»» Documentos da Igreja |
Há um vasto debate sobre a natureza e o exercício da autoridade, tanto nas igrejas quanto na sociedade em geral. Anglicanos e Católicos Romanos desejam dar testemunho, para as igrejas e para o mundo, de que a autoridade exercida de forma correta é um dom de Deus para trazer reconciliação e paz para a humanidade.(1)
Se esse texto não desse outros frutos além de simplesmente associar, uma e outra vez, na mente dos seus leitores e na daqueles que, por acaso, olharem seu título de relance, as noções de "autoridade" e "dom", já estaria prestando um serviço valioso para a unidade cristã. Não pode jamais haver reconciliação, entre comunidades cristãs divididas, sobre o tópico da autoridade, a não ser que essas comunidades vejam a autoridade como algo positivo.
Mas, à parte o benefício utilitário de contribuir para maior unidade, uma abordagem positiva da autoridade, que a conceba como um dom de Deus, é necessária principalmente porque tal abordagem é verdadeira. De fato, Deus quer que a Igreja seja guiada pela graça de Sua própria autoridade, atuante nas missões salvadoras do Filho e do Espírito Santo. O evangelho de Mateus termina com as palavras inspiradoras e consoladoras de Jesus:
Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a guardar tudo o que vos ordenei. Quanto a mim, eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos tempos (Mt 28, 18-20 [TEB]).
Essa autoridade é compartilhada de forma única com aqueles que, em sucessão aos apóstolos, são ordenados para o ministério de bispo e encarregados de servir à unidade da Igreja na fé e na caridade. Ao desempenhar esse ministério, segundo as necessidades do tempo e das circunstâncias, têm o dever de decidir sobre questões relativas à doutrina e à vida da Igreja. Essas são convicções que, na época da divisão entre a Igreja da Inglaterra e a Igreja Católica Romana, não eram motivo de disputa entre as duas comunidades. A ARCIC II pretende confirmá-las novamente, e fazê-lo no contexto de uma reflexão eclesiológica sobre a natureza e o exercício da autoridade na Igreja em geral. Esse contexto, portanto, torna possível uma tentativa serena e cuidadosa de se atingir um entendimento comum de um ponto que era objeto de controvérsia por ocasião da ruptura entre as duas comunidades: o ministério primacial do bispo de Roma a serviço da unidade universal.(2)
Outra característica do referido texto é sua "catolicidade", no sentido pleno e amplo do termo, segundo o qual tanto Anglicanos quanto Católicos Romanos consideram-se "católicos". Essa qualidade é particularmente percebida na recusa inflexível do documento em se deixar prender a falsos disjuntivos ou apontar como opostas características da vida cristã que, na verdade, devem ser unidas em complementaridade. Desse modo, O Dom da Autoridade recusa-se a opor a liberdade à obediência. Jesus, que partilha a verdade que nos torna livres (Jo 8,31), é o mesmo que, ao aceitar a vontade do Pai, pode ser chamado, por isso mesmo, de "a obediência vivificante" (cf. Dom, 10). Ou, ainda, não há como escolher entre a fé do indivíduo e a fé da Igreja (cf. Dom, 11-13). Elas andam juntas. Da mesma forma, para discernir a vontade de Deus, a Igreja não se vê em face da opção de consultar a Escritura ou a Tradição, mas ambas. Várias outras dicotomias semelhantes manifestam-se, justamente, como falsas dicotomias, à luz daquele texto. Nenhuma eclesiologia correta pode se sentir satisfeita com uma série de alternativas mutuamente excludentes, tais como: a Palavra de Deus ou a autoridade da Igreja, o ministro ordenado ou a laicato, a igreja local ou a igreja universal, sinodalidade ou primazia. A falta de consenso com relação à autoridade, freqüentemente, resulta do erro de se oporem duas realidades, ou dois valores, ou dois assuntos, que, simplesmente, não deveriam ser opostos. A qualidade genial de O Dom da Autoridade consiste em mostrar isso continuamente.
O resultado dessa catolicidade teológica é um texto muito rico do ponto de vista eclesiológico. Não terei a pretensão de julgar a exatidão do documento quanto a refletir a herança doutrinal Anglicana, mas os Católicos encontrarão nele muitos ecos dos temas com os quais se familiarizaram a partir do Concílio Vaticano Segundo e dos escritos dos Papas Paulo VI e João Paulo II. Na verdade, nos que são, provavelmente, alguns dos parágrafos mais extraordinários que já apareceram nos diálogos ecumênicos, nota-se um esforço para reafirmar algumas das doutrinas essenciais da Pastor aeternus, do Vaticano I, sobre a primazia e a infalibilidade papal (Dom, 45-48).