A g n u s D e i

DIES DOMINI
João Paulo II
31.05.1998

Capítulo IV
DIES HOMINIS
O domingo - dia de alegria, repouso e solidariedade

A alegria plena de Cristo

55. Bendito seja Aquele que elevou o grande dia do Domingo acima de todos os dias. Os céus e a terra, os anjos e os homens abandonam-se à alegria99. Estes prólogo da liturgia maronita testemunha bem as intensas aclamações de alegria que sempre caracterizaram o domingo, nas liturgias ocidental e oriental. Historicamente, ainda antes de ser vivido como dia de repouso aliás não previsto então no calendário civil - os cristãos viveram o dia semanal do Senhor ressuscitado sobretudo como dia de alegria. Que todos estejam alegres, no primeiro dia da semana: lê-se na Didaskália dos Apóstolos100. A manifestação da alegria era visível também no uso litúrgico, mediante a escolha de gestos apropriados101. S. Agostinho, fazendo-se intérprete da consciência geral da Igreja, põe evidência tal caráter da Páscoa semanal: Omitem-se os jejuns e reza-se de pé como sinal da ressurreição; também por isso se canta todos os domingos o aleluia102.

56. Para além das diversas expressões rituais que podem variar com o tempo segundo a disciplina eclesial, resta o fato de o domingo, eco semanal da primeira experiência do Ressuscitado, não poder deixar de conservar o tom da alegria com que os discípulos acolheram o Mestre: Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor (Jo 20,20). Cumpria-se neles, tal como se há de atuar em todas as gerações cristãs, aquilo que Jesus disse antes da paixão: Vós estareis tristes, mas a vossa tristeza converter-se-á em alegria (Jo 16,20). Porventura não tinha Ele mesmo rezado para que os discípulos tivessem a plenitude da sua alegria (cf. Jo 17,13)? O caráter festivo da Eucaristia dominical exprime a alegria que Cristo transmite à sua Igreja através do dom do Espírito; a alegria é precisamente um dos frutos do Espírito Santo (cf. Rm 14,17; Gl 5,22).

57. Assim, para apreender completamente o sentido do domingo, é preciso descobrir esta dimensão da nossa existência de crentes. É certo que a alegria cristã deve caracterizar toda a vida, e não só um dia da semana. Mas o domingo, em virtude do seu significado de dia do Senhor ressuscitado, no qual se celebra a obra divina da criação e da nova criação, é, a título especial, um dia de alegria, mais ainda um dia propício para educar à alegria, descobrindo novamente os seus traços autênticos e as suas raízes profundas. Na realidade, a alegria não deve ser confundida com fúteis sentimentos de saciedade e prazer, que inebriam a sensibilidade e a afetividade por breves momentos, mas depois deixam o coração na insatisfação e talvez mesmo na amargura. Do ponto de vista cristão, ela é algo de muito mais duradouro e consolador, conseguindo mesmo, como o comprovam os santos103, resistir à noite escura da dor; de certo modo, é uma virtude a ser cultivada.

58. Não existe qualquer oposição entre a alegria cristã e as verdadeiras alegrias humanas. Pelo contrário, estas ficam enaltecidas e encontram o seu fundamento último precisamente na alegria de Cristo glorificado (cf. At 2, 24-31), imagem perfeita e revelação do homem segundo o desígnio de Deus. Na sua Exortação Apostólica sobre a alegria cristã, o meu venerado predecessor Paulo VI escreveu que, por essência, a alegria cristã é participação espiritual na alegria insondável, conjuntamente divina e humana, que está no coração de Jesus Cristo glorificado104. E o referido Sumo Pontífice concluía a sua Exortação pedindo que, no dia do Senhor, a Igreja testemunhasse vigorosamente a alegria experimentada pelos Apóstolos, quando viram o Senhor na tarde do dia de Páscoa. Por isso, convidava os Pastores a insistirem na fidelidade dos batizados à celebração, com alegria, da Eucaristia dominical. Como poderiam eles, de fato, negligenciar este encontro, este banquete que Cristo nos prepara com o seu amor? Que a participação em tal celebração seja, ao mesmo tempo, digna e festiva! É Cristo, crucificado e glorificado, que passa entre os seus discípulos para conduzí-los todos juntos, consigo, na renovação da sua Ressurreição. É o ápice, aqui neste mundo, da Aliança de amor entre Deus e o seu povo: sinal e fonte de alegria cristã, preparação para a Festa eterna105. Nus perspectiva de fé, o domingo cristão é verdadeiramente um fazer festa, um dia dado por Deus ao homem para o seu pleno crescimento humano e espiritual.

