A g n u s D e i

DIES DOMINI
João Paulo II
31.05.1998

Capítulo I
DIES DOMINIA
A celebração da obra do Criador

Tudo começou a existir por meio d'Ele (Jo 1,3)

8. O domingo, segundo a experiência cristã, é sobretudo uma festa pascal, totalmente iluminada pela glória de Cristo ressuscitado. É a celebração da nova criação. Este seu caráter, porém, se bem entendido, é inseparável da mensagem que a Escritura, desde as suas primeiras páginas, nos oferece acerca do desígnio de Deus na criação do mundo. Com efeito, se é verdade que o Verbo se fez carne na plenitude dos tempos (Gl 4,4), também é certo que, em virtude precisamente do seu mistério de Filho eterno do Pai, Ele é origem e fim do universo. Afirma-o S. João, no Prólogo do seu Evangelho: Tudo começou a existir por meio d'Ele, e sem Ele nada foi criado (1,3). Também S. Paulo, ao escrever aos Colossenses, o sublinha: N'Ele foram criadas todas as coisas, nos Céus e na Terra, as visíveis e as invisíveis [...]. Tudo foi criado por Ele e para Ele (1,16). Esta presença ativa do Filho na obra criadora de Deus revelou-se plenamente no mistério pascal, no qual Cristo, ressuscitando como primícia dos que morreram (1Cor 15,20), inaugurou a nova criação e deu início ao processo que Ele mesmo levará a cabo no momento do seu retorno glorioso, quando entregar o Reino a Deus Pai [...], a fim de que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,24.28).

Portanto, já na aurora da Criação, o desígnio de Deus implicava esta missão cósmica de Cristo. Esta perspectiva cristocêntrica, que se estende sobre todo o arco do tempo, estava presente no olhar comprazido de Deus quando, no fim da sua obra, abençoou o sétimo dia e santificou-o (Gn 2,3). Nascia então - segundo o autor sacerdotal da primeira narração bíblica da criação - o sábado, que caracteriza profundamente a primeira Aliança e, de algum modo, preanuncia o dia sagrado da nova e definitiva Aliança. O mesmo tema do repouso de Deus (cf. Gn 2,2) e do repouso por Ele oferecido ao povo do Êxodo, com o ingresso na terra prometida (cf. Ex 33,14; Dt 3,20; Js 21,44; Sl 95[94],11), é relido no Novo Testamento sob uma luz nova, a do repouso sabático definitivo (cf. Hb 4,9), onde entrou Cristo com a sua ressurreição e também o Povo de Deus é chamado a entrar, perseverando na senda da sua obediência filial (cf. Hb 4,316). É necessário, portanto, reler a grande página da criação e aprofundar a teologia do sábado, para chegar à plena compreensão do domingo.

No princípio, Deus criou os céus e a terra (Gn 1,1)

9. O estilo poético da narração do Gênese atesta a admiração sentida pelo homem diante da grandeza da Criação e o sentimento de adoração que daí deriva por Aquele que, do nada, criou todas as coisas. Trata-se de uma página de intenso significado religioso, um hino ao Criador do universo, indicado como o único Senhor ante as frequentes tentações de divinizar o próprio mundo, e simultaneamente um hino à bondade da criação, toda ela plasmada pela mão forte e misericordiosa de Deus.

Deus viu que isto era bom (Gn 1,10.12, etc.). Este refrão, que acompanha a narração, projeta uma luz positiva sobre cada elemento do universo, deixando, ao mesmo tempo, vislumbrar o segredo para a sua justa compreensão e possível regeneração: o mundo é bom, na medida em que permanece ancorado à sua origem e, após a sua deturpação pelo pecado, torna a ser bom quando, com a ajuda da graça, volta Àquele que o criou. Esta dialética, certamente, não está a referir-se às coisas inanimadas e aos animais, mas aos seres humanos, aos quais foi concedido o dom incomparável, mas também o risco da liberdade. A Bíblia, logo após a narração da Criação, põe precisamente em evidência o contraste dramático entre a grandeza do homem, criado à imagem e semelhança de Deus, e a sua queda, que abre no mundo o cenário obscuro do pecado e da morte (cf. Gn 3).

