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Comentário a
"O DOM DA AUTORIDADE"

Autor William Henn (ofm cap.)

II. AUTORIDADE NA IGREJA

Esta e a Parte III representam o que é precisamente o novo nível de consenso alcançado por O Dom da Autoridade. A Parte II discute autoridade com referência a Igreja local e universal (Dom, 13-14,27-28: 30), Escritura e Tradição (Dom, 14-23), e apostolicidade e catolicidade (Dom, 16-17; 26-27). Todo o povo de Deus é o receptor da Palavra de Deus, transmitida na Escritura e Tradição (Dom, 28). No interior da totalidade do povo, é dada atenção especial à relação entre o fiel individual e a Igreja local (Dom, 11-13) e à relação entre aqueles a quem foi confiado o ministério da episcope, de um lado, e, do outro, todo o povo agraciado com o dom do sensus fidei (Dom, 24-30). Os parágrafos seguintes tentam extrair alguns dos temas relevantes da Parte II.

Em primeiro lugar, a avaliação positiva da autoridade, que funciona como Leitmotif do texto, está muito clara na escolha feliz de fazer um refrão do termo hebreu "Amém", que marca o ato e a postura bíblica de fé.

Em Jesus Cristo, Filho de Deus e nascido de uma mulher, o "Sim" da humanidade a Deus torna-se uma realidade humana concreta. Esse tema do "Sim" de Deus e do "Amém" da humanidade em Jesus Cristo é a chave para a exposição sobre autoridade nesta declaração. (Dom, 8).

Uma e outra vez, os vários tópicos tratados, tais como o ato de fé do fiel individual, a fé da igreja local, a recepção da Escritura e da Tradição ou a catolicidade que une igrejas locais no tempo e no espaço, são todos apresentados na positiva moldura do "Amém" a Deus, em resposta ao "Sim" de Deus dirigido aos seres humanos. Esse fio dourado continua através das partes restantes do documento, de tal forma que a última sentença do texto reúne, engenhosamente, todas as afirmações anteriores, colocando-as justamente no âmbito da busca da comunhão plena: "Assim, o "Amém" que os Anglicanos e os Católicos Romanos dizem ao único Senhor se aproxima de um "Amém" pronunciado em uníssono pelo único povo santo, que testemunha a salvação de Deus e o amor reconciliador em um mundo partido." (Dom, 63). Desse modo, a comissão nos lembra, sabiamente, que o ato simples e incontrovertido de dizer "Amém" é relevante para o tópico da autoridade na Igreja. O exercício da autoridade dentro da Igreja e a aceitação desse exercício devem ser entendidos como parte do "Amém" da Igreja dirigido a Deus.

Essa abordagem positiva é reforçada pelo fato de que a Parte II se inicia com vários parágrafos marcantemente bíblicos e Trinitários. O material bíblico apela para a crença cristã na normatividade da Palavra de Deus. Uma atitude positiva para com a autoridade é sancionada pelas Escrituras. O próprio Jesus é o modelo de aceitação da autoridade do Pai e da obediência a ela no poder do Espírito Santo. O tema Trinitário ilustra o que foi proposto como sólido princípio metodológico usado no diálogo ecumênico, pelo decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio, 11, que chamava a atenção para a ordem ou "hierarquia" existente nas verdades da fé. Quando o tópico da autoridade eclesial é colocado no contexto das verdades centrais da fé, da economia do Deus Trino e Uno de realizar a salvação dos seres humanos, ele aparece num aspecto muito mais positivo. Por essa razão, O Dom da Autoridade deve ser mais convincente e acreditável, não apenas para Anglicanos e Católicos Romanos, mas para os membros de outras comunidades também.

A relação entre Tradição e Escritura, interpretação magisterial e recepção, domina a Parte II de O Dom da Autoridade. O texto toma a Tradição como ponto de partida, referindo-se, explicitamente, à famosa declaração da Comissão de Fé e Ordem de Montreal, em 1963 (Dom, 14-18). Nessa seção, o leitor tem a oportunidade de observar a admirável capacidade de síntese do texto. O Espírito Santo guia o processo da tradição (pneumatologia) através do ministério da Palavra e do Sacramento e na vida comum do povo de Deus (as três dimensões da comunhão que correspondem à atividade de Cristo profeta, sacerdote, e pastor/rei; Cf. Lumen gentium, 13-14 e Unitatis redintegratio, 2; Dom, 14). A Tradição é um "canal do amor de Deus", "essencial à economia da graça", um "ato de comunhão", que "une as igrejas locais" umas às outras e "àquelas que as precederam na fé apostólica única". Assim, o processo da tradição é de uma "recepção ... constante e contínua" em várias épocas e circunstâncias. Ele traz à tona o "Amém" que une toda a Igreja em sua resposta ao "Sim" de Deus para a humanidade (Dom, 15-16). Yves Congar sempre mostrou a enorme capacidade de síntese que caracteriza os escritos de tantos Pais da Igreja. Parece óbvio que esse texto também apresenta esse poder sintético. Seus autores decidiram, corretamente, empregar um modo patrístico de pensar.

