A g n u s D e i

DIES DOMINI
João Paulo II
31.05.1998

Capítulo II
DIES CHRISTI
O dia do Senhor ressuscitado e do dom do Espírito

A Páscoa semanal

19. Nós celebramos o domingo, devido à venerável ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, não só na Páscoa, mas inclusive em cada ciclo semanal: assim escrevia o Papa Inocêncio I, nos começos do século V15, testemunhando um costume já consolidado, que se tinha vindo a desenvolver logo desde os primeiros anos após a ressurreição do Senhor. S. Basílio fala do santo domingo, honrado pela ressurreição do Senhor, primícia de todos os outros dias16. S. Agostinho chama o domingo sacramento da Páscoa17.

Esta ligação íntima do domingo com a ressurreição do Senhor é fortemente sublinhada por todas as Igrejas, tanto do Ocidente como do Oriente. De modo particular na tradição das Igrejas Orientais, cada domingo é a anastàsimos hemèra, o dia da ressurreição18, e precisamente por esta sua característica, é o centro de todo o culto.

À luz desta tradição ininterrupta e universal, vê-se com toda a clareza que, embora o dia do Senhor tenha as suas raízes, como se disse, na mesma obra da Criação, e mais diretamente no mistério do repouso bíblico de Deus, contudo é preciso fazer referência especificamente à ressurreição de Cristo para se alcançar o pleno sentido daquele. É o que faz o domingo cristão, ao repropor cada semana à consideração e à vida dos crentes o evento pascal, donde emana a salvação do mundo.

20. Segundo o unânime testemunho evangélico, a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos aconteceu no primeiro dia depois do sábado (Mc 16,2.9; Lc 24,1; Jo 20,1). Naquele mesmo dia, o Ressuscitado manifestou-Se aos dois discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e apareceu aos onze Apóstolos que estavam reunidos (cf. Lc 24,36; Jo 20,19). Passados oito dias - como testemunha o Evangelho de S. João (cf. 20,26) - os discípulos estavam novamente juntos, quando Jesus lhes apareceu e fez-Se reconhecer por Tomé, mostrando os sinais da sua paixão. Era domingo, o dia de Pentecostes, primeiro dia da oitava semana após a páscoa judaica (cf. At 2,1), quando, com a efusão do Espírito Santo, se cumpriu a promessa feita por Jesus aos Apóstolos depois da ressurreição (cf. Lc 24,49; At 1,4-5). Aquele foi o dia do primeiro anúncio e dos primeiros batismos: Pedro proclamou à multidão reunida que Cristo tinha ressuscitado, e os que aceitaram a sua palavra receberam o batismo (At 2,41). Foi a epifania da Igreja, manifestada como povo que congrega na unidade, independentemente de toda a variedade, os filhos de Deus dispersos.

O primeiro dia da semana

21. É nesta base que, desde os tempos apostólicos, o primeiro dia depois do sábado, primeiro da semana, começou a caracterizar o próprio ritmo da vida dos discípulos de Cristo (cf. 1Cor 16,2). Primeiro dia depois do sábado era também aquele em que os fiéis de Tróade estavam reunidos para partir o pão, quando S. Paulo lhes dirigiu o discurso de despedida e realizou um milagre para devolver a vida ao jovem Êutico (cf. At 20,7-12). O livro do Apocalipse testemunha o costume de dar a este primeiro dia da semana o nome de dia do Senhor (1,10). Doravante isto será uma das características que distinguirão os cristãos do mundo circunstante. Já o apontava, ao início do segundo século, o governador da Bitínia, Plínio o Jovem, constatando o hábito dos cristãos se reunirem num dia fixo, antes da aurora, e entoarem juntos um hino a Cristo, como a um deus19. De fato, quando os cristãos diziam dia do Senhor, faziam-no atribuindo ao termo a plenitude de sentido que lhe vem da mensagem pascal: Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2,11; cf. At 2,36; 1Cor 12,3). Reconhecia-se, deste modo, Cristo com o mesmo título usado pelos Setenta para traduzirem, na revelação do Antigo Testamento, o nome próprio de Deus, JHWH, que não era lícito pronunciar.

22. Nestes primeiros tempos da Igreja, o ritmo semanal dos dias não era geralmente conhecido nas regiões onde o Evangelho se difundia, e os dias festivos dos calendários grego e romano não coincidiam com o domingo cristão. Isto comportava para os cristãos uma notável dificuldade para observar o dia do Senhor, com o seu carácter fixo semanal. Assim se explica porque os fiéis eram obrigados a reunirem-se antes do nascer do sol20. Todavia, a fidelidade ao ritmo semanal mantinha-se porque estava fundada no Novo Testamento e ligada à revelação do Antigo Testamento. Os Apologistas e os Padres da Igreja sublinham-no de bom grado nos seus escritos e na sua pregação. O mistério pascal era ilustrado através daqueles textos da Escritura que, conforme o testemunho de S. Lucas (cf. 24,27.44-47), o próprio Cristo ressuscitado devia ter explicado aos discípulos. Baseada nesses textos, a celebração do dia da ressurreição adquiria um valor doutrinal e simbólico, capaz de exprimir toda a novidade do mistério cristão.

