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Comentário a
"O DOM DA AUTORIDADE"

Autor William Henn (ofm cap.)

III. O EXERCÍCIO DA AUTORIDADE NA IGREJA

O uso do termo "exercício" aqui deve ser notado. O Dom da Autoridade comenta o estilo em que a autoridade deve ser exercida dentro da Igreja, referindo-se, principalmente, à "atitude e o exemplo" de Jesus e ao seu modo "diferente", caracterizado pelo serviço de autodoação (cf. Dom, 5, 9, 35, 48, 49). O texto não esconde o fato de que a autoridade pode ser exercida de modo abusivo e deformada pelo pecado ou pela fraqueza daqueles que a exercem (Dom, 5, 25, 48). Tendo sido dito isto, a Parte III não se refere apenas às virtudes necessárias para o exercício da autoridade na Igreja, mas também à finalidade, aos sujeitos e às características desse exercício. Parece haver cinco temas específicos nesta seção, cada um dos quais merece breve comentário: unidade para a missão, sinodalidade, verdade, primazia e disciplina.

Do simples ponto de vista do número de parágrafos do referido texto, a seção dedicada à missão e à unidade fica exatamente no meio. Poderíamos argumentar que ela também é o coração doutrinário do consenso. Os parágrafos 32 e 33 tentam fornecer a raison d'être da autoridade na Igreja. Qual é sua finalidade? De forma muito útil, a comissão coloca sua finalidade dentro do contexto da finalidade da Igreja como tal. A Igreja existe como um instrumento para continuar a missão de Cristo de instaurar o Reino de Deus. A verdadeira natureza do Reino é a comunhão.(8) A missão da Igreja é ser um instrumento de comunhão (cf. 1 Jo 1.1-3). A falta de unidade prejudica essa missão; Jesus reza para que seus seguidores sejam um, "para que o mundo possa acreditar" (Jo 17.21). O texto em questão toca nesses pontos:

Quando os Cristãos não estão de acordo sobre o próprio Evangelho, a sua pregação dele com poder é prejudicada. Quando não se tornam um na fé, não podem ser um na vida, e, assim, não podem demonstrar plenamente que são fiéis à vontade de Deus, reconciliação de todas as coisas no Pai através de Cristo (cf. Cl 1.20) ... É um desafio e uma responsabilidade para os que têm autoridade dentro da Igreja, exercer o seu ministério de forma a promover a unidade de toda a Igreja na fé e na vida, por caminhos que enriqueçam, e não diminuam, a diversidade legítima das igrejas locais.". (Dom, 33).

Da perspectiva católica, isso é de grande ajuda no início de uma seção que tratará dos temas de episcopado, sinodalidade e primazia. Lumen gentium 23 associa intimamente o ministério dos bispos e do Papa com o papel de servir à unidade da Igreja, e isso no contexto da missão da Igreja de anunciar o Evangelho no mundo todo.(9) Poder-se-ia dizer que os temas dominantes da eclesiologia Católica, no período após o Vaticano II, aglutinam-se, todos, em torno dos tópicos da comunhão (unidade) e da missão. Até os sínodos gerais mais recentes, relativos ao laicato, aos ministros ordenados e aos que fizeram votos para a vida consagrada têm desenvolvido, todos eles, a compreensão dessas vocações em termos da eclesiologia dual de comunhão e missão. O Papa João Paulo II guiou-se por essas discussões, ao escrever suas três exortações apostólicas que foram o fruto desses sínodos: Christifideles laici, Pastores dabo vobis e Vita consecrata. Agora, em O Dom da Autoridade, os membros da ARCIC II deram-nos dois parágrafos valiosos, relacionando autoridade na Igreja justamente com sua natureza de comunhão e missão.

