São João recomenda a todos que examinem os espíritos, para ver se são de Deus (1Jo 4,1).

Vamos examinar dois critérios de discernimento, hauridos do que nos revelou a própria Sagrada Escritura sobre a atuação do Espírito Santo: confessar a pessoa de Jesus Cristo e promover a vida.

  1. O critério Jesus Cristo

    Tanto Paulo como João apresentam a aceitação do Verbo encarnado como critério decisivo para identificar uma autêntica experiência do Espírito. "Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus" (1Jo 4,2). "Ninguém, falando sob a inspiração do Espírito de Deus, pode dizer: maldito seja Jesus" (1Cor 12,3).

    Estas afirmações de Paulo e João pressupõem a possibilidade e a ocorrência de experiências "religiosas" semelhantes às experiências do Espírito, mas que não resultam da ação do mesmo. Isto se dá pela incidência da atuação de Deus na ambigüidade da condição humana, sujeita a diversos condicionamentos e pressionada pela concupiscência egocêntrica. Com outras palavras, a ação do Espírito sempre acontece mediatizada pela realidade plural da pessoa humana e pela leitura deste fato, sem a qual não se constitui a experiência.

    A experiência só será autêntica, sacramento da ação pneumatológica, se estiver em consonância com o sacramento primordial desta atuação, que é Jesus Cristo. Este realmente visibiliza na condição humana e concretiza na História, de modo perfeito pela sua fidelidade ao Espiríto do Pai, a matriz de uma "vida no Espiríto". É uma matriz contextualizada, já que necessariamente interpretada a partir da linguagem do contexto sociocultural e religioso.

    Mas não é mera expressão do contexto envolvente, pois a atuação do Espírito se faz sentir (é experimentada) e fornece identidade à experiência. É ela que assume os elementos plurais do "humano" e que os integra de modo original para se constituir e se expressar. Importante no critério cristológico não é uma referência explícita e verbal à pessoa de Jesus Cristo, que pode ser extrínseca a uma experiência em curso. As afirmações de Paulo e de João pressupõem a densa noção bíblica de fé, enquanto atitude fundamental que impregna existencialmente a totalidade do ser humano.

    Fundamental aqui é a originalidade profunda da existência histórica de Jesus Cristo, enquanto decorrente da atuação do Espírito. Este, enquanto Espírito do Pai, O levou a uma obediência sem reservas a Deus, proclamado em suas palavras e em sua vida. Mas Este também fê-lO voltar-se resolutamente para seus semelhantes, especialmente os mais necessitados, tornando sua existência terrestre uma entrega constante a seus contemporâneos. Com outras palavras, uma vida descentrada de si mesmo e polarizada por Deus e pelo ser humano. A ressurreição de Jesus comprova a autenticidade de sua experiência do Espírito, enquanto obra de Deus cujo Espírito nele atuava (Rm 8,11).

    O critério cristológico implica, portanto, como decorrência da atuação do Espírito, uma existência que procura voltar-se para o outro e que, na tradição cristã, vem caracterizada como o amor fraterno. Sua importância é enorme em nossos dias pela situação social e cultural que afrontamos. O pluralismo cultural, a dança dos valores, o relativismo dominante, a ditadura unidimensional do econômico, o desconforto de uma cultura complexa que o ultrapassa, a insegurança econômica com relação ao futuro, eis alguns fatores hodiernos que impulsionam o indivíduo a experiências fortes, que possam oferecer um solo estável para sua existência. Entre estas a mais buscada é, sem dúvida, a experiência religiosa.

    Outro traço cultural que complica a avaliação de uma autêntica experiência do Espírito é o individualismo hodierno. Não só aquele que busca vantagens de ordem material, mas também o que proporciona auto-satisfação mental e psicológica. Também a experiência religiosa pode ser vivida nesta ótica, cuja intencionalidade está voltada para o próprio indivíduo, contradizendo assim a intencionalidade característica da experiência do Espírito, que nos impele ao próximo, à História, à sociedade.

    Notemos, entretanto, que, sendo criaturas finitas e carentes, a experiência humana do Espírito implica inevitavelmente satisfação de anseios e dinamismos, desde os mais sublimes, como a sede de Deus de que fala o Salmista, ou a busca de sentido para a vida, até os mais fundamentais para a sobrevivência cotidiana numa sociedade que tudo imola à produtividade. A experiência do Espírito é histórica como toda experiência humana, desenrola-se num processo que pode significar amadurecimento e maior autenticidade. O tempo deve também ser considerado no discernimento.

