A g n u s D e i

CHRISTIFIDELES LAICI
João Paulo II
30.12.1988

IV
OS TRABALHADORES DA VINHA DO SENHOR
Bons administradores da multiforme graça de Deus

A variedade das vocações

45. Segundo a parábola evangélica, o « proprietário » chama os trabalhadores para a sua vinha nas várias horas do dia: alguns, ao amanhecer; outros, às nove da manhã; outros ainda, por volta do meio dia e das três da tarde; os últimos, cerca das cinco (cf. Mt 20, 1 ss.). Ao comentar esta página do Evangelho, São Gregório Magno interpreta as várias horas da chamada relacionando-as com as idades da vida: « É possível aplicar a diversidade das horas — escreve ele — às diversas idades do homem. O amanhecer pode certamente representar, nesta nossa interpretação, a infância. A hora tércia, por sua vez, pode entender-se como sendo a adolescência: o sol dirige-se para o alto do céu, isto é, cresce o ardor da idade. A hora sexta é a juventude: o sol está como que no zénite do céu, isto é, nesta idade reforça-se a plenitude do vigor. A idade adulta representa a hora nona, porque, como o sol declina do seu alto, assim esta idade começa a perder o ardor da juventude. A hora undécima é a idade daqueles que se encontram muito avançados nos anos... Os trabalhadores são, portanto, chamados para a vinha em horas diferentes, como a querer significar que à santidade de vida um é chamado durante a infância, um outro na juventude, um outro quando adulto e um outro na idade mais avançada ».(167)

Podemos também tomar e alargar o comentário de São Gregório Magno referindo-o à extraordinária variedade de presenças na Igreja, todas e cada uma chamadas a trabalhar para o advento do Reino de Deus segundo a diversidade de vocações e da situações, carismas e ministérios. Trata-se de uma variedade ligada, não só à idade, mas também à diferença de sexo e à diversidade dos dons, como igualmente às vocações e às condições de vida; é uma variedade que torna mais viva e concreta a riqueza da Igreja.

Jovens, crianças, idosos

Os jovens, esperança da Igreja

46. O Sínodo quis prestar uma atenção especial aos jovens. E justamente. Em tantos países do mundo, eles representam a metade de toda a população e, muitas vezes, a metade numérica do próprio Povo de Deus que vive nesses países. Já sob esse ponto de vista, os jovens constituem uma força excepcional e são um grande desafio para o futuro da Igreja. Nos jovens, efectivamente, a Igreja lê o seu caminho para o futuro que a espera e encontra a imagem e o convite daquela alegre juventude com que o Espírito de Cristo constantemente a enriquece. Nesse sentido, o Concílio definiu os jovens como « esperança da Igreja ».(168)

Na carta que escrevi aos jovens e às jovens do mundo, a 31 de Março de 1985, lê-se: « A Igreja olha para os jovens; antes, a Igreja, de um modo especial, vê-se a si mesma nos jovens, em todos vós e, ao mesmo tempo, em cada uma e em cada um de vós. Foi assim desde o princípio, desde os tempos apostólicos. As palavras de São João na sua Primeira Carta podem dar disso um especial testemunho: «Escrevo a vós, jovens, porque vencestes o maligno. Escrevi-vos a vós, filhinhos, porque conhecestes o Pai... Escrevi-vos a vós, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus habita em vós» (1 Jo 2, 13 ss.)... Na nossa geração, ao fim do segundo milénio depois de Cristo, também a Igreja vê-se a si mesma nos jovens ».(169) P> Os jovens não devem ser considerados simplesmente como o objecto da solicitude pastoral da Igreja: são de facto e devem ser encorajados a ser sujeitos activos, protagonistas da evangelização e artífices da renovação social.(170) A juventude é o tempo de uma descoberta particularmente intensa do próprio « eu » e do próprio « projecto de vida », é o tempo de um crescimento que deve realizar-se « em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens » (Lc 2, 52).

Como disseram os Padres sinodais, « a sensibilidade dos jovens intui profundamente os valores da justiça, da não-violência e da paz. O seu coração está aberto à fraternidade, à amizade e à solidariedade. Deixam-se mobilizar ao máximo em favor das causas que concernem a qualidade da vida e a conservação da natureza. Mas, estão eles também cheios de inquietações, de desilusões, angústias e receios do mundo, para além das tentações próprias do seu estado ».(171)

A Igreja deve reviver o amor de predilecção que Jesus mostrou ao jovem do Evangelho: « Jesus, olhando para ele, amou-o » (Mc 10, 21). Por isso, a Igreja não se cansa de anunciar Jesus Cristo, proclamar o Seu Evangelho como a única e superabundante resposta às mais radicais aspirações dos jovens, como a proposta forte e entusiasta de um seguimento pessoal (« vem e segue-Me» [Mc 10, 21]), que comporta a vivência do amor filial de Jesus pelo Pai e a participação na salvação da humanidade.

A Igreja tem tantas coisas para dizer aos jovens, e os jovens tem tantas coisas a dizer à Igreja. Este diálogo recíproco, que deverá fazer-se com grande cordialidade, clareza e coragem, favorecerá o encontro e o intercâmbio das gerações, e será fonte de riqueza e de juventude para a Igreja e para a sociedade civil. Na sua mensagem aos jovens o Concílio diz: « A Igreja olha para vós com confiança e amor... Ela é a verdadeira juventude do mundo... Olhai para ela e nela encontrareis o rosto de Cristo ».(172)

As crianças e o reino dos céus

47. As crianças são, certamente, o alvo do amor delicado e generoso do Senhor Jesus: a elas reserva a Sua bênção e, ainda mais, assegura-lhes o Reino dos céus (cf. Mt 19, 13-15; Mc 10, 14). Em particular, Jesus exalta o papel activo que as crianças têm no Reino de Deus: são o símbolo eloquente e a esplêndida imagem daquelas condições morais e espirituais que são essenciais para se entrar no Reino de Deus e para viver a sua lógica de total abandono ao Senhor: « Em verdade vos digo: se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no Reino dos céus. Pois quem se tornar pequenino como esta criança será grande no Reino dos céus. E quem acolher uma só destas crianças em Meu nome, acolhe-Me a Mim » (Mt 18, 3-5; cf. Lc 9, 48).