Os parágrafos referentes a sinodalidade (Dom, 34-40) começam com uma bela descrição de toda a Igreja, formada pela comunhão de todas as igrejas locais, como uma comunidade caminhando em uníssono (jogando com o termo grego synodos), guiada pelo Espírito Santo, em fidelidade à Palavra viva de Deus. Em seguida, vêm os parágrafos mais contundentes sobre os bispos. Eles precisam de certa autoridade pastoral para exercer a episcope efetivamente, dentro de uma igreja local. Isso significa que devem estar aptos a tomar e implementar decisões pelo bem da comunhão. Os fiéis "têm o dever de acatar e aceitar" essas decisões. "A jurisdição dos bispos é uma conseqüência do chamado que receberam para conduzir suas igrejas ...; não é um poder arbitrário concedido a uma pessoa em detrimento da liberdade de outras". Existe uma complementaridade entre bispo e comunidade que é simbolizada e expressa pelo diálogo orante entre presidente e povo, durante a celebração da Eucaristia. Essas afirmações, todas do Dom, 36, conseguem harmonizar uma autoridade episcopal clara e decisiva com um respeito sensível à fé dos fiéis individuais que constituem a comunidade. Esse é o tipo de autoridade que associamos naturalmente com o próprio Jesus, pastor e bispo de almas (cf. 1 Pd 2.25). A seção prossegue relembrando algumas das estruturas que auxiliam a sinodalidade, observando que "a manutenção da comunhão requer que haja, em todos os níveis, uma capacidade de decisão adequada a cada nível. Quando essas decisões levantam questões sérias para uma comunhão maior das igrejas, a sinodalidade precisa encontrar uma expressão mais ampla" (Dom, 37). Para realizar essa sinodalidade, os bispos precisam se reunir. A consulta aos fiéis é outro aspecto importante de sua supervisão episcopal (Dom, 38). Os parágrafos 39-40 oferecem um relato fascinante das diversas formas em que os Anglicanos e os Católicos Romanos expressam a sinodalidade, particularmente interessante devido às diversas ênfases presentes nas descrições. O parágrafo 39 expressa confiança na prática extensiva da sinodalidade e da consulta aos laicos dentro da Comunhão Anglicana; mas parece quase precisar "protestar demais" que os bispos têm uma responsabilidade "distinta e crucial", um "ministério próprio e único" de supervisão. Por outro lado, o parágrafo 40, sobre a Igreja Católica Romana, pressupõe um forte exercício de autoridade episcopal e primacial, mas parece quase precisar "protestar demais" que "a tradição da sinodalidade não terminou", e que os três concílios pós-Reforma, celebrados pela Igreja Católica Romana, e, especialmente, muitos desenvolvimentos estruturais, implantados desde o Vaticano II, têm estimulado um grau maior de sinodalidade. O texto acrescenta: "Complementando essa sinodalidade colegial, um crescimento da sinodalidade em nível local está promovendo a participação ativa de leigos na vida e na missão da igreja local " (Dom, 40). Isto dá a impressão de que a participação Católica leiga ocorre apenas em nível da igreja local, e pode, assim, minimizar indevidamente sua participação em nível nacional, regional e até universal (em sínodos gerais, por exemplo). Essas duas ênfases diversas aparecem novamente, na Parte IV, quando a comissão enumera algumas questões referentes a Anglicanos e Católicos Romanos, respectivamente (Dom, 56-7).

A seção sobre perseverança na verdade (Dom, 41-44) tenta agrupar várias informações que poderiam parecer estar em tensão mútua. Expõe claramente que Anglicanos e Católicos Romanos podem afirmar tanto a indefectibilidade quanto a infalibilidade da Igreja. Assim como o Vaticano I havia ensinado que o Papa, sob certas condições, pode exercer "aquela infalibilidade de que Cristo desejava que sua Igreja fosse dotada" (Denziger-Hünermann, 3074), a ARCIC II observa que a confiança, sustentada pela Bíblia, que os Cristãos justificadamente têm a respeito da proclamação da verdade do Evangelho repousa na confiança posta na promessa de Jesus de que o Espírito Santo não abandonará a Igreja como um todo, e a guiará em direção a toda a verdade. É nessa confiança que consiste nossa convicção comum da "indefectibilidade" da Igreja. O texto tenta harmonizar essa confiança com a experiência de que o desenvolvimento doutrinal, que pode levar, eventualmente, a novas formulações de fé, consiste em um processo prudente e cuidadoso em que tais formulações são examinadas. O "exame" aqui mencionado deve ser entendido segundo o Ensaio sobre o Desenvolvimento de Doutrina (Essay on the Development of Doctrine), de Newman, que relata como a Igreja chegou a novas formulações, tais como o uso do termo homoousious para descrever a relação do Filho com o Pai. No contexto da indefectibilidade, O Dom da Autoridade afirma, sem ambigüidade, que é justamente função do colégio de bispos "discernir e ministrar ensinamentos confiáveis por expressarem a verdade de Deus com segurança". Em algumas circunstâncias, os bispos precisam "examinar novas formulações de fé" urgentemente e podem até, "assistidos pelo Espírito Santo ... chegar, juntos, a um julgamento que, sendo fiel à Escritura e consistente com a Tradição apostólica, está preservado do erro" (Dom, 42).