  2. O critério da vida

    A promoção da vida como fruto da atuação do Espírito Santo faz parte da consciência de fé da Igreja, embora não tenha ainda merecido uma devida explicitação e valorização. De fato, a universalidade ativa do Espírito, como a do vento que sopra onde quer (Jo 3,8), é reconhecida pelo Concílio Vaticano II ao afirmar que a ordem e o progresso social, em contínua evolução, têm no Espírito Aquele "que dirige o curso da história e renova a face da terra" (GS 26). Cristo ressuscitado opera por força de seu Espírito nos corações humanos, de tal modo que "anima, purifica e fortalece também aquelas aspirações generosas com as quais a família humana se esforça por tornar mais humana a sua própria existência e submeter a terra inteira a este fim" (GS 38).

    Além de valorizar a ação do Espírito nestas realidades não propriamente religiosas, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes vai mais longe, convidando todo o Povo de Deus a "auscultar, discernir e interpretar as várias linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra divina, para que a Verdade revelada possa ser percebida sempre mais profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado" (GS 44). Deste modo reconhece que as tradições culturais podem apresentar sintonias tais com a Verdade que é Jesus Cristo, que sirvam para melhor explicitá-la. Sabemos contudo que esta Verdade manifestada na História não pode ser concebida sem a atuação do Espírito. Daí certa presença ativa do Espírito nas culturas dos povos.

    João Paulo II enfatiza estas declarações conciliares ao reconhecer, sem mais, a ação "do Espírito da verdade operante para além das fronteiras visíveis do Corpo Místico" (RH 6), antes da economia do Evangelho (DV 53), de tal modo que "a presença e a atividade do Espírito não digam respeito somente aos indivíduos, mas à sociedade e à história, aos povos, às culturas, às religiões" (RM 28).

    Podemos justificar tais afirmações observando que o Espírito, enquanto "Sopro Criador", dá vida a todos os seres animados e sobretudo ao ser humano (Gn 2,7; 6,3; Jó 21,3; 33,4; Ez 37; Ecl 12,7), e portanto age, universalmente, na humanidade. Contudo, esta ação vivificante não se limita à vida física, mas diz respeito a tudo aquilo que a possibilita, a mantém, a desenvolve. Bem sabemos que, graças às criações de sua inteligência, pôde o homem sobreviver às catástrofes da natureza e aos ataques de animais mais poderosos.

    Como ser eminentemente social teve que se organizar em sociedade, estabelecendo normas de conduta e leis sociais fundamentadas em suas interpretações da realidade. Portanto, podemos dizer que a cultura, a linguagem, as instituições sociais, resultam não só do gênio humano, mas também da ação do Espírito que o vivifica. Aqui se abre todo um campo de ação para o cristão na sociedade. Não só as tensões e os impasses que degradam a convivência humana interpelam a Igreja. Mas, também, as múltiplas inquietações, iniciativas, dinamismos, questionamentos, sensibilidades, estratégias, programas de ação, linhas políticas, presentes e atuantes na sociedade, enquanto lutam pela vida, representam igualmente em nível social "os frutos do Espírito" de que fala Paulo (Gl 5,22s.). E o cristão, na medida que os promove, não lida com uma ocupação "profana", sem valor diante de Deus, mas deve considerar sua atividade como exercício autêntico de caridade e, portanto, como visibilização da atividade do Espírito.

    Nesta linha, poderíamos acrescentar tudo o que torna a vida humana mais vida, como o amor fraterno, a confiança, a solidariedade, a justiça, a paz, o cuidado com a natureza, a vivência estética. Esta ação permanente do Espírito ganha certa evidência quando, em momentos de intensa criação, nos sentimos impelidos por uma força e um poder que sentimos não serem nossos. Assim na intuição de uma obra de arte, na descoberta súbita da verdade, na experiência gaudiosa da libertação, na renúncia experimentada na paz ou no compromisso moral assumido com alegria interior18.

    Poderíamos também mencionar as experiências do Espírito nas Comunidades Eclesiais de Base. Estas experiências do povo simples são percebidas pelo mesmo como capacidade de agir e de tomar iniciativas, como força de libertação de diversos jugos, como confiança e segurança em tomar a palavra, como coragem para a partilha e para a vivência comunitária, mas sobretudo como dinamismo que promove a vida, no sentido denso da palavra19.

