»» Documentos da Igreja |
Jesus Cristo: O "Sim" de Deus para Nós e o nosso "Amém" para Deus
7. Deus é o autor da vida. Por sua Palavra e seu Espírito, em liberdade total, Deus dá origem à vida. Apesar do pecado humano, Deus, em fidelidade perfeita, permanece o criador da esperança de vida nova para todos. Na obra de redenção de Jesus Cristo, Deus renova sua promessa para sua criação, pois "o propósito de Deus é trazer todos os povos em comunhão consigo no âmbito de uma criação transformada" (ARCIC, Igreja como Comunhão, 16). O Espírito de Deus continua a trabalhar na criação e na redenção para atingir esse propósito de reconciliação e unidade. Assim, a raiz de toda autoridade verdadeira é a atividade do Deus trino e uno, que cria a vida em toda sua plenitude.
8. A autoridade de Jesus Cristo é a da "testemunha fiel", o "Amém" (cf. Ap 1.5; 3.14) em que todas as promessas de Deus encontram seu "Sim". Quando Paulo teve de defender a autoridade do seu ensinamento, ele o fez apontando para a autoridade digna de confiança de Deus: "Tão certo quanto Deus é fiel, nossa palavra para vós não tem sido Sim e Não. Pois o Filho de Deus, Jesus Cristo, que pregamos no meio de vós ... não foi Sim e Não; mas sempre foi unicamente Sim. Pois todas as promessas de Deus encontram seu Sim nele. É por isso que pronunciamos o Amém através dele, para a glória de Deus"( 2 Cor 1.18-20). Paulo fala do "Sim" de Deus a nós e do "Amém" da Igreja a Deus. Em Jesus Cristo, Filho de Deus e nascido de uma mulher, o "Sim" da humanidade a Deus torna-se uma realidade humana concreta. Esse tema do "Sim" de Deus e do "Amém" da humanidade em Jesus Cristo é a chave para a exposição sobre autoridade nesta declaração.
9. Na vida e no ministério de Jesus, que veio para fazer a vontade de seu Pai (cf. Hb 10.5-10) mesmo até a morte (cf. Fl 2.8; Jo 10.18), Deus forneceu o "Amém" humano perfeito para seu propósito de reconciliação. Em sua vida, Jesus expressou sua dedicação total ao Pai (cf. Jo 5.19). O modo como Jesus exerceu a autoridade em seu ministério terreno foi percebido por seus contemporâneos como algo de novo. Foi reconhecido em seus poderosos ensinamentos e em sua palavra de cura e libertação (cf. Mt 7.28-29; Mc 1.22,27). Acima de tudo, sua autoridade foi demonstrada por seu serviço abnegado em amor sacrificial (cf. Mc 10.45). Jesus falava e agia com autoridade por causa de sua comunhão perfeita com o Pai. Sua autoridade veio do Pai (cf. Mt 11.27; Jo 14.10-12). É ao Senhor Ressuscitado que toda autoridade é concedida no céu e na terra (cf. Mt 28.18). Agora Jesus Cristo vive e reina com o Pai, na unidade do Espírito Santo; ele é a Cabeça de seu Corpo, a Igreja, e Senhor de toda a Criação (cf. Ef 1.18-23).
10. A obediência vivificante de Jesus Cristo faz surgir, através do Espírito, nosso "Amém" a Deus Pai. Nesse "Amém" através de Cristo, glorificamos a Deus, que infunde o Espírito em nossos corações como penhor de sua fidelidade (cf. 2 Cor 1.20-22). Somos chamados em Cristo a testemunhar o propósito de Deus (cf. Lc 24.46-49), testemunho esse que pode incluir para nós, também, obediência até a morte. Em Cristo, a obediência não é um fardo (cf. 1 Jo 5.3). Nasce da libertação concedida pelo Espírito de Deus. O "Sim" divino e nosso "Amém" são claramente percebidos no batismo, quando, na companhia dos fiéis, dizemos "Amém" à obra de Deus em Cristo. Pelo Espírito, nosso "Amém" como crentes está incorporado no "Amém" de Cristo, através de quem, com quem e em quem adoramos o Pai.