Uma das questões mais cruciais no texto surge precisamente nesse ponto, em que a ARCIC II tenta harmonizar a autoridade infalível de magistério do colégio de bispos com a recepção de seus ensinamentos por todo o corpo de fiéis. No parágrafo 43, O Dom da Autoridade aborda uma preocupação presente em ambas as respostas oficiais aos textos da ARCIC I sobre autoridade. Como já observamos, a resposta Anglicana apontava para a necessidade de maiores investigações sobre o papel do laicato nas tomadas de decisão dentro da Igreja. O texto atual parece realizar essa tarefa, principalmente em suas reflexões sobre o sensus fidelium e a recepção, ambos em debate em Dom, 43. A resposta Romana oficial, por outro lado, cita várias passagens da ARCIC I, tais como:

… Os Anglicanos não aceitam a posse garantida de tal dom de assistência divina nos seus julgamentos como estando necessariamente vinculada ao ofício do Bispo de Roma, em virtude do que suas decisões formais possam ser consideradas totalmente seguras antes de sua recepção pelos fiéis.(10)

Enquanto esse texto versa sobre o ensinamento do Bispo de Roma, a questão central refere-se a "recepção", justamente o tema do parágrafo 43, que estamos examinando agora. A resposta Católica Romana resume sua preocupação com esse aspecto da seguinte forma:

É feita uma afirmação clara, além disso, em Autoridade na Igreja: Elucidação n. 3, no sentido de que a recepção de uma verdade definida pelo Povo de Deus "não cria a verdade nem legitima a decisão". Mas, como se observou a respeito da primazia, parece que, em outra parte, o Relatório Final vê o "assentimento dos fiéis" como uma exigência para o reconhecimento de que uma decisão doutrinal do Papa ou de um Concílio Ecumênico é imune de erro (AII, 27 e 31). Para a Igreja Católica, o conhecimento certo de uma verdade definida não é garantido pela recepção dos fiéis de que ela está em conformidade com a Escritura e a Tradição, mas pela própria definição autorizada por parte dos mestres autênticos.(11)

Como são abordadas essas questões no presente texto? Em primeiro lugar, o texto afirma que todo o corpo de fiéis participa, de formas distintas, do exercício da autoridade de magistério na Igreja. Não diz que todo o corpo de fiéis possui essa autoridade de magistério em associação com o colégio de bispos, que o parágrafo anterior (42) tinha indicado como uma autoridade que, em certas circunstâncias, pode chegar a um julgamento imune de erro. Qual é a natureza dessa participação? Nela, "o sensus fidelium está operando", presumivelmente como uma das fontes consultadas pelos bispos antes de tomarem qualquer decisão. Os bispos não apenas consultam a Palavra de Deus expressa na Escritura e transmitida na Tradição, mas, também, ficam atentos ao modo como essa Palavra tem sido recebida pelo povo, que é guiado pelo dom do sensus fidei e cujo entendimento comum da Palavra pode ser chamado de sensus fidelium. O Dom da Autoridade quer dizer que tal participação por todo o corpo não é só um antecedente dos ensinamentos oficiais, mas uma conseqüência, também. O texto prossegue:

Como é a fidelidade de todo o povo de Deus que está em jogo, a recepção dos ensinamentos é parte integral do processo. Definições doutrinais são recebidas como autorizadas, em virtude da vontade divina que proclamam e, também, do ofício específico da pessoa ou pessoas que as proclamam dentro do sensus fidei de todo o povo de Deus (Dom, 43).

