A g n u s D e i

DIES DOMINI
João Paulo II
31.05.1998

Capítulo V
DIES DIERIUM
O domingo - festa primordial, reveladora do sentido do tempo

Cristo, Alfa e Omega do tempo

74. No cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental. Dentro da sua dimensão, foi criado o mundo; no seu âmbito se desenrola a história da salvação, que tem o seu ponto culminante na "plenitude do tempo" da Encarnação e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos tempos. Em Jesus Cristo, Verbo encarnado, o tempo torna-se uma dimensão de Deus, que em Si mesmo é eterno118.

À luz do Novo Testamento, os anos da existência terrena de Cristo constituem realmente o centro do tempo. Este centro tem o seu ápice na ressurreição. Com efeito, se é verdade que Ele é Deus feito homem desde o primeiro instante da concepção no seio da Virgem Santa, é verdade também que somente com a ressurreição é que a sua humanidade foi totalmente transfigurada e glorificada, revelando assim plenamente a sua identidade e glória divina. No discurso feito na sinagoga de Antioquia da Pisídia (cf. Act 13,33), Paulo aplica precisamente à ressurreição de Cristo a afirmação do Salmo 2: Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei (v. 7). Por isso mesmo, na celebração da Vigília Pascal, a Igreja apresenta Cristo ressuscitado como Princípio e Fim, Alfa e Ómega. Estas palavras, pronunciadas pelo celebrante na preparação do círio pascal que nele tem gravado o número do respectivo ano, põem em evidência que Cristo é o Senhor do tempo; é o seu princípio e o seu cumprimento; cada ano, cada dia, e cada momento ficam abraçados pela sua Encarnação e Ressurreição, reencontrando-se assim na "plenitude do tempo"119.

75. Sendo o domingo a Páscoa semanal que evoca e torna presente o dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, ele é também o dia que revela o sentido do tempo. Não tem qualquer afinidade com os ciclos cósmicos que, segundo a religião natural e a cultura humana, poderiam ritmar o tempo, fazendo crer talvez ao mito do eterno retorno. O domingo cristão é diverso! Nascendo da Ressurreição, ele sulca os tempos do homem, os meses, os anos, os séculos como uma seta lançada que os atravessa, orientando-os para a meta da segunda vinda de Cristo. O domingo prefigura o dia final, o da Parusia, já antecipada de algum modo pela glória de Cristo no acontecimento da Ressurreição.

De fato, tudo aquilo que suceder até ao fim do mundo será apenas uma expansão e explicitação do que aconteceu no dia em que o corpo martirizado do Crucificado ressuscitou pela força do Espírito e se tornou, por sua vez, a fonte do Espírito para a humanidade. Por isso, o cristão sabe que não deve esperar outro tempo de salvação, visto que o mundo, qualquer que seja a sua duração cronológica, já vive no último tempo. Não só a Igreja, mas o próprio universo e a história são continuamente dominados e guiados por Cristo glorificado. É esta energia de vida que impele a criação - esta tem gemido e sofrido as dores do parto, até ao presente (Rm 8,22) - para a meta do seu pleno resgate. Deste caminho, o homem pode ter apenas uma vaga percepção; mas os cristãos possuem a chave de interpretação e a certeza dele, constituindo a santificação do domingo um testemunho significativo que eles são chamados a dar, para que os tempos do homem sejam sempre sustentados pela esperança.

O domingo no ano litúrgico

76. Se o dia do Senhor, com o seu ritmo semanal, está radicado na tradição mais antiga da Igreja e é de importância vital para o cristão, muito cedo também começou a afirmar-se um outro ritmo: o ciclo anual. Na realidade, é próprio da psicologia humana celebrar os aniversários, associando à repetição das datas e das estações a lembrança de acontecimentos passados. E se, para além disso, se trata de fatos decisivos para a vida dum povo, é normal que a sua ocorrência gere um clima de festa que vem quebrar a monotonia dos dias.