10. Saído assim das mãos de Deus, o universo traz em si a imagem da sua bondade. É um mundo belo, digno de ser admirado e gozado, mas também destinado a ser cultivado e desenvolvido. O complementabilidade da obra de Deus abre o mundo ao trabalho do homem. Concluída, no sétimo dia, toda a obra que havia feito, Deus repousou no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado (Gn 2,2). Através desta evocação antropomórfica do trabalho divino, a Bíblia não somente nos oferece uma indicação sobre a misteriosa relação entre o Criador e o mundo criado, mas projeta também uma luz sobre a missão do homem para com o universo. O trabalho de Deus é, de certa forma, exemplo para o homem. Este, de fato, é chamado não só a habitar mas também a construir o mundo, tornando-se, assim, colaborador de Deus. Os primeiros capítulos do Gênese, como escrevi na Encíclica "Laborem Exercens", constituem, de certa forma, o primeiro evangelho do trabalho10. É uma verdade também ressaltada pelo Concílio Vaticano II: O homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e, reconhecendo Deus como Criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele; de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, seja glorificado em toda a terra o nome de Deus11.

A realidade extraordinária do progresso da ciência, da técnica, da cultura nas suas diversas expressões - um progresso sempre mais rápido, e hoje até vertiginoso - é o fruto, na história do mundo, da missão com a qual Deus confiou ao homem e à mulher a tarefa e a responsabilidade de se multiplicarem por toda a terra e de a dominarem através do trabalho, observando a sua Lei.

O shabbat: o repouso jubiloso do Criador

11. Se, na primeira página do Gênese, o trabalho de Deus é exemplo para o homem, é-o igualmente o seu repouso: Deus repousou, no sétimo dia, do trabalho por Ele realizado (Gn 2,2). Também aqui nos encontramos diante de um antropomorfismo, denso de uma mensagem sugestiva.

O repouso de Deus não pode ser interpretado de forma banal, como uma espécie de inatividade de Deus. De fato, o ato criador, que está na constituição do mundo, é permanente por sua própria natureza e Deus não cessa nunca de agir, como o próprio Jesus quis lembrar precisamente com referência ao preceito sabático: Meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho (Jo 5,17). O repouso divino do sétimo dia não alude a um Deus inativo, mas sublinha a plenitude do que fora realizado, como que a exprimir a paragem de Deus diante da obra muito boa (Gn 1,31) saída das suas mãos, para lançar sobre ela um olhar repleto de jubilosa complacência: um olhar contemplativo, que não visa novas realizações, mas sobretudo apreciar a beleza de quanto foi feito; um olhar lançado sobre todas as coisas, mas especialmente sobre o homem, ponto culminante da criação. É um olhar no qual já se pode, de certa forma, intuir a dinâmica esponsal da relação que Deus quer estabelecer com a criatura feita à sua imagem, chamando-a a comprometer-se num pacto de amor. É o que Ele realizará progressivamente, em vista da salvação oferecida à humanidade inteira, mediante a aliança salvífica estabelecida com Israel e culminada, depois, em Cristo: será precisamente o Verbo encarnado, através do dom escatológico do Espírito Santo e da constituição da Igreja como seu corpo e sua esposa, que estenderá a oferta de misericórdia e a proposta do amor do Pai a toda humanidade.

12. No desígnio do Criador, existe certamente uma distinção, mas também uma íntima conexão entre as ordens da criação e da salvação. Já o Antigo Testamento o destaca quando põe o mandamento referente ao shabbat em relação não só com o misterioso repouso de Deus depois dos dias da atividade criadora (cf. Ex 20,8-11), mas também com a salvação oferecida por Ele a Israel na libertação da escravidão do Egipto (cf. Dt 5,12-15). O Deus que descansa ao sétimo dia comprazendo-Se pela sua criação, é o mesmo que mostra a sua glória ao libertar os seus filhos da opressão do faraó. Tanto num caso como noutro poder-se-ia dizer, segundo uma imagem cara aos profetas, que Ele Se manifesta como o esposo diante da esposa (cf. Os 2,16-24; Jr 2,2; Is 54,4-8).