Parece, aqui, que a condição de "garantia" de uma definição autorizada não é a recepção. Antes, se fossemos falar em "garantia", a ARCIC II diria que tais definições são "autorizadas" "em virtude da verdade divina que proclamam, tanto quanto por causa do ofício específico da pessoa ou das pessoas que as proclamam". A frase "dentro do sensus fidei de todo o povo de Deus" não parece considerar a recepção como condição de possibilidade de uma definição doutrinal, mas confirmar a idéia, contida nos parágrafos 41 e 42, e, anteriormente, em Pastor aeternus, do Vaticano I, de que qualquer exercício de autoridade infalível de magistério só pode ser estabelecido, em última análise, como um exercício "daquela infalibilidade da qual Cristo desejava dotar Sua Igreja". Entretanto, a recepção é parte "integral" de tais definições, porque a finalidade específica de uma definição é expressar a fé normativa da Igreja, e, portanto, a fé compartilhada por todos. Se os ensinamentos não fossem recebidos, essa finalidade não seria alcançada. Por que o corpo de fiéis aceita uma definição doutrinal? É

... porque reconhece que esses ensinamentos expressam a fé apostólica e operam no âmbito da autoridade e da verdade de Cristo, Cabeça da Igreja. A verdade e a autoridade de sua Cabeça são a fonte de ensinamento infalível no Corpo de Cristo. O "Sim" de Deus revelado em Cristo é o padrão pelo qual esse ensinamento autorizado é julgado. Esse ensinamento deve ser bem recebido pelo povo de Deus como um dom do Espírito Santo para manter a Igreja na verdade de Cristo, nosso "Amém" a Deus (Dom, 43).

A partir desse texto, parece claro que não é a aceitação por parte de indivíduos que serve de fonte do magistério infalível. A fonte, ao invés, é Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, e que age através da Igreja. O Dom da Autoridade usa, aqui, os verbos "ser julgado" e "ser bem recebido" com referência ao magistério infalível. Um ensinamento pode ser julgado e bem recebido ao mesmo tempo? Significa isso que um fiel ou grupos de fiéis, ou o corpo de fiéis como um todo, por assim dizer, julgam definições solenes proferidas por um Concílio Ecumênico, ou por um Bispo de Roma que quer ensinar da maneira descrita pelo Vaticano I?

Não parece, com toda certeza, ser esta a intenção do texto. Não é que o fiel possua uma autoridade superior à de Cristo, ou à que o próprio Cristo exerce através do colégio episcopal. Imagino que a conjunção destes dois verbos, pelo contrário, pretende demonstrar, nesse contexto de recepção do magistério oficial, a mesma doutrina que o Papa João Paulo indicou, no contexto da relação entre filosofia e teologia, ou seja, de que não pode haver conflito último entre fé e razão.(12) A fé dos fiéis compromete toda a pessoa humana, cuja aceitação intelectual da doutrina, portanto, comprometerá necessariamente a capacidade de julgamento. Não podemos separar os dois verbos, "receber bem" e "julgar", na recepção da doutrina definida, como se fosse possível dar as boas-vindas a um ensinamento como interpretação autêntica da palavra revelada de Deus, ainda que nos sentíssemos totalmente incapazes de julgá-lo passível de ser considerado como tal. Nesse caso, a fé seria reduzida a um fideísmo cego, rejeitado, com razão, tanto pela Fides et ratio quanto pela Dei filius, do Vaticano I, como não merecedor da dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus.

A seção sobre a verdade termina com a repetição do papel e da responsabilidade singulares do colégio episcopal, que "está ligado por sucessão aos apóstolos", de manter a Igreja na verdade. Nesse contexto, O Dom da Autoridade reitera as afirmações do Vaticano II de que os bispos individuais ensinam em solidariedade com todo o colégio episcopal, e de que o ofício de ensinar deve ser fiel à Escritura e à Tradição, pois ele "não está acima da Palavra de Deus, mas ao seu serviço" (Dom, 44; cf. Vaticano II, Dei verbum, 10).

A seção dedicada à primazia (Dom, 45-48) inicia-se com o reconhecimento de que a sinodalidade da Igreja é servida não apenas pela autoridade conciliar e colegial, mas também pela primacial. Ambas comunidades reconhecem o ministério primacial, em vários níveis da vida eclesial. O parágrafo 46 confessa, explicitamente, seu débito para com o que deve ser umadas mais importantes conquistas da ARCIC I: o reconhecimento comum não só da necessidade do ministério primacial em nível universal, mas também da necessidade de que esse ministério seja exercido pelo Bispo de Roma. Se é verdade que as origens da divisão entre as duas comunidades se assenta "principalmente no problema da primazia papal", como indica o Relatório de Malta, então, deve se dar à ARCIC I o crédito de já haver realizado um avanço historicamente importante.