"Amém" do Fiel no "Amém" da Igreja Local
11. O Evangelho atinge o povo de formas diversas: o testemunho ou a vida de um pai ou de outro Cristão, a leitura das Escrituras, a participação na liturgia ou outra experiência espiritual. A aceitação do Evangelho também é atuada de muitos modos: ao receber-o batismo, na renovação do compromisso, numa decisão de permanecer fiel, ou em atos de autodoação para aqueles em necessidade. Nessas ações, a pessoa diz, "Na verdade, Jesus Cristo é meu Deus: para mim ele significa salvação, fonte de esperança, a verdadeira face do Deus vivo."
12. Quando um crente diz "Amém" a Cristo individualmente, uma ulterior dimensão está sempre envolvida: um "Amém" à fé da Comunidade cristã. A pessoa que recebe o batismo precisa chegar a conhecer todas as implicações de participar da vida divina dentro do Corpo de Cristo. O "Amém" do fiel a Cristo torna-se ainda mais completo na medida em que a pessoa recebe tudo o que a Igreja, em fidelidade à Palavra de Deus, afirma ser o conteúdo autêntico da revelação divina. Assim, o "Amém" dito ao que Cristo é para cada fiel está incorporado no "Amém" que a Igreja diz ao que Cristo é para seu Corpo. Crescer nessa fé pode ser, para alguns, uma experiência de questionamento e de luta. Para todos, é uma experiência em que a integridade da consciência do fiel tem um papel vital a desempenhar. O "Amém" do crente a Cristo é tão fundamental que cada Cristão , através da vida, é chamado a dizer "Amém" a tudo o que toda a comunidade dos Cristãos recebe e ensina como o significado autêntico do Evangelho e a maneira de seguir a Cristo.
13. Os fiéis seguem a Cristo em comunhão com outros Cristãos em sua igreja local (cf. Autoridade na Igreja I, 8, onde está explicado que "a unidade das comunidades locais sob um bispo é o que comumente queremos dizer em nossas duas comunhões com 'igreja local'"). Na igreja local, partilham a Vida cristã, encontrando, juntos, uma direção para a formação de sua consciência e força para vencer suas dificuldades. São sustentados pela graça concedida por Deus a seu povo: as Escrituras Sagradas, expostas em pregações, catequese e credos; os sacramentos; o serviço do ministério ordenado; a vida de prece e adoração comum; o testemunho de pessoas santas. O fiel é incorporado no "Amém" da fé, mais antigo, mais profundo, mais amplo, mais rico do que o "Amém" individual para o Evangelho. Dessa forma, a relação entre a fé do indivíduo e a fé da Igreja é mais complexa do que possa parecer. Toda pessoa batizada partilha a rica experiência da Igreja, que, mesmo lutando com questões contemporâneas, continua a proclamar o que Cristo é para seu corpo. Cada crente, pela graça do Espírito, juntamente com todos os crentes de todos os tempos e lugares, herda essa fé da Igreja na comunhão dos santos. Então, os fiéis vivenciam um "Amém" duplo dentro da continuidade do culto divino, do ensinamento e da prática de sua igreja local. Essa igreja local é uma comunidade eucarística. No centro de sua vida está a celebração da Santa Eucaristia, em que todos os fiéis ouvem e recebem o "Sim" de Deus dado a eles em Cristo. Na Grande Ação de Graças, quando se comemora a lembrança do dom de Deus na obra salvadora de Cristo crucificado e ressuscitado, a comunidade está unida com todos os Cristãos de todas as igrejas que, desde o início e até o fim, pronunciam o "Sim" da humanidade a Deus — o "Amém" que o Apocalipse afirma estar no âmago da grande liturgia do céu (cf. Ap 5.14; 7.12).
