A g n u s D e i

NÃO É TRADIÇÃO O QUE A DOUTRINA CATÓLICA ENTENDE SER?
Autor: Carlos Ramalhete
Tradução: José Fernandes Vidal

Recebi este ensaio escrito por um pregador protestante (Mr. Jason) contra os Apologistas Católicos:

    Comparando as Referências à "Tradição" com a Doutrina Católica Romana

    Embora a maioria das referências à "tradição" no Novo Testamento sejam negativas (Mt 15,1-14, Gál 1,14, Col 2,8), há ocasionais referências positivas (2Tess 2,15), e muitos dos Padres da Igreja freqüentemente se referiram à "tradição" de modo positivo. Os apologistas católicos utilizam essas passagens das Escrituras e dos escritos dos Padres da Igreja para defender que essas referências positivas à "tradição" correspondem à Doutrina Católica Romana, já que doutrinas como a da Imaculada Conceição, das Indulgências e da Confissão aos Padres, não estão nas Escrituras e nos primitivos documentos pós-apostólicos. Os apologistas católicos argumentam que tais doutrinas são "tradições" não escritas dos primeiros Cristãos... Contudo, a verdade é que essa "tradição" não pode ser comparada com "a tradição Católica Romana". Não existe evidência que Paulo, em 2Tess 2,15, estava se referindo a doutrinas tais como a Infalibilidade Papal, a Assunção de Maria e as Indulgências. Por tudo o que sabemos, o que Paulo falou aos Tessalonicenses poderia ter sido escrito em qualquer outra parte. Não existe razão para concluir que aquilo a que Paulo se referia em 2Tess 2,15 fosse um corpo de doutrinas distinto, não escritas em algum outro lugar, e que teria sido confiado à hierarquia Católica Romana. Homens como Irineu e Basílio se referiram à "tradição", mas definiram essa "tradição" e não era a Católica Romana. Muitos dos Padres da Igreja viam a "tradição" como algo de autoridade secundária, abaixo da autoridade das Escrituras. Ninguém nos primeiros séculos do Cristianismo definiu "tradição" como fez a Igreja Católica Romana. Sempre se assegure de como a "tradição" em questão está sendo definida.

De acordo com Mr. Jason, Tradição não é o que a Doutrina Católica entende ser, porque:

  • A maioria das referências à "tradição" no Novo Testamento são negativas.

  • Não há prova de que aquilo que São Paulo queria dizer aos Tessalonicenses não estivesse escrito em algum outro lugar nas Escrituras, em vez de ter sido confiado à Igreja como Tradição Oral.

  • A doutrina da Imaculada Conceição não se encontra nas Escrituras nem nos escritos dos Padres da Igreja.

  • A doutrina da Confissão ao Padre não se encontra nas Escrituras nem nos escritos dos Padres da Igreja.

  • A doutrina das Indulgências não se encontra nas Escrituras nem nos escritos dos Padres da Igreja.

  • Muitos dos Padres da Igreja viam a Tradição como algo de autoridade secundária, abaixo da autoridade das Escrituras.

Muito bem... Mr. Jason está errado porque parte de um ponto de vista completamente errado: ele acredita na Sola Scriptura, que também não está referida na Bíblia.

Ele explica que as referências negativas do Novo Testamento à tradição não se aplica à Tradição Cristã (Apostólica). Vejamos, então, uma por uma tais afirmações (infelizmente não tenho disponível uma Bíblia em Inglês. Se alguém tem as citações da Bíblia - Versão Douay-Rheims, seria ótimo que, por favor, me mandasse):

  • Mt 15,1-14:

    Aqui, Nosso Senhor censura os Fariseus por seguir falsas tradições. Eles o interrogam por que não segue a "tradicionem seniorum" (=tradição dos antigos). Jesus responde que eles estavam quebrando a Lei de Deus para seguir suas próprias tradições (="tradicionem vestram"). Diz-lhes que são cegos guiados por cegos (="caeci sunt, et duces caecorum"), são cegos e condutores de cegos. Daí, não é a Tradição; Ele está se referindo apenas a tradições humanas (como a Sola Scriptura, Sola Fides etc.).

  • Gálatas 1,14:

    Aqui São Paulo diz que era um seguidor da tradição farisaica de seus antepassados (="abundantius aemulator existens paternaram mearum traditionum": "eu era o mais acirrado seguidor das tradições de meus pais"). De novo, nada tem a ver com a verdadeira Tradição Cristã ou mesmo Judaica (mais adiante explicarei porque nem mesmo da verdadeira Tradição Judaica). Além disso, quando Paulo abandonou as falsas tradições humanas de seus antepassados, foi a Jerusalém para ver Pedro, depois despendeu algum tempo no deserto (cf. Gál 1,18). Após ter iniciado sua pregação aos pagãos, voltou ainda a Jerusalém para ver os Apóstolos e conferir se o Evangelhos que estava pregando estava correto, temeroso de que pudesse ter trabalhado em vão (cf. Gál 2,2).