A resposta oficial da Comunhão Anglicana ao tratamento dado à primazia pela ARCIC I pedia que se investigasse continuamente:

... o fundamento, na Escritura e na Tradição, do conceito de uma primazia universal, em conjunção com a colegialidade, como instrumento de unidade, que é o caráter de tal primazia na prática, e que se valesse da experiência de outras Igrejas Cristãs no exercício da primazia, colegialidade e conciliaridade.(13)

Quanto ao último pedido, o parágrafo 4 de O Dom da Autoridade menciona, brevemente, que tanto os Anglicanos quanto os Católicos Romanos estão tentando permanecer abertos à experiência de outras igrejas no que diz respeito à natureza e ao exercício da autoridade. Daí em diante, o próprio texto não faz referência explícita a outras igrejas, embora sua descrição da Igreja como o lugar em que "a palavra de Deus é pregada e os sacramentos de Cristo são celebrados" (Dom, 17-18) pareça ecoar um tema eclesiológico caro à Reforma Protestante, enquanto que a estrutura da discussão de colegialidade e conciliaridade em termos de "sinodalidade" (Dom, 34-40; 45) provavelmente seria compatível com o pensamento ortodoxo. Considerando as bases na Escritura e na Tradição, o texto presente relembra as reflexões bíblicas mais extensas em Autoridade na Igreja II, 2-9, e acrescenta um texto e alguns exemplos do período patrístico. A menção das celebrações litúrgicas Anglicanas de dois bispos de Roma, Leão e Gregório, é uma adição particularmente agradável aqui. A relação entre primazia e colegialidade é conduzida a partir do modo como os tópicos estão ligados na parte III do Dom: a sinodalidade leva à discussão da perseverança na verdade, e, daí, ao tratamento da primazia. Finalmente, o "caráter" da primazia, em termos da sua finalidade de servir à unidade, sua origem no modelo fornecido pelo próprio Jesus em sua escolha de um dentre os doze, seu estilo colegial, e sua vulnerabilidade às fraquezas de seu portador parecem, todos, ser abordados no Dom, 46-48. Assim, o texto dá a impressão de ter respondido a todos os assuntos mencionados na resposta oficial Anglicana.

E quanto à reação Católica Romana ao tratamento da primazia pela ARCIC I? As dificuldades Católicas diziam respeito ao que poderia ser considerado como os dois componentes gerais dos ensinamentos do Vaticano I sobre o papado: primazia e infalibilidade. Quanto à primazia, a resposta oficial questionou a declaração da ARCIC I de que, "numa igreja sem comunhão com a Sé Romana, pode não faltar nada do ponto de vista da Igreja Católica Romana, mas ela não pertence à manifestação visível da plena comunhão cristã mantida na Igreja Católica Romana" (AII 12). Ao invés disso, em tal igreja "falta mais do que apenas a manifestação visível da unidade".(14) A ARCIC II parece responder a isso quando afirma, claramente, que "a interdependência mútua de todas as igrejas é essencial à realidade da Igreja como Deus quer que ela seja" (Dom, 37), e que "as exigências da vida da igreja demandam um exercício específico de episcope a serviço de toda a Igreja" (Dom, 46). Por sua própria natureza, a igreja local não é auto-suficiente (Dom, 37). Desse modo, algo mais do que apenas a manifestação visível da unidade está em jogo na questão da comunhão com aquele ministério que serve como ponto de referência para a unidade do todo.

Além disso, a resposta Católica considerou que a ARCIC I não alcança a crença Católica de que "a primazia do Bispo de Roma pertence à estrutura divina da Igreja" e de que "a primazia dos sucessores de Pedro [é] algo positivamente tencionado por Deus e resultante da vontade e da instituição de Jesus Cristo".(15) Em resposta, a ARCIC II repete a ARCIC I, afirmando que o "modelo de aspectos primaciais e conciliares complementares da episcope a serviço da koinonia das igrejas deve ser realizado em nível universal" (grifo meu). A referência ao Novo Testamento destaca a escolha de Pedro pelo próprio Jesus Cristo, enquanto que o texto de Santo Agostinho fala da "preeminência reconhecida de Pedro" e relaciona as palavras proferidas a Pedro sozinho ( "Confio-te"), com os dons concedidos à Igreja como um todo (todos os textos extraídos do Dom, 46). Assim, O Dom da Autoridade parece estar dizendo que o ministério primacial é do esse e não do bene esse da Igreja. É exigido. Além disso, as evidências bíblicas e patrísticas fornecidas pressupõem que a iniciativa de prover a Igreja do que ela precisava partiu do próprio Jesus.