O cumprimento do sábado

59. Este aspecto do domingo crÐristão põe especialmente em evidência a sua dimensão de cumprimento do sábado vétero testamentário. No dia do Senhor, que o Antigo Testamento - como foi dito - liga com a obra da Criação (cf. Gn 2,1-3; Ex 20,8-11) e do Êxodo (cf. Dt 5,12-15), o cristão é chamado a anunciar a nova criação e a nova aliança, realizadas no mistério pascal de Cristo. A celebração da criação, longe de ser anulada, é aprofundada em perspectiva cristocêntrica, ou seja, à luz do desígnio divino de recapitular em Cristo todas as coisas que há no Céu e na Terra (Ef 1,10). E ao memorial da libertação realizada no Êxodo, é-lhe conferido também sentido pleno, tornando-se memorial da redenção universal operada por Cristo morto e ressuscitado. Portanto, mais do que uma substituição do sábado, o domingo constitui a sua perfeita realização e, de certa forma, o seu desenvolvimento e plena expressão no caminho da história da salvação, que tem o seu ponto culminante em Cristo.

60. Nesta perspectiva, a teologia bíblica do shabbat pode ser plenamente recuperada, sem causar dano ao caráter cristão do domingo. Ela leva-nos, sempre de novo e com uma maravilha cada vez maior, àquele início misterioso, quando a eterna Palavra de Deus, por livre decisão de amor, tirou do nada o mundo. Chancela da obra criadora foi a bênção e consagração do dia em que Deus repousou de toda a obra da Criação (Gn 2,3). Deste dia do repouso de Deus, brota o sentido do tempo, que assume, na sucessão das semanas, não apenas um ritmo cronológico, mas, por assim dizer, um respiro teológico. O constante retorno do shabbat salva efetivamente o tempo do risco de fechar-se sobre si mesmo, para que permaneça aberto ao horizonte da eternidade, através do acolhimento de Deus e dos seus kairoì ou seja, dos tempos da sua graça e das suas iniciativas de salvação.

61. O shabbat, o sétimo dia abençoado e consagrado por Deus, ao mesmo tempo que encerra toda a obra da criação, está em ligação imediata com a obra do sexto dia, quando Deus fez o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26). Esta relação mais direta entre o dia de Deus e o dia do homem não passou despercebida aos Padres, na sua meditação sobre o relato bíblico da Criação. A este propósito, S. Ambrósio diz: Demos, pois, graças ao Senhor nosso Deus, que fez uma obra onde Ele pudesse encontrar descanso. Fez o céu, mas não leio que aí tenha repousado; fez as estrelas, a lua, o sol, e nem aqui leio que tenha descansado neles. Mas, ao contrário, leio que Ele fez o homem e que então Se repousou, tendo nele alguém a quem podia perdoar os pecados106. Assim, o dia de Deus estará sempre diretamente relacionado com o dia do homem. Quando o mandamento de Deus diz: Recorda-te do dia de sábado, para o santificares (Ex 20,8), a pausa prescrita para honrar o dia a Ele dedicado não constitui de modo algum uma imposição gravosa para o homem, mas antes uma ajuda, para que se conscientize da sua dependência vital e libertadora do Criador e, simultaneamente, da vocação para colaborar na sua obra e acolher a sua graça. Deste modo, honrando o repouso de Deus, o homem encontra-se plenamente a si próprio, e assim o dia do Senhor fica profundamente marcado pela bênção divina (cf. Gn 2,3) e, graças a ela, dir-se-ia dotado, como acontece com os animais e com os homens (cf. Gn 1,22.28), de uma espécie de fecundidade. Esta exprime-se, não só no constante acompanhamento do ritmo do tempo, mas sobretudo no reanimar e, de certo modo, multiplicar o próprio tempo, aumentando no homem, com a lembrança do Deus vivo, a alegria de viver e o desejo de promover e dar a vida.

62. Assim, se é verdade que, para o cristão, decaíram as modalidades do sábado judaico, porque superadas pelo cumprimento dominical, ele deverá lembrar-se que permanecem válidos os motivos de base que obrigam à santificação do dia do Senhor, fixados pela solenidade do Decálogo, mas que hão de ser interpretados à luz da teologia e da espiritualidade do domingo: Guardarás o dia de Sábado, para o santificares, como te ordenou o Senhor, teu Deus. Trabalharás durante seis dias, e neles farás todas as tuas obras; mas, no sétimo dia, que é o sábado do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum: tu, o teu filho ou a tua filha, o teu escravo ou a tua escrava, o teu boi, o teu jumento ou qualquer outro dos teus animais; nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Recorda-te de que foste escravo no país do Egipto, donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de Sábado (Dt 5,12-15). Aqui a observância do sábado aparece intimamente ligada à obra de libertação realizada por Deus em favor do seu povo.

