A g n u s D e i

CHRISTIFIDELES LAICI
João Paulo II
30.12.1988

III
CONSTITUI-VOS PARA IRDES E DARDES FRUTO
A corresponsabilidade dos fiéis leigos na Igreja-Missão

Comunhão missionária

32. Retomemos a imagem bíblica da videira e dos ramos. Ela leva-nos, de forma imediata e espontânea, à consideração da fecundidade e da vida. Radicados e vivificados pela videira, os ramos são chamados a dar fruto: « Eu sou a videira e vós os ramos. Quem permanece em Mim e Eu nele dá muito fruto » (Jo 15, 5). Dar fruto é uma exigência essencial da vida cristã e eclesial. Quem não dá fruto não permanece na comunhão: « Toda a vide que em Mim não dá fruto (o Meu Pai) corta-a » (Jo 15, 2).

A comunhão com Jesus, donde promana a comunhão dos cristãos entre si, é condição absolutamente indispensável para dar fruto: « Sem Mim não podeis fazer nada » (Jo 15, 5). E a comunhão com os outros é o fruto mais lindo que as vides podem dar: ela é, na verdade, um dom de Cristo e do Seu Espírito.

Ora, a comunhão gera comunhão e reveste essencialmente a forma de comunhão missionária. Jesus, de facto, diz aos Seus discípulos: « Não fostes vós que Me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e vos constituí para irdes e dardes fruto e para que o vosso fruto permaneça » (Jo 15, 16).

A comunhão e a missão estão profundamente ligadas entre si, compenetram-se e integram-se mutuamente, ao ponto de a comunhão representar a fonte e, simultaneamente, o fruto da missão: a comunhão é missionária e a missão é para a comunhão. É sempre o único e mesmo Espírito que convoca e une a Igreja e que a manda pregar o Evangelho « até aos confins da terra » (Act 1, 8). Por sua vez, a Igreja sabe que a comunhão, recebida em dom, tem um destino universal. Assim, a Igreja sente-se devedora à humanidade inteira e a cada um dos homens do dom recebido do Espírito, que derrama nos corações dos crentes a caridade de Jesus Cristo, força prodigiosa de coesão interna e, ao mesmo tempo, de expansão externa. A missão da Igreja deriva da sua própria natureza, tal como Cristo a quis: ser « sinal e instrumento ... de unidade de todo o género humano ».(120) Essa missão tem por finalidade dar a conhecer a todos e fazer com que todos vivam a « nova » comunhão que, no Filho de Deus feito homem, entrou na história do mundo. Nesse sentido, o testemunho do evangelista João já define, de forma irrevocável, a meta beatificante para onde se encaminha toda a missão da Igreja: « O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão connosco. A nossa comunhão é com o Pai e com o Seu Filho Jesus Cristo » (1 Jo 1, 3).

Ora, no contexto da missão da Igreja o Senhor confia aos fiéis leigos, em comunhão com todos os outros membros do Povo de Deus, uma grande parte de responsabilidade. Tinham disso plena consciência os Padres do Concílio Vaticano II: « Os sagrados Pastores conhecem, com efeito, perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Pois eles próprios sabem que não foram instituídos por Jesus Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo, mas que o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum ».(121) Essa consciência reapareceu, depois, com renovada clareza e com maior vigor, em todos os trabalhos do Sínodo.

Anunciar o Evangelho

33. Os fiéis leigos, precisamente por serem membros da Igreja, têm por vocação e por missão anunciar o Evangelho: para essa obra foram habilitados e nela empenhados pelos sacramentos da iniciação cristã e pelos dons do Espírito Santo.

Leiamos um texto claro e denso do Concílio Vaticano II: « Porque participam no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, os leigos têm parte activa na vida e na acção da Igreja... Fortalecidos pela participação activa na vida litúrgica da comunidade, empenham-se nas obras apostólicas da mesma. Conduzem à Igreja os homens que porventura andem longe, cooperam intensamente na comunicação da Palavra de Deus, sobretudo pela actividade catequética, e tornam mais eficaz, com o contributo da sua competência, a cura de almas e até a administração dos bens da Igreja ».(122)

Ora, é na evangelização que se concentra e se desenrola toda a missão da Igreja, cujo percurso histórico se faz sob a graça e ordem de Jesus Cristo: « Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura... Eis que Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo » (Mt 16, 15; cf. Mt 28, 20). « Evangelizar — escreve Paulo VI — é a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda ».(123)

Com a evangelização, a Igreja é construída e plasmada como comunidade de fé: mais precisamente, como comunidade de uma fé confessada na adesão à Palavra de Deus, celebrada nos Sacramentos e vivida na caridade, como alma da existência moral cristã. Com efeito, a « boa nova » tende a suscitar no coração e na vida do homem a conversão e a adesão pessoal a Jesus Cristo Salvador e Senhor; dispõe ao Baptismo e à Eucaristia e consolida-se no propósito e na realização da nova vida segundo o Espírito.