Isso não significa comprometer o texto com uma interpretação fundamentalista das Escrituras ou das origens da Igreja. O conceito de ius divinum pode e deve ser entendido de forma a permitir que ele fique em harmonia com o que quer que possa surgir como resultado confirmado de uma pesquisa histórica corretamente realizada. As considerações recentes, feitas pela Congregação da Doutrina da Fé, sobre a primazia do sucessor de Pedro, admitem um "desenvolvimento doutrinal" e uma "claridade crescente" quanto a esse ministério. Ao mesmo tempo, a Congregação sublinha a continuidade desse desenvolvimento, e enfatiza que a crescente clareza se referia a uma convicção, datada desde a origem da Igreja, de que, "assim como existe uma sucessão aos apóstolos no ministério dos bispos, assim também o ministério da unidade, confiado a Pedro, pertence à estrutura perene da Igreja de Cristo, e essa sucessão está ligada à sé de seu martírio".(16) Afirmando sua necessidade e referindo-se a textos bíblicos e patrísticos que falam das palavras de Jesus proferidas especificamente a Pedro, escolhendo-o para um papel que dizia respeito à Igreja como um todo, num chamado para exercer os poderes confiados ao todo, a ARCIC II parece afirmar, substancialmente, o que a Congregação também afirma quanto ao fundamento da primazia na vontade de Cristo para com a Igreja. Compreensivelmente, a discussão da Congregação sobre a primazia é muito mais extensa, e suas afirmações são mais explícitas. Ainda assim, suponho que a ARCIC poderia declarar sucintamente que "O episcopado e a Primazia, reciprocamente ligados e inseparáveis, são de instituição divina".(17) Com base no que é dito no texto como um todo, essa declaração poderia ser aceitável pelas duas comunidades.

Assim como, após apresentar o exercício sinodal da autoridade pelo colégio de bispos em geral (Dom, 34-40), O Dom da Autoridade prossegue com a questão mais específica de sua autoridade de magistério (Dom, 41-44), também sua discussão de uma primazia universal (Dom, 46) conduz a um parágrafo sobre a autoridade de magistério do primaz (Dom, 47). O texto contempla claramente a possibilidade de "definição solene pronunciada da cátedra de Pedro", frase obviamente inspirada pela locução latina ex cathedra (da cadeira). O parágrafo 47, de modo semelhante à Pastor aeternus, do Vaticano I, afirma que esse poder de ensinar deriva, e está, de certa forma, incluído no ministério da primazia: "A recepção da primazia do Bispo de Roma acarreta o reconhecimento desse ministério específico do primaz universal".(18) Parece que a intenção primeira desse parágrafo é antecipar e evitar aquelas "dificuldades e mal-entendidos" que surgiram em torno desse ministério particular de discernimento da verdade.

Qualquer um familiarizado com o Vaticano I lembrará a famosa relatio do Bispo Vincent Gasser, porta-voz da Deputação de fide do concílio, proferida em 11 de julho de 1870, discurso este citado em quatro notas do parágrafo principal do Vaticano II sobre autoridade de magistério e infalibilidade (Lumen gentium 25)! O Bispo Gasser tentou aplacar os temores de alguns bispos Católicos de que a definição da infalibilidade papal estabeleceria o Papa como uma autoridade que poderia impor à Igreja toda uma doutrina solenemente definida com base apenas em sua decisão arbitrária. O argumento de Gasser dependia da interpretação de três adjetivos: pessoal, separada e absoluta. Em que sentido a infalibilidade papal pode ser qualificada por estes adjetivos? Quanto ao terceiro, Gasser admite, abertamente, que (são suas palavras) "em nenhum sentido a infalibilidade papal é absoluta, porque infalibilidade absoluta pertence a Deus somente...".(19) Em que sentido pessoal? "Na verdade, diz-se que a infalibilidade é pessoal para que, assim, seja excluída uma distinção entre a Sé e o que ocupa a Sé. ... defendemos a infalibilidade pessoal do Pontífice Romano porquanto essa prerrogativa pertence, pela promessa de Cristo, a cada um e todo sucessor legítimo de Pedro em sua cátedra".(20) Gasser esclarece que o adjetivo "pessoal" deve ser limitado, com precisão, ao papa, na medida em que ele é "uma pessoa pública, ou seja, como chefe da Igreja em sua relação com a Igreja Universal".(21) O bispo nega explicitamente que o papa seja infalível quando considerado como uma pessoa ou um mestre particular.(22) Em que sentido a infalibilidade do papa é separada?