As crianças são a lembrança constante de que a fecundidade missionária da Igreja tem a sua raiz vivificadora, não nos meios e nos merecimentos humanos, mas no dom totalmente gratuito de Deus. A vida de inocência e de graça das crianças, e também os sofrimentos injustos de que são vítimas, são, em virtude da cruz de Cristo, um enriquecimento espiritual para elas e para toda a Igreja: devemos todos tornar mais viva e grata consciência desse facto.

Deve reconhecer-se, além disso, que também à idade da infância e da adolescência se abrem preciosas possibilidades operativas tanto para a edificação da Igreja como para a humanização da sociedade. O que o Concílio diz sobre a presença benéfica e construtiva dos filhos no seio da família « Igreja doméstica »: « Os filhos, como membros vivos da família, também contribuem à sua maneira para a santificação dos pais »,(173) deve repetir-se acerca das crianças em relação à Igreja particular e universal. Já o observava João Gerson, teólogo e educador do século xv, para quem « as crianças e os adolescentes não são por nada uma parte insignificante na Igreja ».(174)

Os idosos e o dom da sabedoria

48. As pessoas idosas, muitas vezes injustamente tidas por inúteis se não mesmo um peso insuportável, lembro que a Igreja lhes pede e delas espera que continuem a sua missão apostólica e missionária, que não só é possível e obrigatória, mas, de certo modo, tornada específica e original também nessa idade.

A Bíblia gosta de apresentar o idoso como o símbolo da pessoa cheia de sabedoria e de temor de Deus (cf. Sir 25, 4-6). Nesse sentido, o « dom » do idoso poderia identificar-se com o de ser, na Igreja e na sociedade, a testemunha da tradição da fé (cf. Sl 44, 2; Ex 12, 26-27), o mestre de vida (cf. Sir 6, 34; 8, 11-12), o obreiro da caridade.

Hoje, o número crescente de idosos nos vários países do mundo e a cessação anticipada da actividade profissional e activa abrem um novo espaço ao trabalho apostólico dos idosos: é um trabalho que deverá ser assumido superando decididamente a tentação de se refugiar nostalgicamente num passado que não volta mais ou de, por motivo das dificuldades encontradas, fugir dos empenhos presentes para o mundo das constantes novidades; e consciencializando-se sempre mais de que a sua função na Igreja e na sociedade não tem absolutamente paragens por razões de idade, mas tão só modalidades novas. Como diz o Salmista: « Até na velhice darão frutos, conservarão a sua seiva e o seu frescor, para anunciar quão justo é o Senhor » (Sl 92, 15-16). Repito o que disse durante a celebração do Jubileu dos Idosos: « A entrada na terceira idade deve considerar-se um privilégio: não apenas porque nem todos têm a sorte de atingir essa meta, mas também e sobretudo porque esse é o tempo das possibilidades concretas de pensar melhor no passado, de conhecer e viver com maior profundidade o mistério pascal, de se tornar, na Igreja, exemplo para todo o Povo de Deus... Apesar da complexidade dos problemas que tendes para resolver, as forças que progressivamente se vão enfraquecendo, e apesar das insuficiências das organizações sociais, os atrasos da legislação oficial, as incompreensões de uma sociedade egoísta, vós não estais nem deveis sentir-vos à margem da vida da Igreja, elementos passivos de um mundo em movimento excessivo, mas sujeitos activos de um período humanamente e espiritualmente fecundo da existência humana. Tendes ainda uma missão para cumprir, um contributo a dar. Segundo o plano divino, cada ser humano é uma vida em crescimento, desde a primeira centelha da existência até ao último respiro ».(175)

Mulheres e homens

49. Os Padres sinodais dedicaram uma atenção especial à condição e ao papel da mulher, num dúplice objectivo: reconhecer e convidar a que todos e mais uma vez reconheçam o indispensável contributo da mulher na edificação da Igreja e no progresso da sociedade; e elaborar, além disso, uma análise mais específica acerca da participação da mulher na vida e na missão da Igreja.

Reportando-se a João XXIII, que vê na tomada de consciência por parte da mulher da própria dignidade e no acesso das mulheres às actividades públicas um sinal dos nossos tempos,(176) os Padres do Sínodo afirmaram repetida e veementemente, perante as mais variadas formas de descriminação e de marginalização a que se submete a mulher pela simples razão de ser mulher, a urgência de defender e de promover a dignidade pessoal da mulher e, portanto, a sua igualdade com o homem.