Progressiva distinção do sábado

23. É precisamente sobre esta novidade que insiste a catequese dos primeiros séculos, procurando distinguir o domingo do sábado hebraico. O sábado, para os judeus, impunha o dever da reunião na sinagoga e exigia a prática do repouso prescrito pela Lei. Os Apóstolos, e de modo particular S. Paulo, continuaram de início a frequentar a sinagoga, para poderem anunciar lá Jesus Cristo, ao comentar as profecias que são lidas todos os sábados (At 13,27). Em algumas comunidades, podia-se registar a coexistência da observância do sábado com a celebração dominical. Bem cedo, porém, se começou a diferenciar os dois dias de forma cada vez mais nítida, sobretudo para fazer frente às insistências daqueles cristãos que, vindos do judaísmo, eram favoráveis à conservação da obrigação da Lei Antiga. S. Inácio de Antioquia escreve: Se os que viviam no antigo estado de coisas passaram a uma nova esperança, deixando de observar o sábado e vivendo segundo o dia do Senhor, dia em que a nossa vida despontou por meio d'Ele e da sua morte [...], mistério do qual recebemos a fé e no qual perseveramos para sermos reconhecidos discípulos de Cristo, nosso único Mestre, como poderemos viver sem Ele, se inclusive os profetas, que são seus discípulos no Espírito, O aguardavam como mestre?21. E S. Agostinho, por sua vez, observa: Por isso, o Senhor também imprimiu o seu selo no seu dia, que é o terceiro após a paixão. Porém, no ciclo semanal, aquele é o oitavo depois do sétimo, isto é, depois do sábado, e o primeiro da semana22. A distinção entre o domingo e o sábado hebraico vai se consolidando sempre mais na consciência eclesial, mas em certos períodos da história, devido à ênfase dada à obrigação do descanso festivo, regista-se uma certa tendência à sabatização do dia do Senhor. Não faltaram, inclusive, setores da cristandade em que o sábado e o domingo foram observados como dois dias irmãos23.

O dia da nova criação

24. A comparação do domingo cristão com a concepção do sábado, própria do Antigo Testamento, suscitou também aprofundamentos teológicos de grande interesse. De modo particular, evidenciou-se a ligação especial que existe entre a ressurreição e a criação. Era, de fato, natural para a reflexão cristã relacionar a ressurreição, acontecida no primeiro dia da semana, com o primeiro dia daquela semana cósmica (cf. Gn 1,1-2,4) em que o livro do Gênese divide o evento da criação: o dia da criação da luz (cf. 1,3-5). O relacionamento feito convidava a ver a ressurreição como o início de uma nova criação, da qual Cristo glorioso constitui as primícias, sendo Ele o Primogénito de toda a criação (Cl 1,15), e também o Primogênito dos que ressuscitam dos mortos (Cl 1,18).

25. O domingo, com efeito, é o dia em que, mais do que qualquer outro, o cristão é chamado a lembrar a salvação que lhe foi oferecida no batismo e que o tornou homem novo em Cristo. Sepultados com Ele no batismo, foi também com Ele que ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que O ressuscitou dos mortos (Cl 2,12; cf. Rm 6,4-6). A liturgia põe em evidência esta dimensão batismal do domingo, quer exortando a celebrar os batismos, para além da Vigília Pascal, também neste dia da semana em que a Igreja comemora a ressurreição do Senhor24 quer sugerindo, como oportuno rito penitencial no início da Missa, a aspersão com a água benta, que evoca precisamente o evento batismal em que nasce toda a existência cristã25.

O oitavo dia, imagem da eternidade

26. Por outro lado, o fato de o sábado ser o sétimo dia da semana fez considerar o dia do Senhor à luz de um simbolismo complementar, muito apreciado pelos Padres: o domingo, além de ser o primeiro dia, é também o oitavo dia, ou seja, situado, relativamente à sucessão septenária dos dias, numa posição única e transcendente evocadora, não só do início do tempo, mas também do seu fim no século futuro. S. Basílio explica que o domingo significa o dia realmente único que virá após o tempo atual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho26. Nesta perspectiva do dia último, que realiza plenamente o simbolismo prefigurativo do sábado, S. Agostinho conclui as Confissões falando do eschaton como paz tranquila, paz do sábado, que não entardece27. A celebração do domingo, dia simultaneamente primeiro e oitavo, orienta o cristão para a meta da vida eterna28.