63. Cristo veio para realizar um novo êxodo, para dar a liberdade aos oprimidos. Ele realizou muitas curas ao sábado (cf. Mt 12,9-14 e paralelos), certamente não para violar o dia do Senhor, mas para realizar o seu pleno significado: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado (Mc 2,27). Opondo-Se à interpretação demasiado legalista de alguns dos seus contemporâneos e desenvolvendo o sentido autêntico do sábado bíblico, Jesus, Senhor do sábado (Mc 2,28), devolve o caráter libertador à observância deste dia, instituído simultaneamente para a defesa dos direitos de Deus e dos homens. Compreende-se, assim, porque era justo que os cristãos, anunciadores da libertação realizada pelo sangue de Cristo, se sentissem autorizados a transpor o significado do sábado para o dia da ressurreição. De fato, a Páscoa de Cristo libertou o homem duma escravidão muito mais radical do que aquela que grava sobre um povo oprimido: a escravidão do pecado, que afasta o homem de Deus, que o afasta também de si mesmo e dos outros, introduzindo continuamente na história novos gérmens de maldade e violência.

O dia do descanso

64. Durante alguns séculos, os cristãos viveram o domingo apenas como dia do culto, sem poderem juntar-lhe também o significado específico de descanso sabático. Só no século IV é que a lei civil do Império Romano reconheceu o ritmo semanal, fazendo com que, no dia do sol, os juízes, os habitantes das cidades e as corporações dos diversos ofícios parassem de trabalhar107. Grande contentamento sentiram os cristãos ao verem assim afastados os obstáculos que, até então, tinham tornado por vezes heróica a observância do dia do Senhor. Podiam agora dedicar-se à oração comum, sem qualquer impedimento108.

Por isso, seria um erro ver a legislação que defende o ritmo semanal como uma mera circunstância histórica, sem valor para a Igreja ou que esta poderia abandonar. Os Concílios não cessaram de manter, mesmo depois do fim do Império, as disposições relativas ao descanso festivo. Mesmo nos países, onde os cristãos são um pequeno número e os dias festivos do calendário não coincidem com o domingo, este permanece sempre o dia do Senhor, o dia em que os fiéis se reúnem para a assembléia eucarística. Mas isto verifica-se à custa de sacrifícios não pequenos. Para os cristãos, é anormal que o domingo, dia de festa e de alegria, não seja também dia de descanso, tornando-se para eles difícil santificar o domingo, já que não dispõem de tempo livre suficiente.

65. Por outro lado, a ligação entre o dia do Senhor e o dia do descanso na sociedade civil tem uma importância e um significado que ultrapassam o horizonte propriamente cristão. De fato, a alternância de trabalho e descanso, inscrita na natureza humana, foi querida pelo próprio Deus, como se deduz da perícope da criação no livro do Gênese (cf. 2,2-3; Ex 20,8-11): o repouso é coisa sagrada, constituindo a condição necessária para o homem se subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e retomar consciência de que tudo é obra de Deus. O poder sobre a criação, que Deus concede ao homem, é tão prodigioso que este corre o risco de esquecer-se que Deus é o Criador, de quem tudo depende. Este reconhecimento é ainda mais urgente na nossa época, porque a ciência e a técnica aumentaram incrivelmente o poder que o homem exerce através do seu trabalho.

66. Por último, importa não perder de vista que o trabalho é, ainda no nosso tempo, uma dura escravidão para muitos, seja por causa das condições miseráveis em que é efetuado e dos horários impostos, especialmente nas regiões mais pobres do mundo, seja por subsistirem, mesmo nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, demasiados casos de injustiça e exploração do homem pelo homem. Quando a Igreja, ao longo dos séculos, legislou sobre o descanso dominical109, teve em consideração sobretudo o trabalho dos criados e dos operários, certamente não porque este fosse um trabalho menos digno relativamente às exigências espirituais da prática dominical, mas sobretudo porque mais carente duma regulamentação que aliviasse o seu peso e permitisse a todos santificarem o dia do Senhor. Nesta linha, o meu venerado predecessor Leão XIII, na encíclica "Rerum Novarum" apontava o descanso festivo como um direito do trabalhador, que o Estado deve garantir110.