Sem dúvida, a ordem de Jesus: « Ide e pregai o Evangelho » conserva sempre a sua validade e está cheia de uma urgência que não passa. Todavia, a situação actual, não só do mundo mas também de tantas partes da Igreja, exige absolutamente que à palavra de Cristo se preste uma obediência mais pronta e generosa. Todo o discípulo é chamado em primeira pessoa; nenhum discípulo pode eximir-se a dar a sua própria resposta: « Ai de mim se não evangelizar » (1 Cor 9, 16).

Chegou a hora de nos lançarmos numa nova evangelização

34. Países inteiros e nações, onde a religião e a vida cristã foram em tempos tão prósperas e capazes de dar origem a comunidades de fé viva e operosa, encontram-se hoje sujeitos a dura prova, e, por vezes, até são radicalmente transformados pela contínua difusão do indiferentismo, do secularismo e do ateísmo. É o caso, em especial, dos países e das nações do chamado Primeiro Mundo, onde o bem-estar económico e o consumismo, embora à mistura com tremendas situações de pobreza e de miséria, inspiram e permitem viver « como se Deus não existisse ». Ora, a indiferença religiosa e a total insignificância prática de Deus nos problemas, mesmo graves, da vida não são menos preocupantes e subversivos do que o ateismo declarado. E também a fé cristã, mesmo sobrevivendo em algumas manifestações tradicionais e ritualistas, tende a desaparecer nos momento mais significativos da existência, como são os momentos do nascer, do sofrer e do morrer. Daí que se levantem interrogações e enigmas tremendos, que, ao ficarem sem resposta, expõem o homem contemporâneo à desilusão desconfortante e à tentação de eliminar a mesma vida humana que levanta esses problemas.

Noutras regiões ou nações, porém, conservam-se bem vivas ainda tradições de piedade e de religiosidade popular cristã; mas, esse património moral e espiritual corre hoje o risco de esbater-se sob o impacto de múltiplos processos, entre os quais sobressaem a secularização e a difusão das seitas. Só uma nova evangelização poderá garantir o crescimento de uma fé límpida e profunda, capaz de converter tais tradições numa força de liberdade autêntica.

É urgente, sem dúvida, refazer em toda a parte o tecido cristão da sociedade humana. Mas, a condição é a de se refazer o tecido cristão das próprias comunidades eclesiais que vivem nesses países e nessas nações.

Ora, os fiéis leigos, por força da sua participação no múnus profético de Cristo, estão plenamente envolvidos nessa tarefa da Igreja. Pertence-lhes, em particular, dar testemunho de como a fé cristã, mais ou menos conscientemente. ouvida e invocada por todos, seja a única resposta plenamente válida para os problemas e as esperanças que a vida põe a cada homem e a cada sociedade. Será isso possível, se os fiéis leigos souberem ultrapassar em si mesmos a ruptura entre o Evangelho e a vida, refazendo na sua quotidiana actividade em família, no trabalho e na sociedade, a unidade de uma vida que no Evangelho encontra inspiração e força para se realizar em plenitude.

Repito mais uma vez a todos os homens contemporâneos o grito apaixonado com que iniciei o meu serviço pastoral: « Não tenhais medo! Abri, ou antes, escancarai as portas a Cristo! Abri ao Seu poder salvador os confins dos Estados, os sistemas económicos assim como os políticos, os vastos campos da cultura, da civilização, do progresso. Não tenhais medo! Cristo sabe bem "o que está dentro do homem". Só Ele o sabe! Hoje em dia muito frequentemente o homem não sabe o que traz no interior de si mesmo, no profundo do seu ânimo e do seu coração. Muito frequentemente se encontra incerto acerca do sentido da sua vida sobre esta Terra. E sucede que é invadido pela dúvida que se transforma em desespero. Permiti, pois, — peço-vos e vo-lo imploro com humildade e confiança — deixai que Cristo fale ao homem. Só Ele tem palavras de vida; sim, de vida eterna ».(124)

Escancarar a porta a Cristo, acolhê-l'O no espaço da própria humanidade, não é, de modo algum, ameaça para o homem, mas antes, é a única estrada a percorrer, se quisermos reconhecer o homem na sua verdade total e exaltá-lo nos seus valores.