Tradição e Apostolicidade: O "Amém" da Igreja Local na Comunhão das Igrejas
14. O "Sim" de Deus comanda e convida o "Amém" dos crentes. A Palavra revelada, que a comunidade apostólica testemunhou originalmente, é recebida e comunicada através da vida de toda a Comunidade cristã. A Tradição (paradosis) refere-se a esse processo(1). O Evangelho de Cristo crucificado e ressuscitado é continuamente transmitido e recebido (cf. 1 Cor 15.3) nas Igrejas cristãs. Essa tradição, ou transmissão, do Evangelho é o trabalho do Espírito, principalmente através do ministério da Palavra e do Sacramento e na vida comum do povo de Deus. A Tradição é um processo dinâmico, comunicando a cada geração o que foi entregue de uma vez por todas à comunidade apostólica. A Tradição é muito mais do que a transmissão de proposições verdadeiras referentes à salvação. Um concepção minimalista da Tradição que a limitasse a um repositório de doutrinas e decisões eclesiais é insuficiente. A Igreja recebe, e deve transmitir, todos os elementos constitutivos da comunhão eclesial: o batismo, a confissão da fé apostólica, a celebração da Eucaristia, a liderança mediante um ministério apostólico (cf. Igreja como Comunhão, 15, 43). Na economia (oikonomia) do amor de Deus pela humanidade, a Palavra que se fez carne e viveu entre nós está no âmago do que foi transmitido desde o início e do que será transmitido até o fim.
15. A Tradição é um canal do amor de Deus, que o torna acessível na Igreja e no mundo hoje. Através dela, de uma geração a outra, e de um lugar a outro, a humanidade partilha a comunhão na Santíssima Trindade. Pelo processo da Tradição, a Igreja ministra a graça do Senhor Jesus Cristo e a koinonia do Espírito Santo (cf. 2 Cor 13.14). Portanto, a Tradição é essencial à economia da graça, do amor e da comunhão. Para aqueles cujos ouvidos não ouviram e cujos olhos não viram, o momento de receber o Evangelho salvador é uma experiência de iluminação, perdão, cura, libertação. Os que participam da comunhão do Evangelho não podem deixar de transmiti-lo aos outros, mesmo que isso signifique o martírio. A Tradição é um tesouro a ser recebido pelo povo de Deus e um dom a ser partilhado com toda a humanidade.
16. A Tradição Apostólica é um dom de Deus que deve ser constantemente recebido de novo. Através dela, o Espírito Santo forma, mantém e sustenta a comunhão das igrejas locais de uma geração para outra. A transmissão e a recepção da Tradição apostólica são um ato de comunhão pelo qual o Espírito une as igrejas locais de nossos dias àquelas que as precederam na fé apostólica una. O processo da tradição acarreta a recepção e comunicação constante e contínua da Palavra revelada de Deus em muitas circunstâncias diversas e em tempos constantemente mutáveis. O "Amém" da Igreja à Tradição apostólica é fruto do Espírito que guia continuamente os discípulos para toda a verdade; ou seja, para Cristo, que é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 16.13; 14.6).
17. A Tradição expressa a apostolicidade da Igreja. O que os apóstolos receberam e proclamaram é agora encontrado na Tradição da Igreja, na qual a Palavra de Deus é pregada e os sacramentos de Cristo são celebrados no poder do Espírito Santo. As igrejas hoje estão comprometidas a receber a única Tradição apostólica viva, a ordenar sua vida de acordo com ela, e a transmiti-la de tal forma que o Cristo que vem na glória encontrará o povo de Deus confessando e vivendo a fé confiada, de uma vez por todas, aos santos (cf. Jd 3).
18. A Tradição dá testemunho da comunidade apostólica presente na Igreja hoje através de sua memória corporativa. Pela proclamação da Palavra e pela celebração dos sacramentos, o Espírito Santo abre os corações dos fiéis e lhes revela o Senhor Ressuscitado. O Espírito, que agiu nos eventos do ministério de Jesus ocorridos de uma vez por todas, continua a ensinar a Igreja, trazendo à lembrança o que Cristo fez e disse, tornando presentes os frutos de sua obra redentora e o antegozo do reino (cf. Jo 2.22; 14.26). O propósito da Tradição é atingido quando, através do Espírito, a Palavra é recebida e vivida na fé e na esperança. O testemunho da proclamação, dos sacramentos e da vida em comunhão é, ao mesmo tempo, o conteúdo da Tradição e seu resultado. Assim, a memória frutifica na vida de fé dos fiéis na comunhão de sua igreja local.
