A g n u s D e i

A NOITE
Autor: Charles Péguy
Fonte: "O Pórtico do Mistério da Segunda Virtude" (1943)
Tradução: José Fernandes Vidal

Ó minha Noite estrelada por mim antes de tudo criada,
tu que adormeces, que já submerges numa escuridão eterna
todas as minhas criaturas,
as mais inquietas, o cavalo fogoso, a formiga operosa,
e o homem, esse monstro de inquietude,
Noite que consegues adormecer o homem,
esse poço de inquietude,
a ele, só ele mais inquieto do que toda a criação junta,
o homem, esse poço de inquietude,
Noite que consegues adormecer o homem,
esse poço de inquietude,
a ele, só ele mais inquieto do que toda a criação junta,
o homem, esse poço de inquietude,
como adormeces a água do poço!
Ó minha Noite de grande manto
que levas os meninos e a jovem esperança
nas dobras de teu manto,
(mas os homens, esses não se deixam levar) ,
ó minha bela Noite por mim criada antes de tudo
e quase antes da primeira,
silenciosa no longo manto,
tu por quem baixa sobre a terra um antegozo,
que esparges com tuas mãos , que vertes sobre a terra,
uma paz primeira,
prenúncio mensageiro da paz eterna,
um repouso primeiro,
prenúncio mensageiro do repouso eterno,
um bálsamo primeiro, tão fresco, uma felicidade primeira,
prenúncio mensageiro da felicidade eterna,
tu que pacíficas, que embalsamas, que consolas,
que enfaixas as feridas e os membros magoados,
que adormeces os corações , que adormeces os corpos,
os corações doloridos, os corpos doloridos, cansados,
os membros rompidos, os rins alquebrados,
de fadiga, de preocupações, de inquietudes mortais,
as dores,
tu que vertes o bálsamo nas gargantas
rasgadas pela amargura,
tão fresco,
ó minha filha magnânima por mim primeira criada,
quase antes da primeira, minha filha de coração imenso,
e eu bem sabia o que estava fazendo,
eu talvez sabia o que estava fazendo,
tu que deitas o menino nos braços de sua mãe,
o menino luzindo todo na escuridão do sono,
todo sorrisos íntimos, todo sorrisos secretos
de confiança em sua mãe,
e em mim,
todo sorrisos íntimos sob os lábios sérios,
que deitas o menino, todo satisfação íntima,
transbordando inocência e confiança,
nos braços de sua mãe,
que deitavas o menino Jesus todas as tardes
nos braços da Santíssima, da Imaculada,
que és a irmã porteira da Esperança,
ó minha filha dentre todas a primeira, que consegues mesmo,
que consegues por vezes,
que deitas o homem nos braços
de minha providência materna,
ó minha filha cintilante e sombria, eu te saúdo,
a ti que consertas, que alimentas, que descansas!
Ó silêncio da escuridão!
Semelhante silêncio reinava antes da criação da inquietude,
antes do início do reino da inquietude!
Semelhante silêncio reinará , mas um silêncio de luz,
quando toda essa inquietude se consumará,
quando toda essa inquietude se esgotará,
quando eles tiverem tirado toda a água do poço,
depois da consumação, depois da exaustão
de toda essa inquietude do homem!
Assim, és minha filha primeira, e estás atrasada
porque nesse reino de inquietude recordas,
comemoras, revives quase,
quase fazes recomeçar a quietude exterior,
quando meu espírito pairava sobre as águas!
Mas, também, minha filha estrelada, minha filha de manto escuro,
estás muito adiantada, és muito precoce,
porque anuncias, porque representas, porque fazes quase
começar antes do tempo, todas as tardes,
minha grande Quietude de luz
Eterna!
Noite és santa, Noite és grande, Noite és bela!
Noite de grande manto!
Noite, eu te amo e eu te saúdo e eu te glorifico,
és minha primogênita e minha criatura!
Ó bela Noite, Noite de grande manto, minha filha de manto estrelado
me lembras, sim,
a mim mesmo me lembras aquele grande silêncio que havia
antes que eu tivesse aberto as eclusas da ingratidão!
E me anuncias, a mim mesmo me anuncias,
aquele grande silêncio que haverá quando eu as tiver fechado!