A síntese vital que os fiéis leigos souberem fazer entre o Evangelho e os deveres quotidianos da vida será o testemunho mais maravilhoso e convincente de que não é o medo, mas a procura e a adesão a Cristo, que são o factor determinante para que o homem viva e cresça, e para que se alcancem novas formas de viver mais conformes com a dignidade humana.

O homem é amado por Deus! Este é o mais simples e o mais comovente anúncio de que a Igreja é devedora ao homem. A palavra e a vida de cada cristão podem e devem fazer ecoar este anúncio: Deus ama-te, Cristo veio por ti, para ti Cristo é « Caminho, Verdade, Vida » (Jo 14, 6)!

Esta nova evangelização, dirigida, não apenas aos indivíduos mas a inteiras faixas de população, nas suas diversas situações, ambientes e culturas, tem por fim formar comunidades eclesiais maduras, onde, a fé desabroche e realize todo o seu significado originário de adesão à pessoa de Cristo e ao Seu Evangelho, de encontro e de comunhão sacramental com Ele, de existência vivida na caridade e no serviço.

Os fiéis leigos têm a sua parte a desempenhar na formação de tais comunidades eclesiais, não só com uma participação activa e responsável na vida comunitária e, portanto, com o seu insubstituível testemunho, mas também com o entusiasmo e com a acção missionária dirigida a quantos não crêem ainda ou já não vivem a fé recebida no Baptismo.

Em relação às novas gerações, os fiéis leigos devem dar um precioso contributo, necessário como nunca, com uma obra sistemática de catequese: Os Padres sinodais acolheram com gratidão o trabalho dos catequistas, reconhecendo que eles « têm uma tarefa de grande importância na animação das comunidades edesiais ».(125) É verdade que os pais cristãos são os primeiros e insubstituíveis catequistas dos próprios filhos, habilitados que o foram para isso pelo sacramento do Matrimónio, mas, ao mesmo tempo, devemos todos ter consciência do direito que assiste a todo o baptizado de ser instruído, educado, acompanhado na fé e na vida cristã.

Ide por todo o mundo

35. A Igreja, ao aperceber-se e ao viver a urgência actual de uma nova evangelização, não pode eximir-se da missão permanente de levar o Evangelho a quantos — e são milhões e milhões de homens e mulheres — não conhecem ainda a Cristo Redentor do homem. Esta é a tarefa mais especificamente missionária que Jesus confiou e continua todos os dias a confiar à Sua Igreja.

A acção dos fiéis leigos, que, aliás, nunca faltou neste campo, aparece hoje cada vez mais necessária e preciosa. Na verdade, a ordem do Senhor « Ide por todo o mundo » continua a encontrar muitos leigos generosos, prontos a deixar o seu ambiente de vida, o seu trabalho, a sua região ou pátria, para ir, ao menos por um certo tempo, para zonas de missão. Mesmo casais cristãos, a exemplo de Áquila e Priscila (cfr. Act 18; Rom 16, 3 s.), oferecem o confortante testemunho de amor apaixonado por Cristo e pela Igreja com a sua presença activa em terras de missão. Autêntica presença missionária é também a daqueles que, vivendo por vários motivos em países ou ambientes onde a Igreja ainda não foi estabelecida, dão o testemunho da sua fé.

Mas, o problema missionário apresenta-se hoje à Igreja com tal amplitude e gravidade que só se todos os membros da Igreja o assumirem de forma verdadeiramente solidária e responsável, tanto singularmente como em comunidade, é que se poderá confiar numa resposta mais eficaz.

O convite que o Concílio Vaticano II dirigiu às Igrejas particulares conserva todo o seu valor, ou antes, reclama hoje um acolhimento mais amplo e mais decidido: « A Igreja particular, devendo representar na forma mais perfeita a Igreja universal, tenha plena consciência de ser enviada também àqueles que não acreditam em Cristo ».(126)

A Igreja deve dar hoje um grande passo em frente na sua evangelização, deve entrar numa nova etapa histórica do seu dinamismo missionário. Num mundo que, com o encurtar das distâncias, se torna sempre mais pequeno, as comunidades eclesiais devem ligar-se entre si, trocar energias e meios, empenhar-se juntas na missão, única e comum, de anunciar e de viver o Evangelho. « As Igrejas ditas mais jovens — disseram os Padres sinodais — têm necessidade da força das mais antigas, enquanto que estas precisam do testemunho e do entusiasmo das mais jovens, de forma que cada Igreja beneficie das riquezas das outras Igrejas ».(127)

Nesta nova etapa, a formação, não só do clero local mas também de um laicado maduro e responsável, coloca-se nas novas Igrejas como elemento essencial e obrigatório da plantatio Ecclesiae.(128) Dessa forma, as próprias comunidades evangelizadas lançam-se para novas paragens do mundo a fim de responderem, também elas, à missão de anunciar e testemunhar o Evangelho de Cristo.