As Sagradas Escrituras: O "Sim" de Deus e o "Amém" do Povo de Deus
19. No interior da Tradição, as Escrituras ocupam um lugar único e normativo e pertencem ao que foi dado de uma vez por todas. Como testemunho escrito do "Sim" de Deus, exigem da Igreja que avalie constantemente seus ensinamentos, pregações e ações em confronto com elas. "Como as Escrituras são o único testemunho inspirado da revelação divina, a expressão dessa revelação pela Igreja deve ser testada por sua consonância com a Escritura" (Autoridade na Igreja: Elucidação, 2). Através das Escrituras, a revelação divina faz-se presente e é transmitida na vida da Igreja. O "Sim" de Deus é reconhecido no e através do "Amém" da Igreja, que recebe a revelação autêntica de Deus. Ao receber certos textos como testemunhos fidedignos da revelação divina, a Igreja determinou a identidade de suas Sagradas Escrituras. Considera apenas essa coleção de textos como a Palavra escrita inspirada de Deus e, como tal, com una autoridade única.
20. As Escrituras reúnem várias correntes de tradições Judaicas e Cristãs. Essas tradições revelam o modo como a Palavra de Deus tem sido recebida, interpretada e transmitida em contextos específicos, segundo as necessidades, as culturas e as circunstâncias do povo de Deus. Contêm a revelação de Deus do seu desígnio de salvação, que foi realizado em Jesus Cristo e experimentado pelas primeiras Comunidades cristãs. Nessas comunidades, o "Sim" de Deus foi recebido de uma nova maneira. No Novo Testamento, podemos ver como as Escrituras do Primeiro Testamento foram recebidas como revelação do único Deus verdadeiro e, também, reinterpretadas e re-recebidas como revelação de sua Palavra final em Cristo.
21. Todos os escritores do Novo Testamento foram influenciados pela experiência de suas próprias comunidades locais. O que transmitiram, por sua própria capacidade e intuições teológicas, registra os elementos do Evangelho que as igrejas de seu tempo e em situações variadas guardavam em sua memória. Os ensinamentos de Paulo sobre o Corpo de Cristo, por exemplo, são ocasionados em grande parte pelos problemas e divisões da igreja local em Corinto. Quando Paulo fala de "nossa autoridade que o Senhor concedeu para construir-vos e não para destruir-vos" (2 Cor 10.8), ele o faz no contexto de sua relação turbulenta com a igreja de Corinto. Até nas declarações principais de nossa fé, pode-se ouvir, freqüentemente, um eco da situação concreta e, por vezes, dramática de uma igreja local ou de um grupo de igrejas locais, a que somos devedores pela transmissão fiel da Tradição apostólica. A ênfase, no texto de João, na presença do Senhor encarnado em um corpo humano que podia ser visto e tocado antes e depois da ressurreição (cf. Jo 20.27; 1 Jo 4.2) está ligada ao conflito em torno dessa questão nas comunidades joaninas. É através do esforço de determinadas comunidades, num determinado momento, para discernir qual fosse a Palavra de Deus para elas, que encontramos, nas Escrituras, um registro autorizado da Tradição apostólica a ser transmitida de uma geração a outra e de uma igreja a outra, e ao qual os fiéis dizem "Amém".
22. A formação do cânon das Escrituras foi parte integrante do processo de tradição. O reconhecimento dessas Escrituras pela Igreja como canônicas, após longo período de discernimento crítico, foi um ato de obediência e, ao mesmo tempo, de autoridade. Foi um ato de obediência, pelo fato de que a Igreja discerniu e recebeu o "Sim" doador de vida de Deus através das Escrituras, aceitando-as como a norma de fé. Foi um ato de autoridade, pelo fato de que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, recebeu e transmitiu esses textos, declarando que eram inspirados e que outros textos não deviam ser incluídos no cânon.
23. O significado do Evangelho de Deus revelado é plenamente entendido apenas no âmbito da Igreja. A revelação de Deus tem sido confiada a uma comunidade. A Igreja não pode ser descrita como um agregado de fiéis individuais, nem sua fé pode ser considerada a soma das crenças desses indivíduos. Os fiéis formam, juntos, o povo de fé, por serem incorporados pelo batismo a uma comunidade que recebe as Escrituras canônicas como a autêntica Palavra de Deus; eles recebem a fé dentro dessa comunidade. A fé da comunidade precede a fé do indivíduo. Assim, embora a caminhada da fé de uma pessoa possa começar pela leitura individual da Escritura, não pode ficar reduzida a isso. A interpretação individualista das Escrituras não se harmoniza com a leitura do texto dentro da vida da Igreja e é incompatível com a natureza da autoridade da Palavra revelada de Deus (cf. 2. Pd 1.20-21). A Palavra de Deus e a Igreja de Deus não podem ser dissociadas.