Se a todos na Igreja e na sociedade pertence esta tarefa, em particular pertence às mulheres, que devem sentir-se empenhadas como protagonistas em primeira linha. Há ainda um enorme esforço a fazer, em muitas partes do mundo e em diversos ambientes, para se destruir aquela injusta e deletéria mentalidade que considera o ser humano como uma coisa, como um objecto de compra e venda, um instrumento do interesse egoísta ou de puro prazer, tanto mais que a primeira vítima dessa mentalidade é precisamente a própria mulher. Pelo contrário, só o claro reconhecimento da dignidade pessoal da mulher constitui o primeiro passo a dar-se para promover a sua plena participação, tanto na vida eclesial como na social e pública. Deve dar-se uma resposta mais ampla e decisiva à exigência feita na Exortação Familiaris consortio acerca das múltiplasdescriminações de que são vítimas as mulheres: « que por parte de todos se empreenda uma acção pastoral específica, mais vigorosa e incisiva, para debelá-las definitivamente, por forma a alcançar a plena estima da imagem de Deus que brilha em todos os seres humanos, nenhum excluído ».(177) Na mesma linha, os Padres sinodais afirmaram: « A Igreja, como expressão da sua missão, deve opor-se firmemente a todas as formas de discriminação e de abuso das mulheres ».(178) E ainda: « A dignidade da mulher, gravemente ferida na opinião pública, deve ser recuperada através do respeito efectivo dos direitos da pessoa humana e da prática da doutrina da Igreja ».(179)

Em particular, sobre a participacão activa e responsável na vida e na missão da Igreja, sublinhe-se como já o Concílio Vaticano II tenha sido deveras explícito em reclamá-lo: « Já que, nos nossos dias, as mulheres tomam cada vez mais parte activa em toda a vida da sociedade, reveste-se de grande importância uma sua mais larga participação nos vários campos do apostolado da Igreja ».(180)

A consciência de que a mulher, com os dons e as funções que lhe são próprias, tem uma vocação específica própria cresceu e aprofundou-se no período pós — conciliar, encontrando a sua inspiração mais original no Evangelho e na história da Igreja. Para o crente, com efeito, o Evangelho, isto é, a palavra e o exemplo de Jesus Cristo, continua a ser o ponto de referência necessário e decisivo: e é deveras fecundo e inovador também para o actual momento histórico.

Embora não tendo sido chamadas para o apostolado próprio dos Doze e, portanto, para o sacerdócio ministerial, muitas mulheres acompanham Jesus no Seu ministério e dão assistência ao grupo dos Apóstolos (cfr. Lc 8, 2-3); estão presentes ao pé da Cruz (Lc 23, 49); assistem à sepultura de Jesus (cfr. Lc 23, 55) e, na madrugada de Páscoa, recebem e transmitem o anúncio da ressurreição (cfr. Lc 24, 1-10); rezam com os Apóstolos no Cenáculo à espera do Pentecostes (Act 1, 14).

Na peugada do Evangelho, a Igreja das origens diferenciou-se da cultura do tempo e confia à mulher tarefas ligadas à evangelização. Nas suas Cartas, o apóstolo Paulo cita, até pelo nome, numerosas mulheres pelas suas variadas funções no seio e ao serviço das primeiras comunidades eclesiais (cfr. Rom 16, 1-15; Fil 4, 2-3; Col 4, 15 e 1 Cor 11, 5; 1 Tim 5, 16). « Se o testemunho dos Apóstolos fundamenta a Igreja — disse Paulo VI — o das mulheres contribui para alimentar a fé das comunidades cristãs ».(181)

E como nas origens, assim na evolução sucessiva, a Igreja teve sempre, mesmo se de modos diferentes e com diversas acentuações, mulheres que desempenharam um papel, por vezes decisivo, e realizaram tarefas de considerável valor para a própria Igreja. É uma história de imensa operosidade, o mais das vezes humilde e escondida, mas nem por isso menos decisiva para o crescimento e para a santidade da Igreja. É necessário que essa história continue e, mesmo, se alargue e intensifique perante a crescente e universal consciência da dignidade pessoal da mulher e da sua vocação, bem como perante a urgência de uma « nova evangelização » e de uma maior « humanização » das relações sociais.

Recolhendo a herança do Concílio Vaticano II, onde se reflecte a mensagem do Evangelho e da história da Igreja, os Padres do Sínodo formularam, entre outras, esta clara « recomendação »: « É necessário que a Igreja, pela sua vida e pela sua missão, reconheça todos os dons das mulheres e dos homens e os traduza em prática ».(182) E ainda: « Este Sínodo proclama que a Igreja exige o reconhecimento e a utilização de todos esses dons, experiências e aptidões dos homens e das mulheres para que a sua missão se torne mais eficaz (cfr. Congregação da Doutrina da Fé, Instructio de libertate christiana et liberatione, 72) ».(183)

Fundamentos antropológicos e teológicos

50. A condição para assegurar a justa presença da mulher na Igreja e na sociedade é a análise mais penetrante e mais cuidada dos fundamentos antropológicos da condicão masculina e feminina, de forma a determinar a identidade pessoal própria da mulher na sua relação de diversidade e de recíproca complementariedade com o homem, não só no que se refere às posições que deve manter e às funções que deve desempenhar, mas também e mais profundamente no que concerne a sua estrutura e o seu significado pessoal. Os Padres sinodais sentiram vivamente essa exigência ao afirmarem que « os fundamentos antropológicos e teológicos precisam ser estudados a fundo em vista da solução dos problemas relativos ao verdadeiro significado e à dignidade de ambos os sexos ».(184)