Ora, os principais acontecimentos de salvação sobre os quais se fundamenta a vida da Igreja estiveram, por desígnio de Deus, intimamente ligados com festas anuais dos judeus - a Páscoa e o Pentecostes - e nelas foram prefigurados profeticamente. A partir do século segundo, a celebração feita pelos cristãos da Páscoa anual, juntando-se à celebração da Páscoa semanal, permitiu dar maior amplitude à meditação do mistério de Cristo morto e ressuscitado. Precedida por um jejum que a prepara, celebrada durante uma longa vigília, prolongada nos cinquenta dias que vão até ao Pentecostes, a festa da Páscoa - a solenidade das solenidades - tornou-se o dia por excelência da iniciação dos catecúmenos. Com efeito, se estes, pelo batismo, morrem para o pecado e ressuscitam para uma vida nova, é porque Cristo foi entregue por causa das nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação (Rm 4,25; cf. 6,3-11). Intimamente unida com o mistério pascal, adquire relevo especial a solenidade de Pentecostes, na qual se celebra a vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos, reunidos com Maria, e o início da missão ao encontro de todos os povos120.

77. A mesma lógica comemorativa presidiu à estruturação de todo o ano litúrgico. Como recorda o Concílio Vaticano II, a Igreja quis distribuir todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes em todo o tempo, para que os fiéis, em contato com eles, se encham de graça121.

A celebração mais solene depois da Páscoa e do Pentecostes é, sem dúvida, o Natal do Senhor, quando os cristãos meditam o mistério da Encarnação e contemplam o Verbo de Deus que Se digna assumir a nossa humanidade para nos tornar participantes da sua divindade.

78. De igual modo, na celebração deste ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor, porque indissoluvelmente unida à obra de salvação do seu Filho, a bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus122. Da mesma forma, introduzindo no ciclo anual as memórias dos mártires e de outros santos, por ocasião do seu aniversário, a Igreja proclama o mistério pascal realizado na paixão e glorificação deles com Cristo123. A recordação dos santos, se celebrada com o espírito autêntico da liturgia, não obscura a centralidade de Cristo, antes pelo contrário exalta-a, mostrando a força da sua redenção. Como canta S. Paulino de Nola, tudo passa, mas a glória dos santos perdura em Cristo, que tudo renova, enquanto Ele permanece o mesmo124. Esta relação intrínseca da glória dos santos com a de Cristo está inscrita no próprio estatuto do ano litúrgico e encontra a sua expressão mais eloquente precisamente no caráter fundamental e dominante do domingo como dia do Senhor. Seguindo os tempos do ano litúrgico com a observância do domingo que o ritma inteiramente, o compromisso eclesial e espiritual do cristão radica-se profundamente em Cristo, em quem encontra a sua razão de ser e de quem recebe alimento e estímulo.

79. Deste modo, o domingo constitui o modelo natural para se compreender e celebrar aquelas solenidades do ano litúrgico, cujo valor espiritual para a existência cristã é tão grande que a Igreja decidiu sublinhar a sua importância, impondo aos fiéis a obrigação de participar na Missa e observar o descanso, mesmo quando coincidem em dia de semana125. O número destas festas foi variando ao longo das diferentes épocas, tendo em conta as condições sociais e econômicas, o arraigamento delas na tradição, e ainda o apoio da legislação civil126.

O ordenamento canônico-litúrgico atual prevê a possibilidade de cada Conferência Episcopal, em virtude de circunstâncias próprias do seu país, reduzir a lista dos dias de preceito. Uma eventual decisão nesse sentido, porém, precisa de ser confirmada por uma aprovação especial da Sé Apostólica127, e, se fosse o caso da celebração dum mistério do Senhor, como a Epifania, a Ascensão ou a solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, tal celebração deve passar para o domingo seguinte, segundo as normas litúrgicas, para que os fiéis não sejam privados da meditação do mistério128. Os Pastores procurarão diligentemente encorajar os fiéis a participarem na Missa também nas festas de certa importância que calham durante a semana129.

80. Merecem uma reflexão pastoral específica aquelas situações, frequentes, em que tradições populares e culturais típicas dum ambiente ameaçam invadir a celebração dos domingos e outras festas litúrgicas, incorporando no espírito da fé cristã autêntica elementos que lhe são alheios e poderiam desfigurá-la. Nestes casos, importa pôr as coisas claras através da catequese e de oportunas iniciativas pastorais, rejeitando tudo o que for incompatível com o Evangelho de Cristo. Porém, é preciso não esquecer que muitas vezes tais tradições - e o mesmo vale, analogamente, para as novas propostas culturais da sociedade civil - possuem valores que se harmonizam, sem dificuldade, com as exigências da fé. Compete aos Pastores efetuar um discernimento que salve os valores presentes na cultura dum determinado contexto social e, sobretudo, na religiosidade popular, de forma que a celebração litúrgica, sobretudo a dos domingos e dias festivos, não fique prejudicada, mas antes seja valorizada com eles130.

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