  • Col 2,8:

    Uma vez mais São Paulo fala sobre os perigos de seguir as tradições enganosas dos homens (como a Sola Scriptura, Sola Fides, etc): "inanem fallacian secundum traditionem hominum..." (=a falácia vã segundo a tradição dos homens).

    Assim, vemos aqui como Mr.Jason usou mal as Escrituras, confundindo deliberadamente a tradição farisaica (humana) com a tradição Apostólica.

A noção da verdadeira Tradição, por outro lado, é muito diferente da que retrata Mr. Jason. A Fé Judaica teve sempre por suposta que a Tradição Oral era no mínimo tão importante como a Tradição Escrita*. E os Apóstolos acreditavam que a Tradição Judaica era correta... Eis porque Nosso Senhor censurou os Fariseus! Ele chegou ao ponto de dizer-lhes que a "tradição dos antepassados" eram "tradições dos homens" (não a ensinada Tradição Divina).

Em Mt 2,23, São Mateus nos diz que Nosso Senhor viveu em Nazaré, cumprindo assim o que tinha sido dito pelos Profetas (="quod dictum est per prophetas"): que o Cristo seria chamado Nazareno. Isso não foi escrito por nenhum profeta, não consta das Escrituras... Era verdadeira Tradição Oral Judaica!

Nos tempos de Nosso Senhor, havia três grupos principais no Judaísmo:

  • Fariseus, que aceitavam a Tradição Oral e também, algumas vezes, lhe adicionavam algumas coisas humanas, "pondo uma barreira ao redor da Lei", para evitar quebras acidentais da Lei. Por exemplo, como a Lei estatuía que a carne de um animal não podia ser cozinhada em seu próprio leite, os Fariseus proibiam comer qualquer tipo de carne junto com qualquer produto derivado do leite, ou usar o mesmo prato ou panela para a carne e os produtos do leite etc.

  • Saduceus, que não aceitavam a Tradição Oral.

  • Essênios, que tinham uma tradição humana especial deles.

Nosso Senhor ensinou aos discípulos a seguir o que os Fariseus pregavam (e não seguir o que faziam porque não obedeciam à mesma verdadeira Tradição que pregavam, cf. Mt 23,2-3). O mais interessante foi que Jesus expôs a necessidade dessa obediência, dizendo aos discípulos que os Fariseus estavam pregando ex-cathedra (da Cátedra de Moisés, "super cathedram Moysi"), legitimamente.

Também em 1Cor 10,4, São Paulo nos conta uma interessante história que mostra como a Tradição Oral e a Escrita estavam situadas no mesmo nível: escrevendo sobre os sentidos figurados do Antigo Testamento, tomou um exemplo que não está escrito nele: a rocha da qual manava água (Ex 17,1-7; Num 20,2-13) e que acompanhava os Judeus no deserto. Não há nada nas Escrituras sobre uma pedra andando junto com os judeus! E o que é muito mais importante: o Novo Testamento faz uma prefiguração nessa exposição, pois ela prefigura Nosso Senhor ("petram autem erat Christus", a rocha era Cristo)!

Também quando São Judas nos diz que São Miguel não quis julgar a blasfêmia de Satanás, quando estavam lutando pelo corpo de Moisés, mas deixou-o ao Julgamento de Deus ("non est ausus iudicium inferre blasphemiae, sed dicit: Imperet tibi Dominus", não ousou julgar a blasfêmia, mas disse: Cabe a Ti, Senhor), ele estava também citando a tradição Oral. Ou Mr. Jason consegue encontrar esta luta na Bíblia?

Também São Paulo, em 2Tim 3,8, informa-nos os nomes daqueles que resistiram a Moisés em Ex 7,8-10 (Iannes e Mambres), que ele poderia ter tomado conhecimento somente da Tradição Oral.

Assim podemos facilmente perceber como os Apóstolos aceitavam a verdadeira (não humana) Tradição Oral Judaica.

É igualmente fácil de ver que eles também ensinavam oralmente, mesmo porque passaram quase 400 anos antes de se fechar o cânon completo da Bíblia, pela Igreja Católica.

Há evidências da Tradição Oral que devia ser guardada em 2Tess 3-6; 2Tim 1, 13; 1Cor 11,2; Gál 1,14.

São Paulo diz aos Tessalonicenses para acreditarem no que aprenderam não somente em suas cartas, mas também naquilo que ele lhes ensinara oralmente (em 2Tess 2,5).