Recepção e Re-Recepção: O "Amém" da Igreja à Palavra de Deus
24. Através dos séculos, a Igreja recebe e reconhece como um dom da graça divina tudo o que confessa como expressão verdadeira da Tradição transmitida definitivamente aos apóstolos. Essa recepção é, ao mesmo tempo, um ato de fidelidade e de liberdade. A Igreja deve permanecer fiel, de forma que o Cristo que vem na glória reconhecerá na Igreja a comunidade fundada por ele; deve continuar livre para receber a Tradição apostólica de novas maneiras, segundo as situações com que se depara. A Igreja tem a responsabilidade de transmitir toda a Tradição apostólica, embora possa haver partes que considere de difícil integração na sua vida e no seu culto. Pode ser que o que significava muito para uma geração anterior venha a se tornar importante novamente no futuro, embora sua relevância não seja clara no presente.
25. Dentro da Igreja, a memória do povo de Deus pode ser afetada ou mesmo deturpada pela limitação e pelo pecado humano. Embora tendo recebido a promessa da assistência do Espírito Santo, de tempos em tempos as igrejas esquecem alguns aspectos da Tradição apostólica, não conseguindo discernir a visão plena do reino de Deus à luz da qual procuramos seguir a Cristo. As igrejas sofrem quando algum elemento da comunhão eclesial foi esquecido, negligenciado ou deturpado. Recorrer de novo à Tradição em uma nova situação é o meio pelo qual a revelação de Deus em Cristo é rememorada. Esse processo é assistido pela compreensão de estudiosos da Bíblia e de teólogos e pela sabedoria dos sábios. Assim, pode ocorrer uma re-descoberta de elementos que eram negligenciados e uma nova memória das promessas de Deus, levando a uma renovação do "Amém" da Igreja. Pode haver, também, um exame crítico do que tem sido recebido, porque algumas das formulações da Tradição passam a ser consideradas inadequadas ou até enganosas em um novo contexto. Podemos chamar todo esse processo de re-recepção.
Catolicidade: O "Amém" de Toda a Igreja
26. Existem duas dimensões da comunhão na Tradição apostólica: a diacrônica e a sincrônica. O processo de tradição acarreta, certamente, a transmissão do Evangelho de uma geração a outra (diacrônica). Se a Igreja deve permanecer unida na verdade, o processo também deve acarretar a comunhão das igrejas em todos os lugares nesse único Evangelho (sincrônica). Ambas dimensões são necessárias para a catolicidade da Igreja. Cristo promete que o Espírito Santo manterá a verdade essencial e salvadora na memória da Igreja, capacitando-a para a missão (cf. Jo 14.26; 15.26-27). Essa verdade tem de ser transmitida e recebida de novo pelos fiéis em todos os tempos e em todos os lugares através do mundo, como resposta à diversidade e complexidade da experiência humana. Não há nenhuma parte da humanidade, nenhuma raça, nenhuma condição social, nenhuma geração para quem essa salvação, comunicada na transmissão da Palavra de Deus, não seja dirigida (cf. Igreja como Comunhão, 34).
27. Na rica diversidade da vida humana, o encontro com a Tradição viva produz uma variedade de expressões do Evangelho. Onde as diversas expressões são fiéis à Palavra revelada em Jesus Cristo e transmitida pela comunidade apostólica, as igrejas em que essas expressões tem lugar estão verdadeiramente em comunhão. De fato, essa diversidade de tradições é a manifestação prática da catolicidade e confirma, mais do que contradiz, o vigor da Tradição. Assim como Deus criou a diversidade entre os seres humanos, a fidelidade e a identidade da Igreja requerem não uma uniformidade de expressão e formulação em todos os níveis, em todas as situações, mas antes uma diversidade católica dentro da unidade da comunhão. Essa riqueza de tradições é um recurso vital para uma humanidade reconciliada. "Os seres humanos foram criados por Deus em seu amor com tal diversidade para que pudessem participar desse amor compartilhando entre si o que têm e o que são, enriquecendo-se, assim, em sua comunhão mútua" (Igreja como Comunhão, 35).