A Escritura está dentro do contexto da Tradição. Ocupa um "lugar normativo" porque é "inspirada de maneira incomparável"; portanto, é "incomparavelmente autorizada". A discussão da Escritura surpreende-nos por sua atenção para com aspectos hermenêuticos. A forma como ocorreu a composição dos livros do Novo Testamento, no contexto da abordagem de questões conhecidas das comunidades locais, durante a época apostólica, parece muito conforme com a índole da abordagem histórico-crítica, adotada pela maioria dos estudiosos da Bíblia (cf. Dom, 20-21). Mas mesmo aqui existe equilíbrio. A interpretação não é simplesmente relegada a estudiosos, mas é uma atividade eclesial. "O significado do Evangelho de Deus revelado é plenamente entendido apenas no âmbito da Igreja" (Dom, 23). Este parágrafo do texto não só afirma a necessidade da fé como pré-requisito hermenêutico, sem o qual é impossível uma interpretação adequada da Bíblia, mas também observa que "A fé da comunidade precede a fé do indivíduo" (Dom, 23). É gratificante ver, nessa discussão da autoridade da escritura, que a interpretação individual é apresentada como sendo guiada pela interpretação da comunidade e para ela contribuindo. Quando Dom, 23, afirma: "A Igreja não pode ser descrita como um agregado de fiéis individuais, nem sua fé pode ser considerada a soma das crenças desses indivíduos", é difícil para um Católico não se lembrar de frases semelhantes usadas pelo Papa João Paulo II, ao falar da relação dos bispos com o colégio de bispos,(3) ou pela Congregação para a Doutrina da Fé, com referência à unidade das igrejas locais dentro da igreja universal.(4) Além disso, o conteúdo hermenêutico de O Dom da Autoridade encontra ressonância no trabalho recente, desenvolvido pela Comissão de Fé e Ordem, sobre a hermenêutica ecumênica. Seria muito interessante investigar como os resultados dessas duas comissões poderiam ser mutuamente esclarecedores.

Ocasionalmente, as divisões dos Cristãos têm sido atribuídas a uma suposta oposição entre a Escritura, que deve ser seguida por consistir na Palavra de Deus, e a Tradição, que tem sido acusada de contradizer a Escritura introduzindo novidades. Ou ainda, alguns têm considerado opostas a obediência às Escrituras e a obediência àqueles que exercem a autoridade na Igreja. Esse texto oferece-nos muitas passagens brilhantes, uma das quais responde com precisão a essas supostas oposições, monstrando, de forma muito satisfatória, a harmonia entre Escritura, Tradição, autoridade e obediência.

A formação do cânon das Escrituras foi parte integrante do processo de tradição. O reconhecimento destas Escrituras pela Igreja como canônicas, após longo período de discernimento crítico, foi um ato de obediência e, ao mesmo tempo, de autoridade. Foi um ato de obediência, pelo fato de que a Igreja discerniu e recebeu o "Sim" doador de vida de Deus através das Escrituras, aceitando-as como a norma de fé. Foi um ato de autoridade, pelo fato de que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, recebeu e transmitiu esses textos, declarando que eram inspirados e que outros textos não deviam ser incluídos no cânon. (Dom, 22).

Os dois parágrafos incluídos no subtítulo específico "Recepção e Re-recepção" contêm propostas que serão muito satisfatórias para os Católicos, embora eu imagino que se possa dizer o mesmo também dos Anglicanos. Em primeiro lugar, O Dom da Autoridade afirma claramente que é toda a Tradição apostólica que é recebida pela Igreja. A resposta Católica Romana oficial à discussão da ARCIC I sobre autoridade havia apontado, explicitamente, como fraqueza a sugestão de que apenas doutrinas centrais pudessem ser assunto de ensinamentos solenes por parte daqueles que exercem a autoridade na Igreja.(5) Isso parecia sugerir que a Igreja pudesse permanecer, de certa forma, acima da revelação, declarando quais seriam as doutrinas centrais e normativas, e deixando por conta da liberdade individual dos fiéis as que não são julgadas centrais. Esse tema tem sido amplamente discutido nos últimos trinta anos, principalmente pelos que tentam explicar a compatibilidade entre os ensinamentos do Vaticano II sobre a "hierarquia das verdades" e a convicção tradicional de que a autoridade de Deus é a base de toda a revelação, convicção esta expressa, para citar apenas um exemplo, na Mortalium animos, de Pio XI, em 1928. Sem nenhuma ambigüidade, o texto aqui tratado dá testemunho de que Anglicanos e Católicos Romanos estão convencidos de que o "Amém" da Igreja é dado a toda a revelação de Deus, e não apenas ao que pode ser identificado como seus artigos mais fundamentais. Ao mesmo tempo, ilustra bem a hierarquia das verdades, como foi observado acima, quando relaciona organicamente suas várias afirmações entre si e com as verdades fundamentais sobre a Trindade, como a base última da vida da Igreja e do exercício da autoridade eclesial.