O dia de Cristo-luz

27. Nesta perspectiva cristocêntrica, compreende-se uma outra valência simbólica que a reflexão crente e a prática pastoral atribuíram ao dia do Senhor. De fato, uma perspicaz intuição pastoral sugeriu à Igreja de cristianizar, aplicando-a ao domingo, a conotação de dia do sol, expressão esta com que os romanos denominavam este dia e que ainda aparece em algumas línguas contemporâneas29, subtraindo os fiéis às seduções de cultos que divinizavam o sol e orientando a celebração deste dia para Cristo, verdadeiro sol da humanidade. S. Justino, escrevendo aos pagãos, utiliza a terminologia corrente para dizer que os cristãos faziam a sua reunião no chamado dia do sol30, mas a alusão a esta expressão assume, já então, para os crentes um novo sentido perfeitamente evangélico31. Cristo é realmente a luz do mundo (cf. Jo 9,5; veja-se também 1,4-5.9), e o dia comemorativo da sua ressurreição é o reflexo perene, no ritmo semanal do tempo, desta epifania da sua glória. O tema do domingo, como dia iluminado pelo triunfo de Cristo ressuscitado, está presente na Liturgia das Horas32, e possui uma ênfase especial na vigília noturna que, nas liturgias orientais, prepara e introduz o domingo. Reunindo-se neste dia, a Igreja, de geração em geração, torna própria a admiração de Zacarias, quando dirige o olhar para Cristo anunciando-O como o sol nascente para iluminar os que se jazem nas trevas e na sombra da morte (Lc 1,78-79), e vibra em sintonia com a alegria experimentada por Simeão quando tomou em seus braços o Deus Menino enviado como luz para iluminar as nações (Lc 2,32).

O dia do dom do Espírito

28. Dia de luz, o domingo poderia chamar-se também, com referência ao Espírito Santo, dia do fogo. A luz de Cristo, de fato, liga-se intimamente com o fogo do Espírito, e ambas as imagens indicam o sentido do domingo cristão33. Mostrando-Se aos Apóstolos no entardecer do dia de Páscoa, Jesus soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhe-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos (Jo 20,22-23). A efusão do Espírito foi o grande dom do Ressuscitado aos seus discípulos no domingo de Páscoa. Era também domingo, quando, cinquenta dias após a ressurreição, o Espírito desceu com força, como vento impetuoso e fogo (At 2,2-3) sobre os Apóstolos reunidos com Maria. O Pentecostes não é só um acontecimento das origens, mas um mistério que anima perenemente a Igreja34. Se tal acontecimento tem o seu tempo litúrgico forte na celebração anual com que se encerra o grande domingo35, ele permanece também inscrito, precisamente pela sua íntima ligação com o mistério pascal, no sentido profundo de cada domingo. A Páscoa da semana torna-se assim, de certa forma, Pentecostes da semana, no qual os cristãos revivem a experiência feliz do encontro dos Apóstolos com o Ressuscitado, deixando-se vivificar pelo sopro do seu Espírito.

O dia da fé

29. Por todas estas dimensões que o caracterizam, o domingo revela-se como o dia da fé por excelência. Nele, o Espírito Santo, memória viva da Igreja (cf. Jo 14,26), faz da primeira manifestação do Ressuscitado um evento que se renova no hoje de cada um dos discípulos de Cristo. Encontrando-O na assembléia dominical, os crentes sentem-se interpelados como o apóstolo Tomé: Chega aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente (Jo 20,27). Sim, o domingo é o dia da fé. Salienta-o o fato de a liturgia dominical, como de resto a das solenidades litúrgicas, prever a profissão de fé. O Credo, recitado ou cantado, põe em relevo o caráter batismal e pascal do domingo, fazendo deste o dia em que, por título especial, o batizado renova a própria adesão a Cristo e ao seu Evangelho, numa consciência mais viva das promessas batismais. Acolhendo a Palavra e recebendo o Corpo do Senhor, ele contempla Jesus ressuscitado, presente nos sinais sagrados, e confessa com o apóstolo Tomé: Meu Senhor e meu Deus! (Jo 20,28).

Um dia irrenunciável!

30. Compreende-se assim, porque mesmo no contexto das dificuldades do nosso tempo, a identidade deste dia deva ser salvaguardada e, sobretudo, vivida profundamente. Um autor oriental, do início do século III, conta que em toda a região os crentes, já então, santificavam regularmente o domingo36. A prática espontânea tornou-se depois, norma sancionada juridicamente: o dia do Senhor ritmou a história bimilenária da Igreja. Como se poderia pensar que ele deixe de marcar o seu futuro? Os problemas que, no nosso tempo, podem tornar mais difícil a prática do dever dominical, não deixam de sensibilizar a Igreja permanecendo maternalmente atenta às condições de cada um dos seus filhos. De modo particular, ela sente-se chamada a um novo esforço catequético e pastoral, para que nenhum deles, nas condições normais de vida, fique privado do abundante fluxo de graças que a celebração do dia do Senhor traz consigo. Dentro do mesmo espírito, tomando posição acerca de hipóteses de reforma do calendário eclesial em concomitância com variações dos sistemas do calendário civil, o Concílio Ecumênico Vaticano II declarou que a Igreja só não se opõe àqueles que conservem a semana de sete dias, e com o respectivo domingo37. No limiar do terceiro Milênio, a celebração do domingo cristão, pelos significados que evoca e as dimensões que implica, relativamente aos fundamentos mesmos da fé, permanece um elemento qualificante da identidade cristã.

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