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LIBERDADE
José Fernandes Vidal

Caríssimo leitor:

Esqueça que você não costuma ou não aprecia ler poesias. Você vai se deparar com uma aula de teologia, fácil de se entender, sobre um dos problemas mais difíceis do Cristianismo, da própria crença em Deus, Pai Todo Poderoso e de seu amor por nós homens.

Quem já não pensou na razão por que, se existe um Deus bondoso, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, existe tanta maldade no mundo?

Quem já não pensou qual a fruta que comemos no Paraíso para termos descido tão profundamente ao Pecado?

Quem já não pensou em que sendo Deus o Amor, sendo Deus a Justiça, como pode ser simultaneamente a Misericórdia?

Leia, amigo, o que tem o poeta francês Charles Péguy (1873-1914) a dizer sobre isso em seu Poema. Sua intuição poética, sua intuição religiosa nos faz meditar sobre tais problemas, convence-nos com sua eloquência.

Péguy não estudou teologia. Era um católico de nascimento mas só voltou à casa do Pai em 1908, 6 anos antes de sua morte que ocorreu no Front da Guerra de 1914. Desde então sua poesia se transformou numa prece apaixonada. E, aqui, numa meditação emocionante.

Veja se você lendo o Poema "Liberdade" encontrará respostas às perguntas acima feitas. Estão evidentes e, às vezes, subentendidas. Eu não vou tirar o seu esforço para encontrá-las. Encontre-as você mesmo. Você está capacitado para isso, e as palavras do poeta atingirão o seu íntimo muitíssimo mais eloqüentemente.

Perdão, se a tradução não corresponder à mensagem do autor.

Diz Deus:
Quando se ama alguém, ama-se como ele é.
Só eu sou perfeito, eu somente.
Por isso, talvez, é que sei o que é a perfeição,
E, assim, peço menos perfeição dessa pobre gente.
Sei, sim, quão difícil é,
Quantas vezes penam em suas provas.
Desejo e sou tentado a segurá-los por baixo,
A com minhas grandes mãos sustentá-los
Como um pai que ensina seu filho a nadar
Nas águas correntes do rio
E se divide em ambíguo sentimento.
Se o ampara sempre, se demais o ampara
Ele se fiará nisso, nunca a nadar há de aprender.
Mas se não o segura no exato momento
Essa criança perigosos goles irá beber.
Assim quando os ensino a nadar em suas provas
Sou, sim, dividido em ambíguo sentimento
Pois se os amparo sempre, se os demais amparo,
Nunca aprenderão por si próprios a nadar.
Mas se não os sustento no exato momento,
Pobres crianças, maus goles poderão beber.
Essa, a dificuldade e ela o é enormemente.
Essa é a duplicidade, a ambigüidade do problema.
Pois é preciso que cuidem de si mesmos.
É a regra, regra que é prevalecente, se não,
Onde estaria seu valor?
Não se fariam homens!
Ora, quero-os viris, quero-os homens que por si ganhem
Suas esporas de cavaleiros.
Mas não é preciso que maus goles venham a beber
E mergulhem na ingratidão do pecado.

Diz Deus:
Esse é o mistério da liberdade do homem.
E de minha direção do homem e de sua liberdade.
Se o amparo demais, não é livre, não mais.
Se não o amparo bastante, ponho em risco sua salvação.
Dois bens quase igualmente preciosos, se assim visto:
A salvação apreçada a preço infinito.
Mas que será da salvação que não seja livre?
Qual seu merecimento?
Queremos essa salvação merecida por eles,
Sim, por eles os homens. Procurada por eles.
Em certo sentido que venha deles. Eis o segredo.
Esse, o mistério da liberdade do homem.
Esse, o preço que pomos à liberdade do homem.

Diz Deus:
Porque sou eu mesmo livre,
E os criei à minha imagem e semelhança.
Esse, o mistério; esse, o segredo; esse, o preço:
Preço de toda liberdade.
A liberdade dessa criatura é o reflexo mais lindo,
O mais lindo reflexo que possa haver no mundo
Da Liberdade do Criador.
Eis porque que lhe damos, lhe pomos um preço próprio.
Uma salvação que não fosse livre, que não fosse,
Que não viesse de um homem livre, nada nos diria.
Que é que seria ela, que significaria ela?
Que apreço nos mereceria essa salvação?
Felicidade de escravos, salvação de escravos,
Felicidade cativa, como quereis que nos mereça apreço?
Gostaria alguém de ser amado por escravos?
Se não se trata senão de provar meu poder,
Meu poder não necessita de tais escravos,
Meu poder é bastante conhecido, conhecem-no todos,
Sabem muito bem que sou o Todo Poderoso.
Meu poder resplandece bem demais
Em toda matéria, em todo acontecimento.
Meu poder resplandece bem demais
Nas areias do mar, nos astros do firmamento.
Incontestado, conhecido, resplandece bem demais
Na inanimada criação.
Resplandece bem demais em meu reinado,
No próprio evento do homem em questão.

Diz Deus:
Mas em minha criação animada quis melhor, quis mais.
Infinitamente melhor. Infinitamente mais: quis essa liberdade.
Criei até essa liberdade.
Pois, há distintos graus ante meu trono.
Quando uma vez se soube o que é ser amado livremente,
As submissões não têm mais nenhum sabor.
Todos os cortejos do mundo não valem
A bela e íntegra genuflexão de um homem livre.
Todas as submissões, todas as opressões do mundo não valem
A grandeza da exaltação,
Da bela e íntegra exaltação de uma invocação somente
De um amor que é livre, que se cativa livremente