E, no contexto histórico atual, permanece a obrigação de batalhar para que todos possam conhecer a liberdade, o descanso e o relaxe necessários à sua dignidade de homens, com as conexas exigências religiosas, familiares, culturais, interpessoais, que dificilmente podem ser satisfeitas, se não ficar salvaguardado pelo menos um dia semanal para gozarem juntos da possibilidade de repousar e fazer festa. Obviamente, este direito do trabalhador ao descanso pressupõe o seu direito ao trabalho, pelo que, ao refletirmos sobre esta problemática ligada à concepção cristã do domingo, não podemos deixar de recordar, com sentida solidariedade, a situação penosa de tantos homens e mulheres que, por falta dum emprego, se vêem constrangidos à inatividade mesmo nos dias laborativos.

67. Graças ao descanso dominical, as preocupações e afazeres cotidianos podem reencontrar a sua justa dimensão: as coisas materiais, pelas quais nos afadigamos, dão lugar aos valores do espírito; as pessoas com quem vivemos, recuperam, no encontro e diálogo mais tranquilo, a sua verdadeira fisionomia. As próprias belezas da natureza - frequentemente mal baratadas por uma lógica de domínio, que se volta contra o homem - podem ser profundamente descobertas e apreciadas. Assim o domingo, dia de paz do homem com Deus, consigo mesmo e com os seus semelhantes, torna-se também ocasião em que o homem é convidado a lançar um olhar regenerado sobre as maravilhas da natureza, deixando-se envolver por aquela estupenda e misteriosa harmonia que, como diz S. Ambrósio, por uma lei inviolável de concódia e de amor, une os diversos elementos do universo num vínculo de união e de paz111. Então, o homem torna-se mais consciente, segundo as palavras do Apóstolo, de que tudo o que Deus criou é bom, e não é para desprezar, contanto que se tome em ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração (1Tm 4,4-5). Portanto, se depois de seis dias de trabalho - para muitos, na verdade, reduzidos já a cinco - o homem procura um tempo para relaxe e para cuidar melhor dos outros aspectos da própria vida, isso corresponde a uma real necessidade, em plena harmonia com a perspectiva da mensagem evangélica. Consequentemente, o crente é chamado a satisfazer esta exigência, harmonizando-a com as expressões da sua fé pessoal e comunitária, manifestada na celebração e santificação do dia do Senhor.

Por isso, é natural que os cristãos se esforcem para que, também nas circunstâncias específicas do nosso tempo, a legislação civil tenha em conta o seu dever de santificar o domingo. Em todo o caso, têm a obrigação de consciência de organizar o descanso dominical de forma que lhes seja possível participar na Eucaristia, abstendo-se dos trabalhos e negócios incompatíveis com a santificação do dia do Senhor, com a sua alegria própria e com o necessário repouso do espírito e do corpo112.

68. Uma vez que o descanso, para não se tornar vazio nem fonte de tédio, deve gerar enriquecimento espiritual, maior liberdade, possibilidade de contemplação e comunhão fraterna, os fiéis hão de escolher, de entre os meios da cultura humana e as diversões que a sociedade proporciona, aqueles que estão mais de acordo com uma vida segundo os preceitos do Evangelho. Nesta perspectiva, o descanso dominical e festivo adquire uma dimensão profética, defendendo não só o primado absoluto de Deus, mas também o primado e a dignidade da pessoa sobre as exigências da vida social e econômica, e antecipando de certo modo os novos céus e a nova terra, onde a libertação da escravidão das necessidades será definitiva e total. Em resumo, o dia do Senhor, na sua forma mais autêntica, torna-se também o dia do homem.

Dia de solidariedade

69. O domingo deve dar oportunidade aos fiéis para se dedicarem também às atividades de misericórdia, caridade e apostolado. A participação interior na alegria de Cristo ressuscitado implica a partilha total do amor que pulsa no seu coração: não há alegria sem amor! O próprio Jesus no-lo explica, ao pôr em relação o mandamento novo com o dom da alegria: Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, do mesmo modo que Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai, e permaneço no seu amor. Digo-vos isto para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa. O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei (Jo 15,10-12).

Assim, a Eucaristia dominical não só não desvia dos deveres de caridade, mas, pelo contrário, estimula os fiéis a tudo o que seja obra de caridade, de piedade e apostolado, onde os cristãos possam mostrar que são a luz do mundo, embora não sejam deste mundo, e que glorificam o Pai diante dos homens113.