  3. Critérios em confronto?

    A confrontação entre a visão bíblica do Espírito, como quem traz vida, com a atuação do Espírito na existência histórica de Jesus exige de nós, neste momento, uma reflexão suplementar. Pois a obediência ao Espírito significou para Jesus enfrentar tensões, contrariedades e conflitos que, aparentemente, lhe acarretaram menos vida. De fato, a humilhação e a impotência diante da violência, a derrota e o sofrimento frente à injustiça e, finalmente, sua paixão e sua morte prematura na cruz, parecem contradizer o que vimos anteriormente.

    Contudo, afirma o testemunho de fé da comunidade apostólica, constitutivo da nossa, que foi exatamente este caminho que levou Jesus à plenitude da vida (Fl 2,6-11; Hb 5,7-10). Este dado da fé cristã é sumamente importante, seja por superar (assumindo) a fé de Israel, seja por nos indicar a insuficiência de uma noção meramente antropológica de vida. Não se trata, portanto, de jogar uma noção contra a outra, mas de mantê-las dialeticamente juntas. Pois o Espírito que vivifica na ordem da criação e da salvação é o mesmo que nos vivifica, plena e definitivamente, pela ressurreição da carne, a qual chegamos assumindo a mesma trilha escarpada de Jesus.

    E como a vida, à qual fomos chamados em Cristo Jesus, só irá se revelar na existência plena no seio da Trindade, impõe-se também para a nossa noção a "reserva escatológica" própria das verdades da nossa fé. Pois a vida em plenitude, que é a vida em Deus, que nos é comunicada veladamente na fé (e não na visão) pelo Espírito e da qual participaremos depois da morte, ainda "está escondida com Cristo em Deus". Só com a passagem para o definitivo nos será ela plenamente manifesta (Cl 3,4s.). Portanto, nem sempre o que nos parece, à primeira vista, mais vida ou menos vida o é realmente.

    Com isto parece nos fugir das mãos um critério seguro e universal para podermos julgar, de dentro da História, a atuação do Espírito. E poderíamos esperar outra conclusão, quando consideramos que o Espírito nos remete para Deus manifestado em Cristo, que é e será sempre mistério para o ser humano. A imanência de Deus em nós, por seu Espírito, revela também sua transcendência, ao não se deixar captar adequadamente por nossa inteligência, resguardando, assim, a divindade de Deus. A atuação do Espírito é de ordem meta-histórica, já que abrange todos os tempos e só poderá se manifestar em sua verdade na plenitude definitiva da História. Todo juízo sobre ela no interior da História poderá, por princípio, ser revidado. Dito mais simplesmente: não dispomos do Espírito; Este sim é quem dispõe de nós!

    Porém, não nos encontramos completamente desprovidos de marcos orientadores. Pois a existência quenótica de Cristo foi fruto de sua fidelidade à ação do Espírito de amor do Pai (Rm 5,5). Portanto, foi revelação do amor de Deus por nós. Se a noção cristã de vida provém, em última instância, de Deus, e se a vida de Deus é amor (1Jo 4,16), então o carisma supremo será realizar em nós este amor (1Cor 12,31). Então o critério decisivo para uma ação ser caracterizada como cristã será que seja, de fato, expressão deste amor (1Cor 13,1-3). Também a presença atuante deste amor será fundamental para discernir o que realmente significa mais vida e, conseqüentemente, atuação autêntica do Espírito.

    Pois quanto mais alguém vive este amor teologal, tanto mais se torna capaz de reconhecê-lo. Não de fora, através de critérios teóricos, mas de dentro, pela sintonia entre a própria existência e a ação do Espírito. Esta ação atinge a totalidade da pessoa e é de certo modo por ela captada. É o que Santo Tomás chama de "conhecimento por conaturalidade" (STh. II-II q.1 a. 4 ad 3). Mas já São Paulo observara que só aquele que se deixa conduzir pelo Espírito percebe o que é de Deus (1Cor 2,14s.). Pois quem o faz traduz, de certo modo, em sua vida, a atuação do Espírito de amor, revelado definitivamente (tradução fiel) na vida de Jesus Cristo.

    Deste modo, se, por um lado, as próprias características da atuação do Espírito, apresentadas pela Escritura, vetam uma leitura ingênua e uma aplicação direta desta mesma atuação, por outro, nos apontam os cristãos mais autênticos como os mais capazes do discernimento que buscamos. Esta consciência vivida, mais do que conhecimento aprendido, da ação real do Espírito, deve ser distinguida tanto das expressões que procurarão manifestá-la, como das leituras e usos que, posteriormente, poderá ela sofrer. Pois sempre acontece no interior de um contexto cultural, de uma situação histórica, de uma realidade econômica, de uma estrutura psicológica, de uma época eclesial. A falsidade, à qual pode ser submetida, não desqualifica, a priori, sua verdade.