Ó doce, ó grande, ó santa, ó bela Noite,
talvez a mais santa de minhas filhas,
Noite de grande manto, de manto estrelado,
me lembras aquele grande silêncio que havia no mundo
antes do início do reino do homem!
Me anuncias aquele grande silêncio que haverá
após o fim do reino do homem, quando tiver retomado meu cetro,
e até penso às vezes em apressá-lo,
porque esse homem faz verdadeiramente barulho demais!
Mas, sobretudo, Noite, me lembras aquela Noite,
e eu dela me lembrarei eternamente,
a hora nona havia soado, era no país do meu povo de Israel,
tudo estava consumado! Aquela enorme aventura!
Depois da hora sexta houve trevas em todo o país, até à hora nona.
Tudo estava consumado. Não falemos mais disso. Isso me faz mal.
Essa incrível descida de meu filho ao meio dos homens,
entre os homens,
e aquilo que eles fizeram!
Os trinta anos em que foi carpinteiro entre os homens,
os trinta anos em que foi uma espécie de pregador entre os homens,
um padre!
Os três anos nos quais foi uma vítima entre os homens,
em meio aos homens!
As três noites nas quais ele foi um morto entre os homens,
em meio aos homens mortos!
Os séculos e séculos nos quais é uma hóstia entre os homens!
Tudo estava consumado, aquela incrível aventura
pela qual, eu, Deus, tenho os braços amarrados
por toda minha eternidade,
aquela aventura pela qual meu Filho me amarrou os braços,
eternamente amarrando os braços de minha justiça,
eternamente abrindo os braços de minha misericórdia,
e contra minha justiça inventando uma justiça própria,
uma justiça de amor, uma justiça de Esperança!
Tudo estava consumado,
o que era preciso, como fora preciso,
como meus profetas tinham anunciado!
O véu do templo rasgava-se em dois, do alto até embaixo,
a terra tremia; os rochedos se fendiam,
os sepulcros se abriam
e muitos corpos dos santos que estavam mortos ressuscitavam!
Por volta da hora nona meu Filho bradava
o grito que não mais se extinguirá!
Tudo estava consumado!
Os soldados tinham retornado a suas casernas,
rindo e brincando porque estava terminado um serviço,
um turno de guarda que não mais teriam.
Só um centurião ficara, e alguns homens.
Um corpo de guarda muito pequeno
para guardar aquele condenado sem importância,
o patíbulo do qual pendia meu Filho!
Só algumas mulheres tinham ficado.
A Mãe estava lá!
Talvez alguns discípulos também, isso mesmo não se sabe ao certo.
Ora, todo homem tem o direito a sepultar seu filho.
Todo homem na terra, se tem a grande infelicidade
de não estar morto antes de seu filho. E eu somente, eu, Deus,
os braços amarrados por aquela aventura,
Eu somente naquela hora pai dentre tantos pais,
Eu somente eu não podia sepultar meu filho!
É,então, ó Noite, que vens,
ó minha filha querida entre todas, eu vejo isso ainda,
e verei isso em minha eternidade,
é então, ó Noite, que vens e num grande sudário sepultas
o Centurião e seus soldados romanos,
a Virgem e as santas mulheres,
Aquele monte e aquele vale, sobre os quais descia a tarde,
meu povo de Israel e os pecadores,
juntamente com aquele que havia morrido,
que morrera por eles!
Os homens de José de Arimatéia que já se aproximavam
trazendo o branco sudário.



  • Observações do Tradutor: Charles Péguy foi um poeta católico e dentre seus poemas religiosos avulta este acima, inclusive com uma característica que foi a sua principal, a da repetição, como que uma ladainha, mas que tem uma função de provocar um crescendo dos sentimentos, de iluminada riqueza e eloquência. Necessário se faz que o leitor tenha paciência de seguir-lhe, com atenção, o devaneio obsessivo, pois, ao final, se sentirá recompensado com a emoção que lhe despertará o poeta, na riqueza da meditação, não de outro senão de Deus, da aventura de nossa salvação, nesse poema magistral.