Os fiéis leigos, com o exemplo da sua vida e com a própria acção, podem favorecer o melhoramento das relações entre os adeptos dasdiferentes religiões, como oportunamente observaram os Padres sinodais: « Hoje, a Igreja vive em toda a parte entre homens de religiões diferentes. Todos os fiéis, especialmente os leigos que vivem no meio de povos de outras religiões, tanto nas terras de origem como em terras de emigração, devem constituir para estes um sinal do Senhor e da Sua Igreja, de maneira adaptada às circunstâncias de vida de cada lugar. O diálogo entre as religiões tem uma importância fundamental, pois conduz ao amor e ao respeito recíproco, elimina, ou ao menos, atenua os preconceitos entre os adeptos das várias religiões e promove a unidade e a amizade entre os povos ».(129)

Para evangelizar o mundo são necessários, antes de mais, os evangelizadores. Por isso, todos, a começar pelas famílias cristãs, devem sentir a responsabilidade de favorecer o despertar e o amadurecer de vocações especificamente missionárias, tanto sacerdotais e religiosas como laicais, recorrendo a todos os meios oportunos e sem nunca esquecer o meio privilegiado da oração, conforme a própria palavra do Senhor Jesus: « A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rezai, poi, ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara! » (Mt 9, 37-38).

Viver o Evangelho servindo a pessoa e a sociedade

36. Ao anunciar e ao acolher o Evangelho na força do Espírito, a Igreja torna-se comunidade evangelizada e evangelizadora e, precisamente por isso, faz-se serva dos homens. Nela, os fiéis leigos participam na missão de servir a pessoa e a sociedade. É verdade que a Igreja tem como fim supremo o Reino de Deus, do qual ela « constitui na terra o gérmen e o início »,(130) e, portanto, está inteiramente consagrada à glorificação do Pai. Mas, o Reino é fonte de libertação plena e de salvação total para os homens: com estes, portanto, a Igreja caminha e vive, real e intimamente solidária com a sua história.

Tendo recebido o encargo de manifestar ao mundo o mistério de Deus, que brilha em Jesus Cristo, ao mesmo tempo, a Igreja descobre o homem ao homem, esclarece-o acerca do sentido da sua existência, abre-o à verdade total acerca dele e do seu destino.(l31) Nesta perspectiva, a Igreja é chamada, em virtude da sua própria missão evangelizadora, a servir o homem. Tal serviço tem a sua raiz primeiramente no facto prodigioso e empolgante de que, « com a encarnação, o Filho de Deus uniu-se de certa forma a todo o homem ».(132)

Por isso, o homem « é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no desempenho da sua missão: ele é o caminho primeiro e fundamental da Igreja, caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que imutavelmente passa através do mistério da Encarnação e da Redenção ».(133)

Precisamente neste sentido se pronunciou repetidas vezes e com singular clareza e vigor o Concílio Vaticano II nos seus diversos documentos. Releiamos um texto particularmente iluminador da Constituição Gaudium et spes: « A Igreja, ao procurar o seu fim salvífico próprio, não se limita a comunicar ao homem a vida divina; espalha sobre todo o mundo os reflexos da sua luz, sobretudo enquanto cura e eleva a dignidade da pessoa humana, consolida a coesão da sociedade e dá um sentido mais profundo à quotidiana atividade dos homens. A Igreja pensa, assim, que por meio de cada um dos seus membros e por toda a sua comunidade, muito pode ajudar para tornar mais humana a família dos homens e a sua história ».(134)

Neste contributo à família dos homens, de que é responsável a Igreja inteira, cabe aos fiéis leigos um lugar de relevo, em razão da sua « índole secular », que os empenha, com modalidades próprias e insubstituíveis, na animação cristã da ordem temporal.

Promover a dignidade da pessoa

37. Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo em certo sentido, a tarefa central e unificadora do serviço que a Igreja, e nela os fiéis leigos, são chamados a prestar à família dos homens.

De todas as criaturas terrenas, só o homem é « pessoa », sujeito consciente e livre e, precisamente por isso, « centro e vértice » de tudo o que existe sobre a terra.(135)

A dignidade pessoal é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual ele transcende em valor todo o mundo material. A palavra de Jesus: « Que serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se depois perde a sua alma? » (Mc 8, 36) implica uma afirmação antropológica luminosa e estimulante: o homem vale não por aquilo que « tem » — mesmo que ele possuísse o mundo inteiro — mas por aquilo que « é ». Não são tanto os bens do mundo que contam, mas o bem da pessoa, o bem que é a própria pessoa.