IV. Atualidade do tema

Nossa reflexão, por dizer respeito à atuação do Espírito Santo, implica necessariamente a própria identidade da Terceira Pessoa da Trindade e, portanto, o ser mesmo de Deus. Não nos deve admirar, por conseguinte, que nossas conclusões tenham nos deixado insatisfeitos. Contávamos com resultados mais transparentes e unívocos, que se prestassem a aplicações mais diretas e decisivas para resolver a complexa realidade da experiência do Espírito na condição humana. A realidade misteriosa de Deus, que não se deixa dispor ou manipular, esteve presente ao longo de todo nosso estudo. Nossas palavras nada desvelaram, apenas apontaram para uma realidade que as ultrapassa.

Contudo, nem por isso deixam de serem significativas para nós, pois nos oferecem um horizonte de compreensão que pode nos ajudar quando nos confrontamos com certas questões atuais. Escolhemos três que nos parecem muito importantes: a promoção da vida, a inculturação da fé e o diálogo inter-religioso.

  1. A promoção da vida

    A atuação do Espírito Santo, conforme já vimos, é de promover a vida em sentido amplo. Deste modo, podemos afirmar ser Ele o responsável último pelo atual imperativo, percebido pela consciência cristã, de luta pela justiça, de libertação dos oprimidos, de transformação das estruturas sociais, de mudança das mentalidades pessoais, da opção pelos pobres etc.

    Contudo, como esta ação transcendente é sempre captada e, necessariamente, interpretada dentro de um horizonte de compreensão determinado, haverá, conseqüentemente, uma pluralidade de concretizações do imperativo ético. Sempre lemos o apelo do Espírito de dentro de um contexto sociocultural, que é, simultaneamente, mediação e condicionamento deste apelo. É em seu interior que se dará a percepção e a tradução do mesmo. Quadro interpretativo (worldview) e práticas (ethos) se condicionam mutuamente.

    Mas o cristão não está condenado à prisão do círculo hermenêutico, aqui, no caso, melhor expresso como círculo ideológico. Pois implícito na ação do Espírito está o dinamismo de garantir a promoção real de vida através de um melhor conhecimento do contexto sócio-econômico e cultural. Portanto, deverá ele deixar a segurança de seu próprio horizonte e partir para conhecer e experimentar o diferente, seja através de mediações teóricas que alarguem seu quadro interpretativo, seja por meio de práticas que o abram para novas dimensões da realidade20.

    O que dissemos não proíbe múltiplas concretizações da atuação do Espírito, dado que a vida se encontra diversamente ameaçada, diminuída e mesmo aniquilada. Nem por isso deixamos de reconhecer a maior pertinência de algumas sobre outras.

    O Espírito Santo como Aquele que transmite vida, entendida pela fé cristã numa amplitude semântica que vai do sopro vital até à vida bem-aventurada em Deus, é a razão última e decisiva, sem prescindir das mediações humanas, de nossa luta pela vida em suas múltiplas concretizações, mas pede de nós não reduzir sua atuação a nossas leituras e estratégias. Estas serão sempre históricas, contingentes, provisórias, devendo se transformar conforme a situação concreta o peça.

    A noção teológica de "vida", enquanto grandeza também escatológica, não se identifica com realização histórica alguma. Assim não podemos reduzi-la a uma concepção funcional de vida, que resultasse da satisfação das necessidades humanas pelo bom funcionamento da sociedade. A ascensão social, ocorrida no Primeiro Mundo, das camadas mais pobres da população, entregues, hoje, a uma sociedade altamente individualista e consumista, confirma o que dissemos.

  2. Inculturação da fé

    Os testemunhos bíblicos nos permitem caracterizar a ação do Espírito de Deus como dom do amor divino que cria vida, atesta a Verdade, fundamenta a liberdade21, pois os confessamos como revelados. Devemos, contudo, reconhecer que nossa compreensão da mesma pode ir além do nosso horizonte lingüístico e cultural. Pois ela nos é acessível, nunca em "estado puro" ou em sua "essência", mas sempre mediada por um determinado contexto sociocultural.