Empenhada na reflexão sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da condição feminina, a Igreja intervém no processo histórico dos vários movimentos de promoção da mulher e, descendo às próprias raízes do seu ser pessoal, dá-lhe o seu mais precioso contributo. Mas, antes e sobretudo, a Igreja entende com isso obedecer a Deus que, ao criar o homem « à Sua imagem », « homem e mulher os criou » (Gn 1, 27); e assim entende responder à chamada de Deus que a convida a conhecer, a admirar e a viver o Seu desígnio. É um desígnio que foi « no princípio » indelevelmente impresso no próprio ser da pessoa humana — homem e mulher — e, portanto, nas suas estruturas significativas e nos seus dinamismos profundos. É precisamente esse desígnio, sapientíssimo e amoroso, que deve ser explorado em toda a riqueza do seu conteúdo: é a riqueza que desde o « princípio » se veio progressivamente manifestando e actuando ao longo de toda a história da salvação e que culminou na « plenitude do tempo », quando « Deus mandou o Seu Filho, nascido de mulher » (Gal 4, 4). Essa « plenitude » continua na história: a leitura do desígnio de Deus acerca da mulher é feita continuamente e deverá continuar a fazer-se na fé da Igreja, graças também à vida que tantas mulheres cristãs viveram. Sem esquecer o contributo que podem dar as várias ciências humanas e as diferentes culturas: estas, graças a um discernimento iluminado, poderão ajudar a intuir e a definir os valores e as exigências que pertencem à essência perene da mulher e os que estão ligados à evolução histórica das próprias culturas. Como nos recorda o Concílio Vaticano II, « a Igreja afirma que por baixo de todas as mudanças há muita coisa que não muda, por ter o seu fundamento último em Cristo, que é sempre o mesmo: ontem, hoje e nos séculos (cfr. Heb 13, 8) » (185)

Sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da dignidade pessoal da mulher debruça-se a Carta Apostólica sobre a dignidade e a vocação da mulher. O documento que retoma, continua e especifica as reflexões da catequese das Quartas-Feiras, dedicada, por muito tempo, à « teologia do corpo », pretende ser, ao mesmo tempo, o cumprimento de uma promessa feita na encíclica Redemptoris mater (186) e a resposta ao pedido dos Padres sinodais.

A leitura da Carta Mulieris dignitatem, também pelo seu carácter de meditação bíblico-teológica, poderá ser um estímulo para todos, homens e mulheres, e em particular para os que cultivam as ciências humanas e as disciplinas teológicas, a fim de se avançar no estudo crítico e aprofundar sempre mais, na base da dignidade pessoal do homem e da mulher e da sua recíproca relação, os valores e os dons específicos da feminidade e da masculinidade, não apenas a nível da vivência social, mas também e sobretudo da existência cristã e eclesial.

A meditação sobre os fundamentos antropológicos e teológicos da condição da mulher deve iluminar e guiar a resposta cristã à pergunta tão comum e, por vezes, tão aguda, sobre o «espaço » que a mulher pode e deve ter na Igreja e na sociedade.

Da palavra e do comportamento de Cristo, que são normativos para a Igreja, resulta com grande clareza que nenhuma discriminação existe no plano da relação com Cristo, no qual « não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus » (Gal 3, 28) e no plano da participação na vida e na santidade da Igreja, como muito bem afirma a profecia de Joel realizada no Pentecostes: « Eu derramarei o Meu espírito sobre cada homem e profetizarão os vossos filhos e as vossas filhas » (Jl 2, 28; cf. Act 2, 17 ss.). Como se lê na Carta Apostólica sobre a dignidade e a vocação da mulher: « Ambos — a mulher como o homem — são objecto, em igual medida, da dádiva da verdade divina e do amor no Espírito Santo. Ambos recebem as Suas "visitas" salvadoras e santificadoras ».(187)

Missão na Igreja e no mundo

51. Quanto, pois, à participação na missão apostólica da Igreja, não há dúvida de que, por força do Baptismo e do Crisma, a mulher — como o homem — torna-se participante no tríplice múnus de Jesus Cristo Sacerdote, Profeta e Rei e, portanto, é habilitada e vocacionada para o apostolado fundamental da Igreja: a evangelização. Por outra parte, precisamente na realização desse apostolado, a mulher é chamada a pôr em prática os seus « dons » próprios: antes de mais, o dom que é a sua própria dignidade pessoal, através da palavra e do testemunho de vida; os dons, portanto, relacionados com a sua vocação feminina.

Para participar na vida e na missão da Igreja, a mulher não pode receber o sacramento da Ordem e, por isso, não pode desempenhar as funções próprias do sacerdócio ministerial. Esta é uma disposição que a Igreja sempre encontrou na clara vontade, totalmente livre e soberana, de Jesus Cristo que chamou apenas homens para Seus apóstolos; (188) uma disposição que pode encontrar luz na relação entre Cristo Esposo e a Igreja Esposa.(189) Estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade. Deve, na verdade, afirmar-se: « Embora a Igreja possua uma estrutura «hierárquica", essa estrutura, todavia, está totalmente ordenada para a santidade dos membros em Cristo ».(190)

Mas, como já dizia Paulo VI, se « nós não podemos mudar o comportamento de Nosso Senhor nem a chamada que Ele dirigiu às mulheres, devemos, porém, reconhecer e promover o papel da mulher na sua missão evangelizadora e na vida da comunidade cristã ».(191)

É absolutamente necessário que se passe do reconhecimento teórico da presença activa e responsável da mulher na Igreja à realização prática. E é neste claro sentido que deverá ler-se a presente Exortação que se dirige aos fiéis leigos, com a deliberada e repetida especificação « homens e mulheres ». Também o novo Código de Direito Canónico contém múltiplas disposições sobre a participação da mulher na vida e na missão da Igreja: são disposições que precisam de ser mais comummente conhecidas e de serem postas em prática, embora segundo as diversas sensibilidades culturais e oportunidades pastorais, com maior celeridade e resolução.

Veja-se, por exemplo, a participação das mulheres nos Conselhos pastorais diocesanos e paroquiais, assim como nos Sínodos diocesanos e nos Concílios particulares. Nesse sentido, os Padres sinodais escreveram: « As mulheres participem na vida da Igreja sem discriminação alguma, também nas consultas e na elaboração de decisões ».(192) E ainda: « As mulheres, que já têm tanta importância na transmissão da fé e na prestação de serviços de toda a espécie na vida da Igreja, devem ser associadas à preparação dos documentos pastorais e das iniciativas missionárias e devem ser reconhecidas como cooperadoras da missão da Igreja na família, na profissão e na comunidade civil ».(193)

No âmbito mais específico da evangelização e da catequese, deverá promover-se com maior força a função particular que a mulher tem na transmissão da fé, não só na família, mas também nos mais variados lugares educativos e, em termos mais vastos, em tudo o que concerne o acolhimento da Palavra de Deus, a sua compreensão e a sua comunicação, também através do estudo, da investigação e da docência da teologia.