Pode ser chamada de separada ou distinta, porque se fundamenta em uma promessa especial de Cristo e, portanto, em uma assistência especial do Espírito Santo, diferente daquela de que todo o corpo da Igreja docente se beneficia quando unida com sua cabeça.(23)

A "Igreja docente", segundo Gasser, deve ser entendida a partir da distinção, prevalecente no período, entre ecclesia docens e ecclesia discens. Assim, significa o colégio de bispos. Por causa dessa estrutura operante, ele teria sido incapaz de reconhecer uma "participação" na autoridade doutrinária da Igreja por parte do laicato. Tal limitação não precisa ser um problema para nós atualmente, quando uma doutrina e uma teologia muito mais adequadas do laicato demonstraram ter uma participação única na missão profética de Jesus. Mas o texto de Gasser, aqui, ajuda a captar o modo limitado como os bispos do Vaticano I entenderam ser "separado" o magistério do Bispo de Roma. Quando comparada ao do colégio de bispos, a relação do primaz com a Igreja toda é "totalmente especial":

  • a essa condição especial e distinta corresponde um privilégio especial e distinto. Portanto, nesse sentido, uma infalibilidade separada pertence ao Pontífice Romano. Mas, ao dizer isso, não separamos o Pontífice de sua união requerida com a Igreja. Pois o Papa é infalível apenas quando, exercendo sua função como mestre de todos os Cristãos e, representando, portanto, toda a Igreja, ele julga e define o que deve ser acreditado ou rejeitado por Todos. ... Certamente, não separamos o Papa, no ato de definir, da cooperação e do consentimento da Igreja, pelo menos no sentido de não excluir essa cooperação e esse consentimento da Igreja.

  • ... E, assim, não excluímos a cooperação da Igreja porque a infalibilidade do Pontífice Romano não lhe é conferida como inspiração ou revelação mas através de uma assistência divina. Portanto, o Papa, por razão de seu ofício e da gravidade da matéria, utiliza meios adequados para discernir corretamente e enunciar apropriadamente a verdade. Tais meios são concílios, ou o auxílio de bispos, cardeais, teólogos, etc. Na verdade, os meios diferem de acordo com a diversidade de situações, e devemos acreditar piedosamente que, na assistência divina prometida por Cristo a Pedro e seus sucessores, está contida, simultaneamente, uma promessa sobre os meios necessários e adequados para que seja feito um julgamento pontifical infalível.

Finalmente, não separamos o Papa, nem em grau mínimo, do consentimento da Igreja, na medida em que esse consentimento não é declarado como condição antecedente ou conseqüente.(24)

Esta extensa citação do Bispo Gasser mostra-o tentando explicar o senso restrito em que a infalibilidade papal, definida pelo Vaticano I, era "separada" da Igreja, e os muitos sentidos em que ela não deve ser entendida como separada. Ele estava procurando convencer os bispos Católicos Romanos que haviam expressado sua preocupação com essa autoridade doutrinária especial do primaz.

Os comentários de Gasser são especialmente úteis para interpretar corretamente a intenção do parágrafo 47 de O Dom da Autoridade. Esse parágrafo parece se referir, basicamente, à mesma preocupação. Enquanto a autoridade doutrinária do primaz universal, ao declarar a fé autêntica de toda a Igreja, é "um exercício particular [grifo meu] do chamado e da responsabilidade do corpo de bispos de ensinar e afirmar a fé" e, como tal, é único, entretanto, é exercido "dentro do colégio... e não fora dele", expressando apenas a fé de toda a Igreja e das igrejas locais. É fiel à Escritura e à Tradição, à "fé proclamada desde o início".

