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Durante todo este comentário, procurei mostrar como a ARCIC II tentou abordar as preocupações manifestadas pelas duas respostas oficiais ao trabalho da ARCIC I sobre autoridade. Em geral, O Dom da Autoridade parece ter sido razoavelmente bem-sucedido ao tratar tais preocupações. Ao mesmo tempo, como era de se esperar, focalizando-as, pode ter perdido a oportunidade de desenvolver plenamente alguns temas enunciados com menos ênfase pelas respostas oficiais. Quanto a isso, gostaria de indicar apenas duas áreas em que acredito que um pouco mais de precisão poderia tornar a compreensão da autoridade presente no texto ainda mais adequada, e assim, aprofundar o consenso entre Anglicanos e Católicos Romanos.
Uma questão concerne ao que denominamos sensus fidelium. Não poderia o texto ser mais claro quanto ao significado preciso desta expressão? Ela é distinta do sensus fidei, descrito como "uma capacidade ativa de discernimento espiritual, uma intuição formada pelo culto divino e pela vida em comunhão como membro fiel da Igreja" (Dom, 29). O parágrafo 29 declara: "Quando essa capacidade é exercida de comum acordo pelo corpo de fiéis, falamos do exercício do sensus fidelium". Que significa exercer o sensus fidei "de comum acordo"? Mais adiante, o sensus fidelium é descrito quase como uma força ou princípio ativo: "No interior da prática do sensus fidelium, existe uma relação complementar entre o bispo e o resto da comunidade." (Dom, 36; veja também Dom, 1, 43 e 56). Finalmente, outro significado parece emergir, como se a frase se referisse não a uma capacidade subjetiva, exercida individualmente ou em comum, mas ao conteúdo doutrinário, relativo a assuntos de fé e moral, que é realmente acreditado pelos fiéis: "quando os bispos se reúnem em concílio, buscam discernir e articular o sensus fidelium" (Dom, 38). Parece-me que o texto melhoraria se restringisse o significado de sensus fidelium a este sentido final. Talvez o Vaticano II possa ajudar nesse ponto. A Lumen gentium 12, mencionada em Dom, 43, não usa a expressão sensus fidelium, mas se limita, simplesmente, a falar do "sensus fidei sobrenatural de todo o povo".
Por essa apreciação da fé (sensus fidei), despertada e sustentada pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus, guiado pela autoridade sagrada do magistério (magisterium) e em obediência a ela, recebe não a mera palavra dos homens, mas, verdadeiramente, a palavra de Deus (cf. 1 Ts 2.13), a fé confiada, de uma vez por todas, aos santos (cf. Jd 3). O Povo adere infalivelmente a essa fé, a penetra mais profundamente com um julgamento certo, e a aplica mais plenamente na vida cotidiana.
Aqui, o sensus fidei é, sem dúvida, uma capacidade subjetiva que acompanha a fé; é um dom do Espírito Santo. Se todo o povo, guiado por esse dom do sensus fidei, concordasse com um consenso universal sobre uma questão de fé ou moral, não erraria nesse ponto particular da crença (assim, Lumen gentium, 12). A expressão sensus fidelium não poderia se referir, precisamente, ao nível de consenso sobre qualquer questão particular de fé ou moral? Só no caso de unanimidade, poderíamos ter a certeza de que todo o corpo de fiéis está a salvo de erro. Não chegando a tal unanimidade, os pontos de vista comuns do povo todo não ficam reduzidos, dessa forma, à insignificância. Eles ainda assim contribuem para a interpretação da Palavra revelada de Deus. Mas esta própria afirmativa mostra o verdadeiro papel do sensus fidelium. Não é que a Igreja precise discernir o sensus fidelium como um fim em si. Antes, a finalidade última do discernimento é receber a Palavra de Deus, aderir a ela e aplicá-la à vida. O sensus fidei é um dom concedido a cada fiel para assisti-lo(la) ao fazer isso. O sensus fidelium é comparável a uma "leitura" daquilo em que os fiéis realmente acreditam. Tais esclarecimentos permitiriam à ARCIC II indicar mais claramente como o sensus fidelium contribui para o magistério autorizado, bem como reconhecer mais abertamente as dificuldades inerentes à tarefa de discernir aquilo em que os fiéis acreditam e o grau de sua unanimidade. Principalmente numa época em que a "opinião pública" é consultada com tanta freqüência e parece ser tão maleável, uma reflexão mais profunda sobre esse aspecto tão importante da vida eclesial seria de grande ajuda.