Ao desempenhar a sua tarefa de evangelização, a mulher sentirá mais viva a necessidade de ser evangelizada. Assim, com « os olhos iluminados pela fé » (cf. Ef 1, 18), a mulher poderá distinguir entre o que verdadeiramente responde à sua dignidade pessoal e à sua vocação e tudo o que, talvez sob o pretexto dessa « dignidade » e em nome da « liberdade » e do « progresso », faz com que a mulher não contribua para o fortalecimento dos verdadeiros valores, mas, pelo contrário, se torne responsável da degradação moral das pessoas, dos ambientes e da sociedade. Realizar um tal « discernimento » é uma urgência histórica inadiável e, ao mesmo tempo, uma possibilidade e uma exigência que derivam da participação no múnus profético de Cristo e da Sua Igreja por parte da mulher cristã. O « discernimento », de que fala muitas vezes o apóstolo Paulo, não consiste apenas numa avaliação das realidades e dos acontecimentos à luz da fé; é também uma decisão concreta e um empenhamento operativo, não só no ambito da Igreja, mas também no da sociedade humana.

Pode afirmar-se que todos os problemas do mundo contemporâneo, de que já falava a segunda parte da Constituição conciliar Gaudium et spes e que com o tempo não foram por nada resolvidos nem atenuados, devem contar com a presença e o empenho das mulheres e, precisamente, com o seu contributo típico e insubstituível.

Em particular, duas grandes tarefas confiadas à mulher merecem ser novamente postas à atenção de todos.

A tarefa, antes de mais, de dar plena dignidade à vida matrimonial e à maternidade. Novas possibilidades se abrem hoje à mulher para uma compreensão mais profunda e para uma realização mais rica dos valores humanos e cristãos implicados na vida conjugal e na experiência da maternidade: o próprio homem — o marido e o pai — pode superar formas episódicas e unilaterais de absentismo ou de presença, mais, pode envolver-se em novas e significativas relações de comunhão interpessoal, precisamente graças à intervenção inteligente, amorosa e decisiva da mulher.

E, depois, a tarefa de assegurar a dimensão moral da cultura, isto é, a dimensão de uma cultura digna do homem, da sua vida pessoal e social. O Concílio Vaticano II parece relacionar a dimensão moral da cultura com a participação dos leigos no múnus real de Cristo: « Os leigos, também pela união das próprias forças, devem sanear às estruturas e as condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e, antes, ajudem ao exercício das virtudes, em vez de o estorvarem. Agindo assim, informarão de valor moral a cultura e as obras do homem ».(194)

A medida que a mulher participar activa e responsavelmente na função das instituições, de que depende a salvaguarda do primado devido aos valores humanos na vida das comunidades políticas, as palavras do Concílio acima citadas abrirão um importante campo de apostolado da mulher: em todas as dimensões da vida dessas comunidades, desde a dimensão sócio-económica à sócio-política, devem respeitar-se e promover-se a dignidade pessoal da mulher e a sua vocação específica: no âmbito não só individual, mas também comunitário; não apenas em formas deixadas à liberdade responsável das pessoas, mas igualmente em formas garantidas por leis civis justas.

« Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe um auxiliar semelhante a ele » (Gn 2, 18). A mulher Deus Criador confiou o homem. Sem dúvida, o homem foi confiado a cada homem, mas de modo particular à mulher, porque precisamente a mulher parece possuir, graças à experiência especial da sua maternidade, uma sensibilidade específica para com o homem e para com tudo o que constitui o seu verdadeiro bem, a começar pelo valor fundamental da vida. São tão grandes as possibilidades e as responsabilidades da mulher neste campo, numa época em que o progresso da ciência e da técnica nem sempre é inspirado a pautado pela verdadeira sabedoria, com o risco inevitável de « desumanizar » a vida humana, sobretudo quando ela exige um amor mais intenso e uma aceitação mais generosa!

A participação da mulher na vida da Igreja e da sociedade, através dos seus dons, constitui, ao mesmo tempo, a estrada necessária para a sua realização pessoal — na qual justamente tanto se insiste — e o contributo original da mulher para o enriquecimento da comunhão eclesial e para o dinamismo apostólico do Povo de Deus.

Nesta perspectiva deve considerar-se a presença também do homem ao lado da mulher.

Compresença e colaboração dos homens e das mulheres

52. Não faltou na aula sinodal a voz daqueles que manifestaram o receio de que uma excessiva insistência sobre a condição e o papel das mulheres pudesse levar a um inaceitável esquecimento: nomeadamente em relação aos homens. Na verdade, várias situações eclesiais devem lamentar a ausência ou a presença demasiado fraca dos homens, uma parte dos quais abdica das próprias responsabilidades eclesiais, deixando-as ao cuidado exclusivo das mulheres, como, por exemplo, a participação na oração litúrgica na Igreja, a educação e, em especial, a catequese dos próprios filhos e das outras crianças, a presença em encontros religiosos e culturais, a colaboração em iniciativas caritativas e missionárias.

Torna-se, assim, uma urgência pastoral conseguir-se a presença coordenada dos homens e das mulheres para se tornar mais completa, harmónica e rica a participação dos fiéis leigos na missão salvadora da Igreja.