70. De fato, a reunião dominical constituiu para os cristãos, desde os tempos apostólicos, um momento de partilha fraterna com os mais pobres. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em sua casa, o que tiver podido poupar (1Cor 16,2). Trata-se aqui da colecta organizada por S. Paulo em favor das Igrejas pobres da Judéia: na Eucaristia dominical, o coração crente cresce até assumir as dimensões da Igreja. Mas, é preciso compreender profundamente o convite do Apóstolo, que, longe de promover uma mentalidade mesquinha que se contente do óbolo, faz apelo sobretudo a uma exigente cultura da solidariedade, concretizada tanto entre os próprios membros da comunidade como em favor da sociedade inteira114. Há uma grande necessidade de escutar de novo as severas advertências que ele faz à comunidade de Corinto, culpada de ter humilhado os pobres na ágape fraterna que acompanhava a ceia do Senhor: Deste modo, quando vos reunis, não o fazeis para comer a ceia do Senhor, pois cada um de vós se apressa a tomar a sua própria ceia; e, enquanto uns passam fome, outros se fartam. Porventura não tendes casas para comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm? (1Cor 11,20-22). E não é menos vigorosa esta palavra de S. Tiago: Porque, se entrar na vossa assembléia um homem com anel de ouro no dedo e com vestidos preciosos e entrar também um pobre sordidamente vestido, e atenderdes ao que está magnificamente vestido, dizendo-lhe: Senta-te tu aqui, neste lugar de honra, e dizendo ao pobre: Fica de pé aí, ou: Senta-te abaixo de meu estrado, não é verdade que fazeis distinção entre vós mesmos e que sois juízes de pensamentos iníquos? (2,2-4).

71. Estas indicações dos Apóstolos foram solicitamente seguidas logo desde os primeiros séculos, e suscitaram apelos vigorosos na pregação dos Padres da Igreja. Aos ricos que presumiam ter satisfeito suas obrigações religiosas frequentando a igreja mas sem partilharem os seus bens com os pobres ou mesmo oprimindo-os, S. Ambrósio dirige estas palavras ardentes: Ouves, ó rico, o que diz o Senhor Deus!? E tu vens à igreja, não para dar qualquer coisa a quem é pobre, mas para te aproveitares115. Igualmente exigente é S. João Crisóstomo: Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora o abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: "Isto é o meu Corpo", confirmando o fato com a sua palavra, também afirmou: "Vistes-Me com fome e não me destes de comer", e ainda: "Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes". (...) De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra116.

São palavras que lembram, eficazmente, à comunidade cristã o dever de fazer da Eucaristia o lugar onde a fraternidade se torne solidariedade concreta, onde os últimos sejam os primeiros na consideração e na estima dos irmãos, onde o próprio Cristo, através da doação generosa dos ricos aos pobres, possa de algum modo continuar ao longo dos tempos o milagre da multiplicação dos pães117.

72. A Eucaristia é acontecimento e projeto de fraternidade. Da Missa dominical parte uma onda de caridade destinada a estender-se a toda a vida dos fiéis, começando por animar o próprio modo de viver o resto do domingo. Se este é dia de alegria, é preciso que o cristão mostre, com as suas atitudes concretas, que não se pode ser feliz sozinho. Ele olha ao seu redor, para individuar as pessoas que possam ter necessidade da sua solidariedade. Pode suceder que, entre os vizinhos ou no âmbito das suas relações, hajam doentes, idosos, crianças, imigrantes, que, precisamente ao domingo, sentem ainda mais dura a sua solidão, a sua necessidade, a sua condição dolorosa. É certo que a atenção por eles não pode limitar-se a uma esporádica iniciativa dominical. Mas, suposta esta atitude de compromisso mais global, porque não dar ao dia do Senhor uma tonalidade maior de partilha, pondo em ação toda a capacidade inventiva da caridade cristã? Sentar à própria mesa alguma pessoa que viva sozinha, visitar os doentes, levar de comer a qualquer família necessitada, dedicar algumas horas a iniciativas específicas de voluntariado e de solidariedade, seria, sem dúvida, um modo de transferir para a vida a caridade de Cristo recebida na Mesa Eucarística.

73. Vivido assim, não só a Eucaristia dominical, mas o domingo inteiro torna-se uma grande escola de caridade, de justiça e de paz. A presença do Ressuscitado no meio dos seus torna-se projeto de solidariedade, urgência de renovação interior, impulso para alterar as estruturas de pecado onde se encontram enredados os indivíduos, as comunidades e às vezes povos inteiros. Longe de ser evasão, o domingo cristão é antes profecia inscrita no tempo, profecia que obriga os crentes a seguir os rastos d'Aquele que veio para anunciar a Boa Nova aos pobres, (...) para proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; para mandar em liberdade os oprimidos, e proclamar um ano de graça do Senhor (Lc 4,18-19). Frequentando a escola d'Ele, na comemoração dominical da Páscoa, e recordando a sua promessa: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou (Jo 14,27), o crente torna-se por sua vez agente de paz.

Retornar