A Palavra de Deus é ouvida, não lida, em 1Tessalonicenses 2-13. São Paulo não entrou em detalhes em suas cartas porque já lhes tinha explicado oralmente, cf. 2Tess 2,5ss.

Timóteo é citado como guarda do depósito ("depositum custodi") em 1Tim 6,20 e 2Tim 1,14. A palavra grega para "depósito" era "paratheke". Em 2Tim 2,2, São Paulo diz a Timóteo para acreditar no que dele ouvira (de São Paulo) como ensinamento público a homens fiéis, capazes de instruírem a outros. A palavra usada por São Paulo para expressar este ato de ensinar é "parathou" (a mesma raiz de "paratheke"), significando que Timóteo devia entregar o depósito a outros homens, que ensinariam ainda a outros.

Vamos agora dar resposta aos argumentos de Mr. Jason:

  1. Réplica ao argumento 1: "a maioria das referências à tradição no N.T. são negativas":

    - Não procede, pois ele fez referências à tradição judaica humana e incorre em erro naquelas referências à Tradição Apostólica, esquecendo também o uso atual da Tradição Oral no ensinamento Apostólico e a importância dada por eles à transmissão dessa tradição (veja acima).

  2. Réplica ao argumento 2: "Não há prova de que São Paulo tenha escrito aos Tessalonicenses o que não se encontrava escrito em nenhum lugar nas Escrituras, em vez de ter confiado à Igreja uma Tradição Oral":

    - Falso. Há provas históricas. As Igrejas que perderam contato com a Sé de Pedro nos primeiros séculos (Etíopes, Nestorianos orientais etc.) ainda conservaram muitas doutrinas ensinadas pela Igreja não explicitadas na Bíblia. Certamente, eles guardaram muitas tradições humanas falsas na passagem desse tempo porque não mantiveram unidade com Pedro. Mas, não obstante isso, guardaram coisas que não poderiam ter sido criadas por eles mesmos se não existisse uma Tradição Oral parcialmente conservada entre eles.

  3. Réplica ao argumento 3: "A doutrina da Imaculada Conceição não consta nas Escrituras nem nos escritos dos Padres da Igreja":

    - Falso, porque se encontra nas Escrituras, embora não explicitamente (assim como também a Trindade). Em Lc 1,28, São Gabriel diz à Nossa Senhora que ela é "gratia plena" (Cheia de Graça). Como ela não tinha sido batizada e a Graça é obtida mediante o Batismo, o único meio de ser cheia de Graça era através de uma Conceição Imaculada.

    Como Mr. Jason não acredita no testemunho dos Padres da Igreja mas sim na tradição humana da Sola Scriptura (uma invenção do século XVI), não há necessidade de gastar tempo citando os Padres da Igreja.

  4. Réplica ao argumento 4: "A doutrina da Confissão aos Padres não consta nas Escrituras, nem nos escritos dos Padres da Igreja":

    - Falso. Encontra-se em Jo 20,23, 2Cor 5,18-20, At 19,18 e Tg 5, 16.

    Em Jo 20,23, Nosso Senhor diz aos Apóstolos (e somente aos Apóstolos), depois de sua Ressurreição, que os pecados que eles perdoarem serão perdoados, e aqueles que não perdoarem, não serão perdoados. Isso implica dizer que era necessário um ministério humano para o perdão dos pecados, e que esse ministério humano era um dos que cabiam aos Apóstolos (ou, certamente, a alguém que recebesse a sucessão dos Apóstolos: um padre).

    Em 2Cor 5,18-20, São Paulo lembra-nos que os ministérios humanos eram necessários para o perdão dos pecados ("dedit nobis ministerium reconciliationis" / "posuit in nobis verbum reconciliationis", deu-nos um ministério de reconciliação / pôs em nós a palavra da reconciliação), embora dizendo que os pecados não são perdoados pela pessoa do ministério, mas por Cristo, na Pessoa do qual o ministro age ("pro Christo ergo legatione fungimur", exercemos, portanto, uma delegação por Cristo).

    Em At 19,18, vemos que aqueles que acreditaram foram à Confissão quando souberam da conversão de São Paulo. Observe-se que não eram pessoas que se converteram por causa da conversão de São Paulo, mas pessoas que já tinham a Fé ("credentium", crentes, e não "convertidos"), movidos pela maravilhosa conversão, foram à Confissão.

    São Tiago (5,16) também nos fala da necessidade dos padres não esquecerem de se confessar, procurando seus companheiros padres para confessar seus pecados (e não "confessar a Deus", observem): "Confitemini ergo alterutrum peccata vestra", confessai-vos, portanto, um ao outro os vossos pecados.