Além disso, a recepção é apresentada como uma atividade em que a memória da Igreja é refrescada e até sanada. Em minha opinião, esse é um dos mais profundos e promissores temas ligados à noção teológica de recepção. Harmoniza-se bem com a chamada de Jesus à conversão, a metanoia, e a mudança de mente e de coração. Nesse sentido, a noção de "re-recepção" pode até encontrar fundamentos no Velho Testamento, no chamado dos profetas à lembrança da aliança esquecida e à mudança de vida de acordo com ela. Isso se assemelha muito à abordagem Católica do ecumenismo, que sempre enfatiza a conversão como parte absolutamente necessária do processo de comunhão plena. O Papa João Paulo II pode ter até cunhado uma nova expressão no que se refere a isso, falando do "diálogo da conversão".

A Igreja Católica precisa entrar no que se pode chamar de "diálogo da conversão", que constitui o fundamento espiritual do diálogo ecumênico. Nesse diálogo, que se desenvolve perante Deus, cada indivíduo precisa reconhecer suas próprias faltas, confessar seus pecados e se colocar nas mãos do nosso Intercessor perante o Pai, Jesus Cristo. ... O "diálogo da conversão " com o Pai por parte de cada Comunidade, com a plena aceitação de tudo o que ele exige, é a base de relações fraternas que devem ir além de um mero entendimento cordial ou de uma sociabilidade externa. Os laços de koinonia fraternal devem ser formados perante Deus e em Jesus Cristo. (Ut unum sint, 82).

A Parte II conclui com seis parágrafos que relacionam a autoridade à catolicidade da Igreja. Vários aspectos importantes são mencionados. Em primeiro lugar, a Igreja é considerada como um todo, estendendo-se no espaço e no tempo (Dom, 26). Devemos ver nisso uma oposição clara a uma eclesiologia que postulasse a igreja local como uma comunidade auto-suficiente. Essa mesma idéia é repetida, de modo ainda mais explícito, na discussão sobre a sinodalidade, na Parte III:

A interdependência mútua de todas as igrejas é essencial à realidade da Igreja como Deus quer que ela seja. Nenhuma igreja local que participa da Tradição viva pode se considerar auto-suficiente (Dom, 37).

Mesmo a Eucaristia, ponto alto da vida da igreja local, revela o dinamismo inerradicável que coloca a comunidade local em comunhão com a unidade católica do todo.

Essa igreja local é uma comunidade eucarística. No centro de sua vida está a celebração da Santa Eucaristia, em que todos os fiéis ouvem e recebem o "Sim" de Deus dado a eles em Cristo. Na Grande Ação de Graças, quando se comemora a lembrança do dom de Deus na obra salvadora de Cristo crucificado e ressuscitado, a comunidade está unida com todos os Cristãos de todas as igrejas que, desde o início e até o fim, pronunciam o "Sim" da humanidade a Deus — o "Amém" que o Apocalipse afirma estar no âmago da grande liturgia do céu (cf. Ap 5.14; 7.12). (Dom, 13).(6)

Em segundo lugar, a Igreja "como um todo" é apresentada como o único sujeito adequado para receber e passar adiante a Tradição viva. Leigos, teólogos e ministros ordenados têm, todos, a responsabilidade de receber e divulgar a Palavra de Deus, cada um de acordo com sua capacidade específica (Dom, 28). Os católicos reconhecerão imediatamente a afinidade desse parágrafo com Lumen gentium 12, do Vaticano II, que afirma que "o povo santo de Deus também partilha do ofício profético de Cristo" e que "todo o corpo de fiéis ... tem uma unção que vem do Santo" (cf. 1 Jo 2.20 e 27). Nesse contexto, O Dom da Autoridade descreve o sensus fidei como "uma capacidade ativa de discernimento espiritual, uma intuição formada pelo culto divino e pela vida em comunhão como membro fiel da Igreja" (Dom, 29). A discussão do sensus fidei, e sua noção correlativa de sensus fidelium, parecem ser um dos principais modos como a ARCIC II desempenha o encargo requerido pela resposta oficial Anglicana à ARCIC I, que solicitou que o diálogo explorasse mais "o papel do laicato em tomadas de decisão dentro da Igreja".(7) A relação entre os que exercem a episcope, "o ministério da memória", por um lado, e todo o povo, cuja recepção da Palavra de Deus na fé pode ser resumida na expressão sensus fidelium, por outro lado, é descrita por analogia com uma sinfonia. Como o Espírito Santo está trabalhando na Igreja, existe harmonia entre episcope e sensus fidelium. O "ministério exercido pelo bispo, e por pessoas ordenadas sob os cuidados do bispo," está atento e alerta "para o sensus fidelium, o qual compartilham ... Assim, o sensus fidelium do povo de Deus e o ministério da memória existem juntos em relação recíproca" (Dom, 30). Essas afirmações são verdadeiras. Ao mesmo tempo, perguntamo-nos se o texto não poderia considerar, também, a possibilidade real de tensão dentro da comunidade no que concerne a questões de fé e organização. Voltarei a este assunto numa seção sobre possíveis melhorias que tornariam ainda mais marcante o consenso registrado no texto presente.