A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor, quando se consideram a sua origem e o seu destino: criado por Deus à Sua imagem e semelhança e remido pelo sangue preciosíssimo de Cristo, o homem é chamado a tornar-se « filho no Filho » e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão beatífica com Deus. Por isso, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.

Em virtude da sua dignidade pessoal, o ser humano é sempre um valor em si e por si, e exige ser considerado e tratado como tal, e nunca ser considerado e tratado como um objecto que se usa, um instrumento, uma coisa.

A dignidade pessoal constitui o fundamento da igualdade de todos os homens entre si. Daí, a absoluta recusa de todas as mais variadas formas de discriminação que, infelizmente, continuam a dividir e a humilhar a família humana, desde as raciais e económicas às sociais e culturais, das políticas às geográficas, etc. Toda a discriminação é uma injustiça absolutamente intolerável, não tanto pelas tensões e conflitos que pode gerar no tecido social, quanto pela desonra feita à dignidade da pessoa: não só à dignidade daquele que é vítima da injustiça, mas ainda mais à daquele que pratica essa injustiça.

Fundamento da igualdade de todos os homens entre si, a dignidade pessoal é, ao mesmo tempo, o fundamento da participação e da solidariedade dos homens entre si: o diálogo e a comunhão têm a sua raiz última naquilo que os homens « são », antes e mais ainda do que naquilo que eles « têm ».

A dignidade pessoal é propriedade indestrutível de cada ser humano. É fundamental compreender-se toda a força que irrompe desta afirmação, que se baseia na unicidade e na irrepetibilidade de toda a pessoa. Dela deriva que o indivíduo seja irredutível a tudo o que o queira esmagar e anulá-lo no anonimato da colectividade, da instituição, da estrutura, do sistema. A pessoa, na sua individualidade, não é um número, não é o anel de uma cadeia, nem uma peça da engrenagem de um sistema. A afirmação mais radical e exaltante do valor de cada ser humano foi feita pelo Filho de Deus ao encarnar no seio de uma mulher. E disto continua a falar-nos o Natal cristão.(136)

Venerar o inviolável direito à vida

38. O reconhecimento efectivo da dignidade pessoal de cada ser humano exige o respeito, a defesa e a promoção dos direitos da pessoa humana. Trata-se de direitos naturais, universais e invioláveis: ninguém, nem o indivíduo, nem o grupo, nem a autoridade, nem o Estado, pode modificar e muito menos eliminar esses direitos que emanam do próprio Deus.

Ora, a inviolabilidade da pessoa, reflexo da inviolabilidade absoluta do próprio Deus, tem a sua primeira e fundamental expressão na inviolabilidade da vida humana. É totalmente falsa e ilusória a comum defesa, que aliás justamente se faz, dos direitos humanos — como por exemplo o direito à saúde, à casa, ao trabalho, à família e à cultura, — se não se defende com a máxima energia o direito à vida, como primeiro e fontal direito, condição de todos os outros direitos da pessoa.

A Igreja nunca se deu por vencida perante todas as violações que o direito à vida, que é próprio de cada ser humano, tem sofrido e continua a sofrer, tanto por parte dos indivíduos como mesmo até por parte das próprias autoridades. O titular desse direito é o ser humano, em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a concepção até à morte natural, e em todas as suas condições, tanto de saúde como de doença, de perfeição ou de deficiência, de riqueza ou de miséria. O Concílio Vaticano II afirma abertamente: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e de jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis; todas estas coisas e outras semelhantes são, sem dúvida, infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que as padecem, e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».(137)

Ora, se a todos pertencem a missão e a responsabilidade de reconhecer a dignidade pessoal de cada ser humano e de defender o seu direito à vida, certos fiéis leigos são a isso chamados por um título particular: são os pais, os educadores, os agentes da saúde e todos os que detêm o poder económico e político.

Ao aceitar amorosa e generosamente toda a vida humana, sobretudo se fraca e doente, a Igreja vive hoje um momento fundamental da sua missão, tanto mais necessária quanto mais avassaladora se tornou uma « cultura de morte ». De facto, « a Igreja firmemente acredita que a vida humana, mesmo se fraca e sofredora, é sempre um dom maravilhoso do Deus da bondade. Contra o pessimismo e o egoísmo, que ensombram o mundo, a Igreja está do lado da vida: e em cada vida humana ela consegue descobrir o esplendor daquele " Sim ", daquele " Amen ", que é o próprio Cristo (cf. 2 Cor 1, 19; Ap 3, 14). Ao "não" que avassala e aflige o mundo, contrapõe esse vivo "Sim", defendendo dessa maneira o homem e o mundo daqueles que ameaçam e mortificam a vida ».(138) Pertence aos fiéis leigos, que mais directamente ou por vocação ou por profissão se ocupam do acolher a vida, tornar concreto e eficaz o "sim" da Igreja à vida humana.