A ARCIC I havia expressado a preocupação dos Anglicanos com a infalibilidade papal, principalmente no que concerne às definições dos dogmas Marianos, em 1854 e 1950, que, segundo a resposta Católica Romana oficial, "apontam para a necessidade de mais estudo a ser desenvolvido sobre o ministério petrino na Igreja".(25) Esta preocupação Anglicana não aparece mais em O Dom da Autoridade, da ARCIC II. Em seu lugar, é feita uma tentativa de sublinhar a unidade entre o papa, quando em exercício daquela autoridade doutrinal única de definir solenemente uma doutrina, e a Igreja como um todo. Esta tentativa tem grandes afinidades com o discurso do Bispo Gasser, que conseguiu aplacar temores semelhantes dos bispos Católicos Romanos no Vaticano I.

Podem as afirmações da ARCIC II, relacionando esses ensinamentos especiais por parte do primaz à fé de toda a Igreja, ser interpretadas como fazer da aprovação de toda a Igreja a condição jurídica que garantiria tais ensinamentos, de modo que, na ausência de uma unanimidade universal anterior ou de uma recepção conseqüente, não pudesse ocorrer uma definição? Em minha opinião, interpretar a ARCIC II dessa forma seria compreender erroneamente o texto. A maior evidência disso é o modo como o texto compreende magistério e recepção no parágrafo 43. Ali, as definições ganham sua autoridade não da recepção, mas da verdade divina, da autoridade de Cristo, a Cabeça que age através do "ofício específico da pessoa ou pessoas que as proclamam". O Bispo Gasser estava argumentando contra o ponto de vista Galicano de que as ações do primaz eram absolutamente condicionadas por sua recepção positiva. Procurou convencer os bispos que queriam garantir que fosse dada consideração suficiente à visão da Igreja como um todo, tal como expressa especialmente no parecer dos bispos, toda vez que o papa propusesse qualquer ensinamento de forma definitiva. Ele escreve:

É nesta necessidade estrita e absoluta que reside toda a diferença entre nós. A diferença não está na oportunidade, ou em alguma necessidade relativa que deva ser submetida totalmente ao julgamento do Pontífice Romano, conforme ele determinar de acordo com as circunstâncias.(26)

O Bispo Gasser conseguiu convencer os bispos que se preocupavam com essa questão de que a insistência Galicana na recepção, como condição absoluta para um ensinamento definitivo, eliminaria efetivamente esse ensinamento. Por essa razão, o Vaticano I acrescentou a sentença de que as definições papais são irreformáveis "em si, e não por causa do consentimento da Igreja". Só nesse contexto antigalicano esta sentença pode ser compreendida corretamente, como as palavras citadas de Gasser esclarecem abundantemente. Gasser conseguiu aplacar os temores de alguns bispos. A ARCIC II também pretende evitar mal-entendidos sobre o ensinamento especial do primaz em relação ao todo. Parece repetir temas presentes na tão importante intervenção do Bispo Gasser no Vaticano I. Espera-se que também consiga aplacar os temores de Cristãos que se debatem com a questão sobre como a autoridade única de magistério do primaz pode ser considerada integrada na fé da comunidade como um todo, não ameaçando-a, como foi ameaçada pelos falsos mestres, tão freqüentemente mencionados no Novo Testamento (cf. At 20.29-31; Ef 4.14; várias passagens nas cartas pastorais e nas cartas joaninas), mas, de fato, confirmando-a (cf. Lc 22.31).

A seção sobre primazia conclui concordando com as declarações do Papa João Paulo sobre a fragilidade humana dos ministros Cristãos, incluindo aquele que exerce o ministério de Pedro. Daí, o texto passa para uma subdivisão final sobre disciplina (Dom, 49). Talvez esse parágrafo possa fornecer uma descrição mais clara do que quer dizer a palavra "disciplina", pois ela tem uma variedade de conotações. Está o texto, aqui, procurando tecer mais comentários sobre o que Autoridade na Igreja: Elucidação 5 denominou "autoridade de um bispo [aqui, de um primaz], em certas circunstâncias, para exigir anuência"?(27) Tal interpretação parece correta à luz do resto da Elucidação 5, que fala da possível "necessidade de ação disciplinar". De qualquer forma, o texto presente propõe um reconhecimento equilibrado, tanto do dever individual de seguir a direção apontada pela comunidade toda nas pessoas dos que exercem a autoridade, quanto do dever dos investidos de autoridade de respeitar a consciência daqueles aos quais são chamados a servir. Esse último aspecto não deve ser mal interpretado como cegueira em relação ao fato de que a consciência é formada dentro da comunidade, ponto este explicitamente reconhecido em Dom, 13.