    Como Mr. Jason não acredita no testemunho dos Padres da Igreja mas sim na tradição humana da Sola Scriptura (uma invenção do século XVI), não há necessidade de gastar tempo citando os Padres da Igreja.

  5. Réplica ao argumento 5: "A doutrina das Indulgências não consta nas Escrituras nem nos escritos dos Padres da Igreja":

    - Igualmente falso. Para compreendê-las, necessitamos compreender o que são Indulgências. Quando cometemos um pecado mortal (em outras palavras, quando pecamos consciente e deliberadamente em matéria grave), sofremos duas consequências: (1) a consequência eterna: a morte de nossa alma (eis porque o Batismo e a Confissão são chamados "Sacramentos dos mortos"); e (2) a consequência temporal.

    Pecados veniais têm apenas a consequência temporal que nos afasta da Graça de Deus e a torna mais difícil de ser aceita. Indulgências nada mais são do que preces e boas obras dos fiéis que a Igreja usa para ajudá-los a praticar obras que os indulgenciam.

    Certamente, como elas apenas ajudam a purgar-nos das consequências temporais de nossos pecados, somente podem ser recebidas se já nos confessamos e, assim, fomos perdoados das consequências eternas de algum pecado mortal.

    São João nos explica a diferença entre os pecados mortais e os veniais, e que, de fato, as preces dos fiéis não podem purgar os pecados daqueles que estão em estado de pecado mortal, em Jo 5,16-17.

    São Paulo nos diz que as indulgências devem ser concedidas àqueles que necessitam delas, em 2Cor 2,6-10.

    Como Mr. Jason não pode acredita nos Padres da Igreja mas sim na tradição humana da Sola Scriptura (invenção do século XVI), não é necessário gastar tempo citando os Padres da Igreja.

  6. Réplica ao argumento 6: "Muitos Padres da Igreja viam a Tradição como alguma coisa de autoridade secundária, abaixo da autoridade das Escrituras":

    - Mr. Jason está argüindo contra ele mesmo. A maioria dos Padres da Igreja viveram antes do cânon da Bíblia ter sido determinado, no fim do século IV. A maioria do que Mr. Jason aceitaria de boa vontade como Escrituras não tinha outro argumento para si mesmo, naquele tempo, senão de pertencer à Tradição. Quando se reportavam às Escrituras, os Padres da Igreja podiam estar se referindo seja ao Antigo Testamento, seja (menos provável) aos livros ainda não reconhecidos (não canonizados) do Novo Testamento. O Novo Testamento, todavia, não tinha ainda sua lista encerrada.

    Há também um outro ponto muito importante: de qual "tradição" se refere? Tradição com "t" minúsculo ou com "T" maiúsculo? Os Padres da Igreja foram tão firmes quanto Nosso Senhor quando começaram a censurar aqueles que seguiam tradições humanas (como a Sola Scriptura ou a Sola Fides), mas estavam muitíssimo conscientes de que a Tradição Apostólica podia ser conservada, e, quando aparecia uma diferença entre a Tradição de Roma e a tradição de outra Sé, a de Roma prevalecia sobre esta.

    E de um outro ponto ainda parece que Mr. Jason não tomou conhecimento: os Padres da Igreja consideravam a Tradição como autoridade mesmo que, como Mr. Jason julga, eles considerassem a Tradição como algo de autoridade secundária. Mas nunca, nesse caso, a Sola Scriptura (somente a Bíblia)!


*Nota do Site Agnus Dei (a partir de comentário gentilmente enviado por Cledson Ramos Bezerra): A propósito, observa a enciclopédia judaica "Vallentines - Jewish Encyclopedia", em seu capítulo sobre "Heresias e Heréticos" (p. 279):
  • "O termo herético, em conexão com o Judaísmo, pode convenientemente ser aplicado a qualquer um que não aceita os dois Torahs: o Escrito e o Oral, nos quais estão contidos todo o ensinamento judaico. Além dos idólatras dos tempos antigos, o Talmude reconhece quatro tipos principais de heréticos, os quais contudo, não estão cuidadosamente distintos: (1) os Samaritanos, que aceitavam apenas o Pentateuco e o livro de Josué como inspirados, rejeitando o resto das Escrituras; (2) os Saduceus, que rejeitavam a Lei Oral; (3) os Minim, os Judeus-Cristãos (que se convertiam da Sinagoga para a Igreja cristã) e os Gnósticos, que desejavam suplementar o Torah de Moisés com uma outra Torah de autoridade superior; (4) os Apikorsim, que negavam a origem divina da Torah. A heresia Karaite, a qual apareceu mais tarde, foi essencialmente a mesma dos Saduceus".