A razão fundamental que exige e explica a presença simultânea e a colaboração dos homens e das mulheres não é unicamente, como se sublinhou acima, a maior expressividade e eficácia da acção pastoral da Igreja; nem, tão pouco, o simples dado sociológico de uma convivência humana que é naturalmente feita de homens e de mulheres. É, sobretudo, o desígnio originário do Criador, que desde o « princípio » quis o ser humano como « unidade de dois », quis o homem e a mulher como primeira comunidade de pessoas, raiz de todas as outras comunidades e, simultaneamente, como « sinal » daquela comunhão interpessoal de amor que constitui a misteriosa vida íntima de Deus Uno e Trino.

Precisamente por isso, o modo mais comum e capilar e, ao mesmo tempo, fundamental, para assegurar essa presença coordenada e harmónica de homens e de mulheres na vida e na missão da Igreja, é o exercício das tarefas e das responsabilidades do casal e da família cristã, no qual transparece e se comunica a variedade das diversas formas de amor e de vida: a forma conjugal, paterna e materna, filial e fraterna. Lemos na Exortação Familiaris consortio: « Se a família cristã é comunidade, cujos laços são renovados por Cristo através da fé e dos sacramentos, a sua participação na missão da Igreja deve processar-se segundo uma modalidade comunitária: juntos, portanto, os cônjuges enquanto casal, os pais e os filhos enquanto família, devem prestar o seu serviço à Igreja e ao mundo ... A família cristã edifica, assim, o Reino de Deus na história, mediante aquelas mesmas realidades quotidianas que dizem respeito à sua condição de vida e a identificam: é, portanto, no amor conjugal e familiar — vivido na sua extraordinária riqueza de valores e de exigências de totalidade, unicidade, fidelidade e fecundidade — que se exprime e se realiza a participação da família cristã no múnus profético, sacerdotal e real de Jesus Cristo e da Sua Igreja ».(195)

Colocando-se nesta perspectiva, os Padres sinodais recordaram o significado que o sacramento do Matrimónio deve assumir na Igreja e na sociedade a fim de iluminar e inspirar todas as relações entre o homem e a mulher. Nesse sentido, reafirmaram « a urgente necessidade de cada cristão viver e anunciar a mensagem de esperança contida na relação entre o homem e a mulher. O sacramento do Matrimónio, que consagra esta relação na sua forma conjugal e a revela como sinal da relação de Cristo com a Sua Igreja, encerra uma doutrina de grande importância para a vida da Igreja; essa doutrina deve atingir, por meio da Igreja, o mundo de hoje; todas as relações entre o homem e a mulher se devem alimentar desse espírito. A Igreja deve utilizar tais riquezas de forma ainda mais plena ».(196) Os próprios Padres justamente sublinharam que « a estima da virgindade e o respeito pela maternidade devem ambos ser recuperados »:(197) uma vez mais, para o florescer de vocações diferentes e complementares no contexto vivo da comunhão eclesial e ao serviço do seu constante crescimento.

Doentes e atribulados

53. O homem é destinado à alegria, mas todos os dias experimenta variadíssimas formas de sofrimento e de dor. Na sua mensagem final, os Padres sinodais dirigiram-se aos homens e às mulheres atingidos pelas mais diversas formas de sofrimento e de dor, com estas palavras: « Vós, os abandonados e marginalizados pela nossa sociedade de consumo: doentes, diminuídos físicos, pobres, famintos, emigrados, refugiados, prisioneiros, desempregados, crianças abandonadas, pessoas sozinhas e idosas; vós, vítimas da guerra e de toda a espécie de violência da nossa sociedade permissiva. A Igreja participa no vosso sofrimento que conduz ao Senhor, que vos associa à Sua Paixão redentora e vos faz viver à luz da Sua Ressurreição. Contamos convosco para ensinar ao mundo inteiro o que é o amor. Faremos tudo o que nos é possível para que encontreis o lugar a que tendes direito na sociedade e na Igreja ».(198)

No contexto de um mundo tão vasto como é o do sofrimento humano, consideramos em especial os que são vítimas da doença nas suas diversas formas: com efeito, os doentes são a expressão mais frequente e mais comum do sofrer humano.

A todos e a cada um se dirige a chamada do Senhor: também os doentes são mandados como trabalhadores para a Sua vinha. O peso que fatiga os membros do corpo e que perturba a serenidade da alma, em vez de os impedir de trabalhar na vinha, convida-os a viver a sua vocação humana e cristã e a participar no crescimento do Reino de Deus com modalidades novas e mesmo preciosas. As palavras do apóstolo Paulo devem tornar-se o seu programa e, ainda mais, a luz que faz brilhar aos seus olhos o significado de graça da sua situação: « Completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo, em favor do Seu corpo, que é a Igreja » (Col 1, 24). Precisamente ao fazer tal descoberta, o apóstolo encontrou a alegria: « Por isso, alegro-me nos sofrimentos que suporto por vossa causa » (Col 1, 24). Do mesmo modo, muitos doentes podem tornar-se veículo da « alegria do Espírito Santo em muitas tribulações » (1 Tes 1, 6) e ser testemunhas da Ressurreição de Jesus. Como afirmou um diminuído físico na sua intervenção na aula sinodal, « é de grande importância sublinhar o facto de que os cristãos que vivem em situações de doença, dor e velhice, não são convidados por Deus apenas a unir a sua dor à Paixão de Cristo, mas também a receber desde já em si mesmos e a transmitir aos outros a força da renovação e a alegria de Cristo ressuscitado (cf. 2 Cor 4, 10-11; 1 Ped 4, 13; Rom 8, 18 ss.) ».(199)

Por sua parte — como se lê na Carta Apostólica Salvifici doloris — « a Igreja, que nasce do mistério da redenção na Cruz de Cristo, deve procurar encontrar-se com o homem, de modo especial, na estrada do seu sofrimento. Nesse encontro, o homem "torna-se o caminho da Igreja", sendo este um dos caminhos mais importantes ».(200) Ora, o homem que sofre é caminho da Igreja, por ser, antes de mais, caminho do próprio Cristo, o bom Samaritano que « não passa adiante », mas « se compadece, aproxima-se ... liga-lhe as feridas ... e cuida dele » (Lc 10, 32-34).