    Na medida em que o dinamismo do Pneuma é experimentado como tal em outras culturas, ocorrerão experiências diferentes do mesmo Espírito que, não só trarão novas concretizações de seu "trazer vida", mas também poderão alargar nossa própria e limitada noção de vida. Igualmente possibilitarão novas leituras do "evento Jesus Cristo", porque realizadas em horizontes diferentes, que acabarão por fazer emergir aspectos do mesmo, até então esquecidos ou pouco considerados.

    Se Cristo é a verdade da História e da humanidade, e se esta verdade só nos chega enunciada no interior de uma determinada cultura, inevitavelmente particular e limitada, então a atuação hermenêutica do Espírito poderá enriquecer nossas cristologias regionais com verdades, até então, à espera de quem as enunciasse. Há um cristomonismo teológico no qual se encontra embutido outro de ordem cultural. Reconhecer a atuação do Espírito em outras culturas e permitir que tais experiências, autenticamente cristãs, possam se constituir em suas expressões e práticas, significa um corretivo a ambos os cristomonismos.

    Sabemos que o "evento Cristo" não se limita à pessoa de Jesus Cristo, mas abarca tudo o que se encontra nela implicado. Assim uma imagem de Deus, uma concepção do ser humano, uma representação da vida após a morte, uma ética do seguimento, uma idéia determinada de salvação, para elencar apenas algumas realidades integrantes do "evento Cristo". Estas nos chegam numa linguagem ocidental que desvela e esconde, simultaneamente, aspectos das mesmas. O emergir de novas expressões e práticas implica não só enriquecimento noético para o cristianismo, mas, sobretudo, pertinência salvífica. De fato, faz-se mister que as experiências do Espírito possam ser reconhecidas como tais entre os que vivem em outras culturas. Pois só assim serão vividas existencialmente como experiências salvíficas, tornando a fé cristã significativa e pertinente para povos de outras culturas.

  3. Diálogo inter-religioso

    Sabemos que o Espírito Santo é derramado sobre toda a humanidade (At 2,17), já que "sopra onde quer" (Jo 3,8), precedendo mesmo com sua atividade a proclamação explícita da mensagem cristã (At 10,19.44-47). Portanto, a experiência da ação do Espírito não se confina ao interior do cristianismo. Daí poder afirmar João Paulo II, depois do encontro inter-religioso em Assis, que "toda oração autêntica é suscitada pelo Espírito Santo, misteriosamente presente no coração de toda pessoa humana"22.

    Não vamos insistir aqui no fato de que a atuação do Espírito é captada, constituída e expressa diversamente dentro das várias tradições religiosas. Isto já deve ter ficado bastante claro, depois do que foi anteriormente afirmado. Interessa-nos sublinhar que a experiência do Espírito, embora diversa nas múltiplas religiões, deve-se à mesma Realidade experimentada.

    Com isto, afirmamos que, embora tais experiências e expressões sejam diversas, como não são mera criação humana a partir do respectivo contexto religioso, contêm, em si mesmas, alguma marca ou determinação proveniente do Espírito, mesmo que diversamente consciente e expressa.

    Aceito isto, podemos dizer mais concretamente que a dinâmica de promover a vida irá se concretizar diversamente nas diferentes religiões, podendo mesmo apresentar expressões que requeiram correção à luz da fé cristã. Contudo, tais concretizações poderão, também, contribuir para uma noção mais abrangente de vida, que permita releituras mais plenas dos testemunhos bíblicos, enriquecendo nossa compreensão parcial da ação do Espírito.

    Mais importante, contudo, é a realidade do mesmo "agir divino" em tais concretizações, responsável por uma correspondência, uma sintonia, uma ponte, de ordem meta-lingüística entre membros de religiões diversas, quando relatam mutuamente suas experiências místicas. Não é de admirar ser o "diálogo da experiência religiosa" (DA 42) a modalidade de diálogo inter-religioso que mais frutos produz.

    Por outro lado, a atuação do Espírito é de nos levar à pessoa de Jesus Cristo. Este critério, tão evidente em João e em Paulo, revela-se, à primeira vista, altamente problemático quando aplicado às religiões não cristãs. Como detectar nas tradições religiosas, que ignoram Cristo, este dinamismo mistagógico crístico?