Nas fronteiras da vida humana abrem-se hoje novas possibilidades e responsabilidades com o enorme progresso das ciências biológicas e médicas, aliado ao surpreendente poder tecnológico: o homem, com efeito, é já capaz, não só de « observar » mas também de « manipular » a vida humana no seu início e nas primeiras fases de seu desenvolvimento.

A consciência moral da humanidade não pode ficar alheia ou indiferente perante os passos gigantescos dados por uma força tecnológica que consegue ter um domínio cada vez mais vasto e profundo sobre os dinamismos que presidem à procriação e às primeiras fases do desenvolvimento da vida humana. Talvez nunca como hoje e neste campo, a sabedoria se revela como única ancora de salvação, para que o homem, na investigação científica e na aplicada, possa agir sempre com inteligência e com amor, isto é, no respeito, diria mesmo na veneração, da inviolável dignidade pessoal de todo o ser humano, desde o primeiro instante da sua existência. Isso acontece quando, usando meios lícitos, a ciência e a técnica se empenham na defesa da vida e na cura da doença, desde os inícios, recusando, no entanto, — pela própria dignidade da investigação — intervenções que se tornem perturbadoras do património genético do indivíduo e da geração humana.(139)

Os fiéis leigos que, a qualquer título ou a qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na esfera médica, social, legislativa e económica, devem corajosamente enfrentar os «desafios » que lhes lançam os novos problemas da bioética. Como disseram os Padres sinodais, « os cristãos devem exercer a sua responsabilidade como donos da ciência e da tecnologia, não como seus escravos ... Em ordem a esses "desafios" morais, que estão para serem lançados pela nova e imensa força da tecnologia e que põem em perigo, não só os direitos fundamentais dos homens, mas a própria essência biológica da espécie humana, é da máxima importância que os leigos cristãos — com a ajuda de toda a Igreja — tomem a peito o enquadramento da cultura nos princípios de um humanismo autêntico, de forma que a promoção e a defesa dos direitos do homem possam encontrar fundamento dinâmico e seguro na sua própria essência, aquela essência que a pregação evangélica revelou aos homens ».(140)

É urgente que todos, hoje, estejam alertados para o fenómeno da concentração do poder, e, em primeiro lugar, do poder tecnológico. Tal concentração tende, com efeito, a manipular, não só a essência biológica, mas também os conteúdos da própria consciência dos homens e os seus padrões de vida, agravando, assim, a discriminação e a marginalização de povos inteiros.

Livres de invocar o nome do Senhor

39. O respeito da dignidade pessoal, que comporta a defesa e a promoção dos direitos humanos, exige que se reconheça a dimensão religiosa do homem. Não se trata de uma exigência meramente « confessional », mas sim, de uma exigência que mergulha a sua raiz inextirpável na própria realidade do homem. A relação com Deus é, na verdade, elemento constitutivo do próprio « ser » e « existir » do homem: é em Deus que nós « vivemos, nos movemos e existimos » (Act 17, 28). Se nem todos acreditam nesta verdade, todos os que dela estão convencidos têm o direito de serem respeitados na sua fé e nas opções de vida, individual e comunitária, que dela derivam. Este é o direito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa, cujo efectivo reconhecimento está entre os bens mais elevados e entre os deveres mais graves de todo o povo que queira verdadeiramente assegurar o bem da pessoa e da sociedade: « A liberdade religiosa, exigência insuprimível da dignidade de todos e de cada um dos homens, constitui uma pedra angular do edifício dos direitos humanos; e, portanto, é um factor in substituível do bem das pessoas e de toda a sociedade, assim como da realização pessoal de cada um. Disto resulta, consequentemente, que a liberdade das pessoas consideradas individualmente e das comunidades professarem e praticarem a própria religião é um elemento essencial da convivência pacífica dos homens ... O direito civil e social à liberdade religiosa, ao atingir a esfera mais íntima do espírito, torna-se ponto de referência e, de certo modo, a medida dos outros direitos fundamentais ».(141)

O Sínodo não se esqueceu dos muitos irmãos e irmãs que ainda não gozam desse direito e que têm de enfrentar dificuldades, marginalizações, sofrimentos, perseguições e, por vezes, a morte por causa da confissão da fé. São, na sua maioria, irmãos e irmãs do laicado cristão. O anúncio do Evangelho e o testemunho cristão da vida no sofrimento e no martírio são o ápice do apostolado dos discípulos de Cristo, assim como o amor ao Senhor Jesus até ao dom da própria vida constitui uma fonte de fecundidade extraordinária para a edificação da Igreja. A mística videira mostra, assim, a sua vitalidade, como sublinhava Santo Agostinho: « Mas essa videira, como fora preanunciado pelos Profetas e pelo próprio Senhor, que espalhava pelo mundo inteiro as suas vides carregadas de fruto, tanto mais vicejava quanto mais a regava o abundante sangue dos mártires ».(142)

A Igreja inteira sente-se profundamente grata com esse exemplo e com esse dom: desses seus filhos ela tira razões para renovar o seu impulso de vida santa e apostólica.