A comunidade cristã continuamente escreve, de século em século, na imensa multidão das pessoas que estão doentes e que sofrem, a parábola evangélica do bom Samaritano, revelando e comunicando o amor de Jesus Cristo que cura e que consola. Fê-lo mediante o testemunho da vida religiosa consagrada ao serviço dos doentes e mediante a acção incansável de todos os operadores de saúde. Hoje, também nos próprios hospitais e casas de saúde católicos, geridos por pessoal religioso, torna-se cada vez mais numerosa e, por vezes, até total e exclusiva a presença dos fiéis leigos, homens e mulheres: eles mesmo, médicos, enfermeiros, operadores de saúde, voluntários, são chamados a tornar-se a imagem viva de Cristo e da Sua Igreja no amor para com os doentes e os que sofrem.

Ação pastoral renovada

54. É necessário que esta preciosissima herança, que a Igreja recebeu de Jesus Cristo « médico do corpo e do espírito »,(201) não só não esmoreça, mas se valorize e enriqueça cada vez mais com a recuperação e o decidido arrojo de uma acção pastoral em favor dos doentes e dos que sofrem. Deve ser uma acção capaz de garantir e promover atenção, proximidade, presença, escuta, diálogo, partilha e ajuda concreta ao homem, nos momentos em que, por causa da doença e do sofrimento, são postas à prova não só a sua confiança na vida mas também a sua própria fé em Deus e no Seu amor de Pai. Este esforço pastoral tem a sua expressão mais significativa na celebração sacramental com e em favor dos doentes, como fortaleza na dor e na fraqueza, esperança no desespero, lugar de encontro e de festa.

Um dos objectivos fundamentais desta renovada e intensificada acção pastoral, que não pode deixar de envolver, e de forma coordenada, todos os componentes da comunidade eclesial, é considerar o doente, o diminuído fisico, o que sofre, não simplesmente objecto do amor e do serviço da Igreja, mas sim, sujeito activo e responsável da obra de evangelização e de salvação. Nesta perspectiva, a Igreja tem uma boa nova a dar no seio da sociedade e da cultura que, tendo perdido do sofrer humano, « censuram » todo o discurso sobre essa dura realidade da vida. E a boa nova consiste no anúncio de que o sofrer pode ter também um significado positivo para o homen e para a própria sociedade, chamado, como é, a tornar-se uma forma de participação no sofrimento salvífico de Cristo e na Sua alegria de Ressuscitado e, portanto, uma força de santificação e de edificação da Igreja.

O anúncio dessa boa nova será crível, quando não ficar simplesmente nos lábios, mas passar para o testemunho da vida, tanto em todos aqueles que com amor cuidam dos doentes, dos diminuídos físicos, dos que sofrem, como nestes mesmos, tornados cada vez mais conscientes e responsáveis do seu lugar e da sua missão na Igreja e para a Igreja.

A renovada meditação da Carta Apostólica Salvifici doloris, de que recordamos as linhas conclusivas, poderá ser de grande utilidade para que a « civilização do amor » consiga dar flores e frutos no vasto mundo da dor humana: « É preciso, portanto, que aos pés da Cruz do Calvário se juntem idealmente todos os que, sofrendo, acreditam em Cristo e, de modo particular, aqueles que sofrem por causa da sua fé n'Ele, que foi crucificado e que ressuscitou, para que a oferta dos seus sofrimentos apresse o cumprimento da oração do mesmo Salvador pela unidade de todos (cf. Jo 17, 11. 21-22). Juntem-se lá também os homens de boa vontade, pois na Cruz está o "Redentor do homem", o Homem das dores, que carregou em si os sofrimentos físicos e morais dos homens de todos os tempos, para que no amor possam encontrar o sentido salvador do seu sofrimento e as respostas válidas para todas as suas interrogações. Com Maria, Mãe de Cristo, que estava ao pé da Cruz (cf.Jo 19, 25), nos detemos junto de todas as cruzes do homem de hoje... E pedimos a vós, todos os que sofreis, que nos apoieis. Precisamente a vós, que sois fracos, pedimos que vos torneis uma fonte de força para a Igreja e para a humanidade. No terrível combate entre as forças do bem e as do mal, de que nos dá espectáculo o nosso mundo contemporâneo, vença o vosso sofrimento em união com a Cruz de Cristo! ».(202)

Estados de vida e vocações

55. Trabalhadores da vinha são todos os membros do Povo de Deus: os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, os fiéis leigos, todos simultaneamente objecto e sujeito da comunhão da Igreja e da participação na sua missão de salvação. Todos e cada um trabalham na única e comum vinha do Senhor com carismas e com ministérios diferentes e complementares.

Já ao nível do ser, ainda antes do nível do agir, os cristãos são vides da única fecunda videira que é Cristo, são membros vivos do único Corpo do Senhor edificado na força do Espírito. A nível do ser: não significa apenas através da vida de graça e de santidade, que é a primeira e a mais rica fonte da fecundidade apostólica e missionária da santa Madre Igreja; mas significa também através do estado de vida que caracteriza os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, os membros dos Institutos seculares, os fiéis leigos.