    Porém, se consideramos ser Jesus Cristo a verdade última de toda a realidade e mais especificamente do ser humano (GS 22), então a ação do Espírito será crística na medida em que leva o ser humano à sua própria verdade. Enquanto expressas em tradições religiosas diversas, podem diferir das nossas. Enquanto são expressões da verdade que é Cristo podem enriquecer nossas experiências do Espírito, inevitavelmente confinadas à linguagem e à compreensão ocidental do "evento Cristo". Uma mais abrangente compreensão da atuação salvífica do Espírito acaba por nos fornecer também um conhecimento menos imperfeito de sua pessoa. Deste modo, o diálogo inter-religioso poderá fazer emergir outras marcas da atuação pneumatológica, também voltadas para a fonte última de toda a vida, que é o Espírito da Verdade!


  • Mário de França Miranda (sj) é doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Professor de teologia sistemática na Pontifícia Universidade Católica (Rio de Janeiro-RJ) e no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (Belo Horizonte-MG). Publicou, entre muitos livros e artigos: Um catolicismo desafiado: Igreja e pluralismo religioso no Brasil (Paulinas, 1996), e, recentemente, O cristianismo face às religiões (Loyola, 1998).


    Referências:

      1. Cf. RICOEUR, P., "Expérience et langage dans le discours religieux", em Phénomenologie et théologie. Paris, 1992,pp. 15-29. Cf. também SIMON, D., "Rahner and Ricoeur on Religious Experience and Language", Église et Théologie 28 (1997) 77-99.

      2. Cf. CONGAR, Y., Je crois en l’Esprit Saint I. Paris, 1981,pp. 19-91; LAMBIASI, F., Lo Spirito Santo: mistero e presenza, Bologna, 1987, pp.29-89.

      3. Cf. PANNENBERG, W., "Der Geist des Lebens", em Glaube und Wirklichkeit. München, 1975, pp. 31-56.

      4. Cf. PANNENBERG, W., Systematische Theologie III. Göttingen, 1993, pp. 13-16.

      5. Cf. Ibid. 24. Na mesma linha, embora sem alcançar o nível de sistematização de Pannenberg, cf. MOLTMANN, J., Der Geist des Lebens. München, 1991.

      6. Cf. VON BALTHASAR, H. U., Theologik III. Der Geist der Wahrheit. Basel, 1987, pp. 385.389.

      7. Não entramos aqui na reflexão posterior de Pannenberg em torno dos textos acima citados, quando procura estabelecer um elo entre teologia e ciência moderna, atribuindo ao Espírito todos os fenômenos de autotranscendência numa visão evolucionista do universo, e que vem caracterizado e criticado por Balthasar como nova tentativa de fazer do Espírito a "alma do universo" (cf. op. cit., pp. 387-390).

      8. Cf. Lambiasi, F., op. cit., p. 164.

      9. Cf. CONGAR, Y., op. cit. I, p. 138.

      10. Cf. Von BALTHASAR, H. U., Theologik III, pp. 57-94.

      11. Cf. GADAMER, H. G., Wahrheit und Methode. Tübingen, 1960, p. 329.

      12. Cf. MOUROUX, J., L’expérience chrétienne. Paris, 1954, p. 24.

      13. Cf. TILLEY, T. W., "The Institutional Element in religious Experience", Modern Theology (1994) 185-212, aqui 210.

      14. Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo y los cristianos. Gracia y Liberación. Madrid, 1982, pp. 21-57; IWASHIMA, T., Menschheitsgeschichte und Heilserfahrung. Düsseldorf, 1982.

      15. Cf. MACQUARRIE, J., "God in Experience and Argument", em E. T. LONG (ed.), Experience, Reason and God. Washington, 1980, pp. 33-42, aqui pp. 34s. Cf. ainda os exemplos dados por RAHNER, K., "Erfahrung des Heiligen Geistes", Schriften zur Theologie XIII. Einsiedeln, 1978, pp. 226-251.

      16. Cf. VAZ, H. C. de L., "A linguagem da experiência de Deus", Escritos de Filosofia. Problemas de Fronteira. S. Paulo, 1986, pp. 241-256.

      17. Cf. CONGAR, Y., op. cit. II, pp. 214-217.

      18. Cf. PANNENBERG, W., "Der Geist des Lebens", p. 54s.

      19. Cf. COMBLIN, J., O Espírito Santo e a libertação. Petrópolis, 1987, pp. 37-52.

      20. Cf. o que escrevemos em "Discernimento cristão e contexto sócio-político", Convergência 19 (1984) 166-174.

      21. Cf. HILBERATH, B. J., "Zur Personalität des Heiligen Geistes", ThQ 173 (1993) 98-112, aqui 107.

      22. Cf. Alocução aos cardeais da Cúria, em 23/12/86.