28. O povo de Deus como um todo é o portador da Tradição viva. Em situações diferentes, que suscitam novos desafios para o Evangelho, o discernimento, a atualização e a comunicação da Palavra de Deus são da responsabilidade de todo o povo de Deus. O Espírito Santo trabalha através de todos os membros da comunidade, usando os dons concedidos a cada um para o bem de todos. Os teólogos em particular servem à comunhão da Igreja toda, investigando se e como novas interpretações devem ser integradas à corrente contínua da Tradição. Em cada comunidade ocorre uma troca, um dar e um receber mútuos, em que os bispos, o clero e os leigos dão e recebem dos outros no âmbito de todo o corpo.
29. Em todo Cristão desejoso de ser fiel a Cristo e incorporado na vida da Igreja, existe um sensus fidei. Esse sensus fidei pode ser descrito como uma capacidade ativa de discernimento espiritual, uma intuição formada pelo culto divino e pela vida em comunhão como membro fiel da Igreja. Quando essa capacidade é exercida de comum acordo pelo corpo de fiéis, falamos do exercício do sensus fidelium (cf. Autoridade na Igreja: Elucidação, 3-4). O exercício do sensus fidei por todo membro da Igreja contribui para a formação do sensus fidelium, através do qual a Igreja como um todo permanece fiel a Cristo. Pelo sensus fidelium, o corpo todo contribui para, recebe de e guarda como um tesouro o ministério daqueles membros da comunidade que exercem a episcope, velando pela memória viva da Igreja (cf. Autoridade na Igreja I, 5-6). Assim, o "Amém" do crente é incorporado ao "Amém" de toda a Igreja de várias formas.
30. Os que exercem a episcope no Corpo de Cristo não devem ser separados da "sinfonia" de todo o povo de Deus em que eles têm uma parte a tocar. Devem ser alertados para o sensus fidelium, o qual compartilham, para que saibam quando algo se torna necessário para o bem-estar e a missão da comunidade, ou quando algum elemento da Tradição precisa ser recebido de um modo novo. O carisma e a função da episcope estão especificamente relacionados com o ministério da memória, que renova constantemente a Igreja na esperança. Através desse ministério, o Espírito Santo mantém viva na Igreja a memória do que Deus fez e revelou, e a esperança do que Deus fará para unir todas as coisas em Cristo. Desse modo, não apenas de geração para geração, mas também de lugar para lugar, a fé única é comunicada e vivida. Esse é o ministério exercido pelo bispo, e por pessoas ordenadas sob os cuidados do bispo, na medida em que proclamam a Palavra, administram os sacramentos e tomam parte na administração da disciplina pelo bem comum. Os bispos, o clero e os outros fiéis devem todos reconhecer e receber de Deus o que é transmitido por mediação de uns para os outros. Assim, o sensus fidelium do povo de Deus e o ministério da memória existem juntos em relação recíproca.
31. Os Anglicanos e os Católicos Romanos podem concordar, em princípio, com tudo o que foi dito acima, mas precisam fazer um esforço deliberado para recuperar esse entendimento comum. Quando as comunidades cristãs estão em comunhão real, mas imperfeita, são chamadas a reconhecer, umas nas outras, elementos da Tradição apostólica que podem ter rejeitado, esquecido ou ainda não compreendido plenamente. Em conseqüência, devem receber ou reapropriar esses elementos, e reconsiderar as formas como interpretaram as Escrituras separadamente. Sua vida em Cristo é enriquecida quando dão e recebem umas das outras. Crescem no entendimento e na experiência de sua catolicidade na medida em que o sensus fidelium e o ministério da memória interagem na comunhão dos fiéis. Nessa economia de dar e receber dentro de uma comunhão real, mas imperfeita, aproximam-se mais de uma indivisa participação no único "Amém" de Cristo para a glória de Deus.