Uma segunda sugestão está ligada à primeira. É o seguinte. Não seria possível identificar mais claramente a autoridade episcopal específica de magistério justamente como uma participação, dada por Cristo, da sua própria autoridade de ensinamento? Esse tema está de alguma forma em O Dom da Autoridade, com certeza. Podemos congratular-nos particularmente com as referências Cristológicas nos parágrafos 36 e 43, e com a pneumatologia tecida ao longo do texto (cf. Dom, 4, 18, 28, 30, 35, 36, 41, 42, 43, 47, 49). Tais referências às missões do Filho e do Espírito Santo corroboram uma avaliação otimista da autoridade ministerial na Igreja. Ao mesmo tempo, é possível se perguntar se esse otimismo não permitiria uma maior atenção à ordenação episcopal como um rito sacramental epiclético, no qual o bispo recém ordenado recebe a graça de compartilhar, numa forma pastoral única, a autoridade de Cristo Bom Pastor.
Além disso, a proveitosa ênfase no laicato, principalmente através do recurso ao tema do sensus fidelium, pode, no entanto, dar a impressão de que os encarregados do "ministério da memória" têm acesso à Palavra de Deus principalmente através das convicções comuns do povo. É claro que, de fato, os bispos aprendem a Palavra de Deus com pessoas leigas. Quem poderá se esquecer daquelas palavras proferidas para Timóteo em nome de Paulo, que, ao lado de um certo encanto familiar, sugerem, ao mesmo tempo, o profundo enraizamento pessoal dos ministros ordenados em toda a comunidade de fiéis?
Evoco a lembrança da fé sincera que há em ti, uma fé que antes habitou em Loide, tua avó, e em tua mãe Eunice, e que, estou convencido, também reside em ti. Por isso recordo-te que tens de reavivar o dom de Deus que está em ti desde que te impus as mãos. (2 Tim1.5-6)
Assim sendo, não seria o texto ainda mais satisfatório se pudesse incluir uma reflexão mais desenvolvida sobre a relação entre o ministério ordenado e a proclamação da Palavra de Deus? Poderia utilizar, proveitosamente, aquelas passagens bíblicas em que Jesus compartilha sua missão de proclamação com os doze (tais como Mat 10.1-42). Poderia lembrar, também, a responsabilidade episcopal especial de manter e guardar a fé, idéia esta que poderia ser fundamentada não apenas no Novo Testamento, mas também em abundante material extraído dos escritos e da prática dos Pais da Igreja.
Os Anglicanos e os Católicos Romanos, convencidos ambos de que o episcopado faz parte da vontade de Deus para a Igreja, e não tendo entrado nunca em conflito formal sobre essa questão, poderiam sentir naturalmente menos necessidade de encontrar um sólido fundamento para o episcopado em suas declarações consensuais. Na verdade, uma crítica à Autoridade I foi justamente a de que focalizava muito a hierarquia e falava muito pouco sobre o laicato.(29) Uma vez que O Dom da Autoridade tenta cumprir o mandato especificado nas respostas oficiais à ARCIC I, é natural que o laicato seja colocado em relevo no texto. Talvez mais um pouco de atenção ao fundamento e ao significado sacramental da ordenação episcopal poderia melhorar ainda mais o que já é um consenso extraordinário.
No limiar de um novo milênio, parece bastante providencial, um sinal da influência do Espírito Santo, que, em alguns meses, tenham surgido declarações comuns importantes reivindicando um significativo consenso sobre duas das mais férteis questões doutrinárias que dividem comunidades Cristãs. Além de O Dom da Autoridade, estudado neste comentário, uma Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação Luterano-Católica foi publicada em 1998.(30) Embora esses documentos difiram quanto ao processo que levou à sua elaboração e às doutrinas específicas consideradas, as duas questões e os dois consensos não são independentes. Ambos se referem à cura e à elevação da natureza pela graça redentora de Cristo. A Declaração sobre Justificação aborda o modo como isso ocorre na vida da pessoa redimida. O Dom da Autoridade, por sua vez, contempla o efeito da graça na comunidade toda que é a Igreja, local e universal. Poderíamos fazer uma profecia segura de que o impacto desses consensos atingirá mais do que as relações entre a Igreja Católica Romana e apenas as comunidades Luterana e Anglicana. O Texto da Justificação poderia ajudar o diálogo Católico com muitas outras comunidades da Reforma. O texto da Autoridade pode fazer o mesmo, e também contribuir para a consideração comum sobre a primazia, que continuará a ser de grande interesse no tratamento das divisões entre as Igrejas Católica e Ortodoxa.
O Papa João Paulo II observou que o que nos une é muito maior do que o que nos divide. Ele espera que o novo milênio nos encontre mais juntos do que antes, mesmo que ainda não estejamos totalmente unidos. O acordo mais recente proposto pela Comissão Internacional Anglicana - Católica Romana tem esperança de realizar esse sonho. Sua esperança de que o "'Amém' que os Anglicanos e os Católicos Romanos dizem ao Senhor único" se aproximará de "um 'Amém' pronunciado em uníssono por um único povo santo testemunhando a salvação de Deus e reconciliando o amor em um mundo roto" não é vã. Seu trabalho ajudará a realizar esse testemunho comum e esse "Amém" comum tão convenientes e necessários na alvorada de um novo milênio.