De fato, para entrar no âmago do shabbat, do repouso de Deus, como sugerem precisamente alguns elementos da tradição hebraica12 ocorre captar a densidade esponsal que caracteriza, do Antigo ao Novo Testamento, a relação de Deus com o seu povo. Assim a exprime, por exemplo, esta página maravilhosa de Oséias: Farei em favor dela, naquele dia, uma aliança, com os animais selvagens, com as aves do céu e com os répteis da terra: farei desaparecer da terra o arco, a espada e a guerra e os farei repousar em segurança. Então te desposarei para sempre; desposar-te-ei conforme a justiça e o direito, com misericórdia e amor. Desposar-te-ei com fidelidade, e tu conhecerás o Senhor (2,20-22).

Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o (Gn 2,3)

13. O preceito do sábado, que na primeira Aliança prepara o domingo da nova e eterna Aliança, radica-se, portanto, na profundidade do desígnio de Deus. Precisamente por isso, não está situado junto das normativas puramente cultuais, como é o caso de tantos outros preceitos, mas dentro do Decálogo, as dez palavras que delineiam os próprios pilares da vida moral, inscrita universalmente no coração do homem. Concebendo este mandamento no horizonte das estruturas fundamentais da ética, Israel e, depois, a Igreja mostram que não o consideram uma simples norma de disciplina religiosa comunitária, mas uma expressão qualificante e imprescindível da relação com Deus, anunciada e proposta pela revelação bíblica. É nesta perspectiva que tal preceito há de ser, também hoje, redescoberto pelos cristãos. Se possui também uma convergência natural com a necessidade humana de repouso é, contudo, à fé que é preciso fazer apelo para captar o seu sentido profundo, evitando o risco de banalizá-lo e traí-lo.

14. Portanto, o dia do repouso é tal primariamente porque é o dia abençoado por Deus e por Ele santificado, isto é, separado dos demais dias para ser, de entre todos, o dia do Senhor.

Para compreender plenamente o sentido desta santificação do sábado na primeira narração bíblica da Criação, é necessário contemplar o texto no seu conjunto, que mostra com nitidez como toda a realidade, sem exceção, tem a ver com Deus. O tempo e o espaço pertencem-Lhe. Ele não é Deus de um dia só, mas de todos os dias do homem.

Assim, pois, se Ele santifica o sétimo dia com uma bênção especial e faz dele o seu dia por excelência, isto há de entender-se precisamente na profunda dinâmica do diálogo de aliança, melhor, do diálogo esponsal. É um diálogo de amor que, apesar de não conhecer interrupções, não é monótono: desenrola-se, de fato, valendo-se das diversas tonalidades do amor, desde as manifestações ordinárias e indiretas até as mais intensas, que as palavras da Escritura e, depois, os testemunhos de tantos místicos não temem descrever com imagens extraídas da experiência do amor nupcial.

15. Na verdade, a vida inteira do homem e todo o seu tempo, devem ser vividos como louvor e agradecimento ao seu Criador. Mas a relação do homem com Deus necessita também de momentos explicitamente de oração, nos quais a relação se torna diálogo intenso, envolvendo toda a dimensão da pessoa. O dia do Senhor é, por excelência, o dia desta relação, no qual o homem eleva a Deus o seu canto, tornando-se eco da inteira criação.

Por isso mesmo, é também o dia do repouso: a interrupção do ritmo, muitos vezes oprimente, das ocupações exprime, com a linguagem figurada da novidade e do desprendimento, o reconhecimento da dependência de nós mesmos e do universo de Deus. Tudo é de Deus! O dia do Senhor está continuamente a afirmar este princípio. Assim, o sábado da revelação bíblica foi sugestivamente interpretado como um elemento qualificante naquela espécie de arquitetura sagrada do tempo que caracteriza a revelação bíblica13. Ele nos lembra que a Deus pertencem o universo e a história, e o homem não pode dedicar-se à sua obra de colaboração com o Criador, sem ter constantemente em consideração esta verdade.