Na Igreja-Comunhão os estados de vida encontram-se de tal maneira interligados que são ordenados uns para os outros. Comum, direi mesmo único, é, sem dúvida, o seu significado profundo: o de constituir a modalidade segundo a qual se deve viver a igual dignidade cristã e a universal vocação à santidade na perfeição do amor. São modalidades, ao mesmo tempo, diferentes e complementares, de modo que cada uma delas tem uma sua fisionomia original e inconfundível e, simultaneamente, cada uma delas se relaciona com as outras e se põe ao seu serviço.

Assim, o estado de vida laical tem na índole secular a sua especificidade e realiza um serviço eclesial ao testemunhar e ao lembrar, à sua maneira, aos sacerdotes, aos religiosos e às religiosas, o significado que as coisas terrenas e temporais têm no desígnio salvífico de Deus. Por sua vez, o sacerdócio ministerial representa a garantia permanente da presença sacramental de Cristo Redentor nos diversos tempos e lugares.

O estado religioso testemunha a índole escatológica da Igreja, isto é, a sua tensão para o Reino de Deus, que é prefigurado e, de certo modo, antecipado e pregustado nos votos de castidade, pobreza e obediência.

Todos os estados de vida, tanto no seu conjunto como cada um deles em relação com os outros, estão ao serviço do crescimento da Igreja, são modalidades diferentes que profundamente se unem no « mistério de comunhão » da Igreja e que dinamicamente se coordenam na sua única missão.

Desse modo, o único e idêntico mistério da Igreja revela e revive, na diversidade dos estados de vida e na variedade das vocações, a riqueza infinita do mistério de Jesus Cristo. Como gostam de repetir os Padres, a Igreja é como um campo de fascinante e maravilhosa variedade de ervas, plantas, flores e frutos. Santo Ambrósio escreve: « Um campo produz muitos frutos, mas melhor é o que está cheio de frutos e de flores. Pois bem, o campo da Santa Igreja é fecundo nuns e noutras. Aqui, podes ver as pérolas da virgindade dar flores; ali, dominar a austera viuvez como as florestas na planície; além, a rica sementeira das núpcias abençoadas pela Igreja encher os grandes celeiros do mundo com abundantes colheitas, e os lagares do Senhor Jesus extravasar como de frutos de viçosa videira, frutos de que são ricas as núpcias cristãs ».(203)

As várias vocações laicais

56. A rica variedade da Igreja encontra uma sua ulterior manifestação no seio de cada estado de vida. Assim, dentro do estado de vida laical há lugar para várias « vocações », isto é, diversos caminhos espirituais e apostólicos que dizem respeito a cada fiel leigo. No trilho de uma vocação laical « comum » florescem vocações laicais « particulares ». Neste âmbito podemos lembrar também a experiência espiritual que recentemente amadureceu na Igreja com o desabrochar de diversas formas de Institutos seculares: aos fiéis leigos, e também aos próprios sacerdotes, abre-se a possibilidade de professar os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência por meio dos votos ou das promessas, conservando plenamente a própria condição laical e clerical.(204) Como observaram os Padres sinodais, « o Espírito Santo suscita também outras formas de doação de si mesmos, a que se entregam pessoas que permanecem inteiramente na vida laical ». (205)

Podemos concluir, relendo uma linda página de São Francisco de Sales, o qual promoveu tanto a espiritualidade dos leigos.(206) Falando da « devoção », ou seja, da perfeição cristã ou « vida segundo o Espírito », ele apresenta de uma forma simples e esplêndida a vocação de todos os cristãos à santidade e, ao mesmo tempo, a forma específica com que cada cristão a realiza: « Na criação Deus ordenou às plantas que produzissem os seus frutos, cada uma " segundo a própria espécie" (Gn 1, 11). A mesma ordem dá aos cristãos, que são as plantas vivas da Sua Igreja, para produzirem frutos de devoção, cada um segundo o seu estado e a sua condição. A devoção deve ser praticada de forma diferente pelo cavalheiro, pelo operário, pelo doméstico, pelo príncipe, pela viúva, pela mulher solteira e pela casada. Isso não basta, é preciso também conciliar a prática da devoção com as forças, os empenhos e os deveres de cada pessoa... É um erro, uma heresia mesmo, excluir do ambiente militar, da oficina dos operários, da corte dos príncipes, das casas dos cônjuges, a prática da devoção. É verdade, Filoteia, que a devoção puramente contemplativa, monástica e religiosa só pode ser vivida nesses estados, mas, além destes três tipos de devoção, há muitos outros capazes de tornar perfeitos os que vivem em condições seculares. Por isso, onde quer que nos encontremos, podemos e devemos aspirar à vida perfeita ».(207)

Colocando-se na mesma linha, o Concílio Vaticano II escreve: « Esta espiritualidade dos leigos deverá assumir características especiais, conforme o estado de matrimónio e familiar, de celibato ou viuvez, situação de enfermidade, actividade profissional e social. Não deixem, por isso, de cultivar assiduamente as qualidades e dotes condizentes a essas situações, e utilizar os dons por cada um recebidos do Espírito Santo ».(208)

O que vale para as vocações espirituais vale também, e de certa forma com maior razão, para as infinitas modalidades várias com que todos e cada um dos membros da Igreja são trabalhadores da vinha do Senhor, edificando o Corpo místico de Cristo. Na verdade, cada um é chamado pelo seu nome, na unicidade e irrepetibilidade da sua história pessoal, a dar o próprio contributo para o advento do Reino de Deus. Nenhum talento, nem mesmo o mais pequeno, pode ser enterrado ou deixado inutilizado (cf. Mt 25, 24-27).

O apóstolo Pedro adverte-nos: « cada qual viva segundo o carisma que recebeu, colocando-o ao serviço dos outros, como bons administradores da multiforme graça de Deus » (1 Ped 4, 10).