Nesse sentido, os Padres sinodais consideraram seu especial dever « agradecer àqueles leigos que vivem quais incansáveis testemunhas da fé, em união fiel com a Sé Apostólica, apesar das restrições à liberdade e da falta de ministros sagrados. Eles jogam tudo, até a própria vida. Dessa maneira, os leigos dão testemunho de uma propriedade essencial da Igreja: a Igreja de Deus nasce da graça de Deus e a forma mais sublime de o manifestar é o martírio ».(143)

Quanto até aqui dissemos sobre o respeito pela dignidade pessoal e sobre o reconhecimento dos direitos humanos, prende-se, sem dúvida, com a responsabilidade de cada cristão, de cada homem. Mas, devemos imediatamente sublinhar como isso se revista hoje de uma dimensão mundial: trata-se, de facto, de uma questão que já atinge grupos humanos inteiros, até povos inteiros, que são violentamente espezinhados nos seus direitos fundamentais. Daí, aquelas formas de desigualdade de progresso entre os diversos Mundos que na recente Encíclica Sollicitudo rei socialis foram abertamente denunciadas.

O respeito pela pessoa humana ultrapassa a exigência de uma moral individual e coloca-se como critério de base, quase como pilar fundamental, na estruturação da própria sociedade, sendo a sociedade inteiramente finalizada para a pessoa.

Assim, intimamente ligada à responsabilidade de servir a pessoa põe-se a responsabilidade de servir a sociedade, qual tarefa geral daquela animação cristã da ordem temporal a que os fiéis leigos são chamados segundo as modalidades próprias e específicas.

A família, primeiro espaço para o empenhamento social

40. A pessoa humana tem uma natural e estrutural dimensão social enquanto é chamada, desde o seu íntimo, à comunhão com os outros e à doação aos outros: « Deus, que cuida paternamente de todos, quis que os homens formassem uma só família e se tratassem entre si com espirito de irmãos ».(144) E, assim, a sociedade, fruto e sinal da sociabilidade do homem, mostra a sua verdade plena ao constituir-se comunhão de pessoas.

Dá-se interdependência e reciprocidade entre a pessoa e a sociedade: tudo o que for feito em favor da pessoa é também serviço feito à sociedade, e tudo o que for realizado em favor da sociedade reverte-se em benefício da pessoa. Por isso, o empenhamento apostólico dos fiéis leigos na ordem temporal adquire sempre e de forma indissolúvel um significado de serviço ao homem indivíduo na sua unicidade e irrepetibilidade e um significado de serviço a todos os homens.

Ora, a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a família: « Deus não criou o homem para o deixar sozinho; desde o princípio "homem e mulher os criou" (Gn 1, 27) e a sua união constitui a primeira expressão de comunhão de pessoas ».(145) Jesus mostrou-se preocupado em restituir ao casal a sua inteira dignidade (Mt 19, 3-9) e à família a sua própria solidez (Mt 19, 4-6); São Paulo mostrou a relação profunda do matrimónio com o mistério de Cristo e da Igreja (Ef 5, 22-4, 6; Col 3,18-21; cf. 1 Ped 3,1-7).

O casal e a família constituem o primeiro espaço para o empenhamento social dos fiéis leigos. Trata-se de um empenho que só poderá ser desempenhado adequadamente na convicção do valor único e insubstituível da família para o progresso da sociedade e da própria Igreja.

Berço da vida e do amor, onde o homem « nasce » e « cresce », a família é a célula fundamental da sociedade. Deve reservar-se a essa comunidade uma solicitude privilegiada, sobretudo quando o egoísmo humano, as campanhas contra a natalidade, as políticas totalitárias, e também as situações de pobreza e de miséria física, cultural e moral, bem como a mentalidade edonista e consumista conseguem extinguir as fontes da vida, e onde as ideologias e os diversos sistemas, aliados a formas de desinteresse e de falta de amor, atentam contra a função educativa própria da família.