Recordar para santificar

16. O mandamento do Decálogo, pelo qual Deus impõe a observância do sábado, tem, no livro do Êxodo, uma formulação característica: Recorda-te do dia de sábado, para o santificares (20,8). E mais adiante, o texto inspirado dá a razão disso mesmo, apelando-se à obra de Deus: Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo quanto contém, e descansou no sétimo; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e santificou-o (v. 11). Antes de impor qualquer coisa a ser praticada, o mandamento indica algo a recordar. Convida a avivar a memória daquela grande e fundamental obra de Deus que é a criação. É uma memória que deve animar toda a vida religiosa do homem, para depois confluir no dia em que ele é chamado a repousar. O repouso assume, assim, um típico valor sagrado: o fiel é convidado a repousar não só como Deus repousou, mas a repousar no Senhor, devolvendo-Lhe toda a criação, no louvor, na ação de graças, na intimidade filial e na amizade esponsal.

17. O tema da lembrança das maravilhas realizadas por Deus, posto em relação com o repouso sabático, aparece também no texto do Deuteronômio (5,12-15), onde o fundamento do preceito é visto não tanto na obra da criação como sobretudo na libertação efetuada por Deus no Êxodo: Recorda-te de que foste escravo do país do Egito, donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de Sábado (Dt 5,15).

Esta formulação é complementar da precedente: consideradas juntas, elas revelam o sentido do dia do Senhor no âmbito de uma perspectiva unitária de teologia da criação e da salvação. O conteúdo do preceito não é, pois, primariamente uma interrupção do trabalho qualquer, mas a celebração das maravilhas realizadas por Deus.

Na medida em que esta lembrança, repleta de gratidão e louvor a Deus, está viva, o repouso do homem, no dia do Senhor, assume o seu pleno significado. Por ele, o homem entra na dimensão do repouso de Deus para dele participar em profundidade, tornando-se assim capaz de experimentar aquele regozijo de alegria que o próprio Criador sentiu depois da criação, vendo que toda a sua obra era coisa muito boa (Gn 1,31).

Passagem do sábado ao domingo

18. Por esta dependência essencial que o terceiro mandamento tem da memória das obras salvíficas de Deus, os cristãos, apercebendo-se da originalidade do tempo novo e definitivo inaugurado por Cristo, assumiram como festivo o primeiro dia depois do sábado, porque nele se deu a ressurreição do Senhor. De fato, o mistério pascal de Cristo constitui a revelação plena do mistério das origens, o cume da história da salvação e a antecipação do cumprimento escatológico do mundo. Aquilo que Deus realizou na criação e o que fez pelo seu povo no Êxodo, encontrou na morte e ressurreição de Cristo o seu cumprimento, embora este tenha a sua expressão definitiva apenas na parusia, com a vinda gloriosa de Cristo. N'Ele se realiza plenamente o sentido espiritual do sábado, como o sublinha S. Gregório Magno: Nós consideramos verdadeiro sábado a pessoa do nosso Redentor, nosso Senhor Jesus Cristo14. Por isso, a alegria com que Deus, no primeiro sábado da humanidade, contempla a Criação feita do nada, exprime-se doravante pela alegria com que Cristo apareceu aos seus, no domingo de Páscoa, trazendo o dom da paz e do Espírito (cf. Jo 20,19-23). De fato, no mistério pascal, a condição humana e, com ela, toda a criação, que geme e sofre as dores de parto até ao presente (cf. Rm 8,22) conheceu o seu novo êxodo para a liberdade dos filhos de Deus, que podem gritar, com Cristo, Abbá, Pai (Rm 8,15; Gl 4,6). À luz deste mistério, o sentido do preceito vétero testamentário do dia do Senhor é recuperado, integrado e plenamente revelado na glória que brilha na face de Cristo Ressuscitado (cf. 2Cor 4,6). Do sábado passa-se ao primeiro dia depois do sábado, do sétimo dia passa-se ao primeiro dia: o dies Domini torna-se o dies Christi!

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