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Constituição Dogmática
DEI VERBUM
do Concílio Vaticano II
sobre a Revelação Divina

II. A TRANSMISSÃO DA REVELAÇÃO DIVINA

7. Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em que toda a revelação de Deus se consuma (cf. 2Cor 1,30; 3,16 ¾ 4,6), mandou aos apóstolos que pregassem a todos, comunicando-lhes os dons divinos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por ele cumprido e promulgado pessoalmente.(1) O que foi realizado com fidelidade, quer pelos apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que ou tinham recebido dos lábios, conversação e obras de Cristo ou tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, quer por aqueles apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação.(2)

Porém, para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os apóstolos, deixaram os bispos como seus sucessores, ‘‘entregando-lhes o seu próprio lugar de magistério’’.(3) Portanto, a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja, peregrina na terra, contempla a Deus, de quem tudo recebe até ser conduzida a vê-los face tal qual ele é (cf. 1Jo 3,2).

8. E assim, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos. Por isso, os apóstolos, transmitindo o que eles mesmos tinham recebido, advertem os fiéis a que mantenham as ‘‘tradições’’ que tinham aprendido quer por palavra quer por escrito (cf. 2Ts 2,15), e a que lutem pela fé uma vez recebida (cf. Jt 3).(4) Aquilo que foi transmitido pelos apóstolos, abrange tudo quanto coopera para a vida santa do povo de Deus e para o aumento da fé, e assim a Igreja , na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é, tudo aquilo que ela acredita.

Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo.(5) Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da reflexão e do estudo dos crentes , que as meditem no seu coração (cf. Lc 2,19-51),quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam um carisma seguro de verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, caminha continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus. As afirmações dos Santos Padres testemunham a presença vivificadora desta Tradição, cujas riquezas são transferidas para a prática e para a vida da Igreja crente e orante. Mediante a mesma Tradição, chega ao conhecimento da Igreja o cânon inteiro dos Livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura nela se entende mais profundamente e sem cessar se torna operante ; e assim, Deus que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho, e o Espírito Santo, pelo qual ressoa a voz do Evangelho na Igreja, e pela Igreja, no mundo, introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cf. Cl 3,16).

9. A Sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura relacionam-se e comunicam estreitamente entre si. Com efeito, ambas derivando da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos, para que, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde acontece que a Igreja não tira a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas só da Sagrada Escritura. . Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual afeto de piedade.(6)

10. A Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina e na comunhão dos apóstolos, na fração do pão e nas orações (cf. At 8,42 gr.), de tal modo que na conservação, atuação e profissão da fé transmitida haja uma singular colaboração dos pastores e dos fiéis.(7)

Porém, o múnus de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição,(8) foi confiado só ao magistério vivo da Igreja,(9) cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas está a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido, enquanto, por mandado divino e com assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, guarda santamente e expõe fielmente, haurindo deste único depósito da fé todas as coisas que propõe à fé como divinamente reveladas.

É claro, portanto, que a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Sagrado Magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo plano da Deus, de tal maneira se relacionam e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo sob a ação do mesmo Espírito Santo, colaboram eficazmente para a salvação das almas.


    1. Cf. Mt 28, 19-20 e Mc 16,15. Concílio de Trento, sess. IV, decr. De canonicos Scripturis: Denz. 783 (1501).
    2. Cf. Concílio de Trento, 1.c; Concílio Vaticano I, sess. III, Cont. dogm. De fide catholica, cap. 2, de revelatione: Denz. 1787 (3006).
    3. Santo Irineu, Adv. Haer. III, 3,1: P. G. 7,848: Harvey, 2 p. 9.
    4. Cf. Concílio de Nicéia II: Denz. 303 (602); Concílio de Constantinopla IV, sess. X, cân. 1: Denz. 336 (650-622).
    5. Cf. Concílio Vaticano I, Const. dogm. De fide catholica, cap. 4 de fide et ratione: Denz. 1800 (3020).
    6. Cf. Concílio de Trento, sess. IV, 1. c.: Denz. 783 (1501).
    7. Cf. Pio XII, Const. Apost. Munificentíssimus Deus, 1 nov. 1950: AAS 42, 1950, 756; cf. as palavras de São Cipriano, Epist. 6,8: Hartel, III, B, p. 733: ‘‘A Igreja é o povo unido ao sacerdote e o rebanho unido ao seu Pastor’’
    8. Cf. Concílio Vaticano I, Const. dogm. De fide catholica, cap. 3 De fide: Denz. 1792 (3011).
    9. Cf. Pio XII, Encíclica Humani generis, 12 de agosto de 1950: AAS 42, 1950, 568-569: Denz. 2314 (3886).