É urgente, portanto, realizar uma acção vasta, profunda e sistemática, apoiada não só na cultura, mas também nos meios económicos e nos instrumentos legislativos, destinada a assegurar à família a sua função de ser o lugar primário da « humanização » da pessoa e da sociedade.

A acção apostólica dos fiéis leigos consiste, antes de mais, em tornar a família consciente da sua identidade de primeiro núcleo social de base e do seu papel original na sociedade, para que a própria família se torne cada vez mais protagonista activa e responsável do seu crescimento e da sua participação na vida social. Dessa forma, a família poderá e deverá exigir de todos, a começar pelas autoridades públicas, o respeito por aqueles direitos que, salvando a família, salvam a mesma sociedade.

O que se escreveu na Exortação Familiaris consortio sobre a participação no progresso da sociedade (146) e o que a Santa Sé, a convite do Sínodo dos Bispos de 1980, formulou com a « Carta dos Direitos da Família » representa um programa operativo completo e orgânico para todos os fiéis leigos que, a qualquer título, estão interessados na promoção dos valores e das exigências da família: um programa cuja realização deve impor-se com tanta maior urgência e decisão quanto mais graves se fazem as ameaças à estabilidade e à fecundidade da família e quanto mais forte e sistemática se tornar a tentativa de marginalizar a família e de a esvaziar do seu peso social.

Como a experiência ensina, a civilização e a solidez dos povos dependem sobretudo da qualidade humana das próprias famílias. Assim, a acção apostólica em favor da família adquire um valor social incomparável. A Igreja, por sua parte, está profundamente convencida disso, bem sabendo que « o futuro da humanidade passa através da família ».(147)

A caridade, alma e sustentáculo da solidariedade

41. O serviço feito à sociedade exprime-se e concretiza-se de variadíssimas maneiras: desde as livres e informais às institucionais, desde a ajuda dada aos indivíduos à que se destina aos vários grupos e comunidades de pessoas.

Toda a Igreja, como tal, é directamente chamada ao serviço da caridade: « A santa Igreja, assim como nos seus primeiros tempos, juntando a "ágape" à ceia eucarística, se mostrava toda unida à volta de Cristo pelo vínculo da caridade, assim em todos os tempos se pode reconhecer por este sinal do amor. E alegrando-se com as realizações alheias, ela reserva para si, como dever e direito próprios, que não pode alienar, as obras de caridade. Por isso, a misericórdia para com os pobres e enfermos e as chamadas obras de caridade e de mútuo auxílio para socorrer as múltiplas necessidades humanas são pela Igreja honradas de modo especial » (148) A caridade para com o próximo, nas expressões antigas e sempre novas das obras de misericórdia corporais e espirituais, representa o conteúdo mais imediato, comum e habitual da animação cristã da ordem temporal que constitui o empenho específico dos fiéis leigos.

Com a caridade para com o próximo, os fiéis leigos vivem e manifestam a sua participação na realeza de Jesus Cristo, isto é, no poder do Filho do homem que « não veio para ser servido, mas para servir » (Mc 10, 45): vivem e manifestam essa realeza na forma mais simples que é possível a todos e sempre e, ao mesmo tempo, na forma mais digna, pois a caridade é o dom mais alto que o Espírito dá em ordem à edificação da Igreja (1 Cor 13, 13) e ao bem da humanidade. A caridade, com efeito, anima e sustenta a solidariedade activa que olha para a totalidade das necessidades do ser humano.

Uma caridade assim, actuada não só pelos indivíduos, mas também, de forma solidária, pelos grupos e pelas comunidades, é e será sempre necessária: nada e ninguém a pode e poderá substituir, nem sequer as múltiplas instituições e iniciativas públicas, que também se esforçam por dar resposta às carências — muitas vezes hoje tão graves e generalizadas — de uma população. Paradoxalmente, essa caridade é tanto mais necessária quanto mais as instituições, ao tornarem-se complexas na organização e pretendendo gerir todos os espaços disponíveis, acabam por se esvaziar devido ao funcionalismo impessoal, à burocracia exagerada, aos interesses privados injustos e ao desinteresse fácil e generalizado.

Precisamente neste contexto, continuam a aparecer e a espalhar-se, sobretudo nas sociedades organizadas, diversas formas de voluntariado que se traduzem numa multiplicidade de serviços e de obras. Se for vivido na sua verdade de serviço desinteressado ao bem das pessoas, especialmente as mais carecidas e as mais abandonadas dos próprios serviços sociais, o voluntariado deve ser visto como sendo uma importante expressão de apostolado, onde os fiéis leigos, homens e mulheres, desempenham um papel de primeiro plano.

Todos destinatários e protagonistas da política

42. A caridade que ama e serve a pessoa nunca poderá estar dissociada da justiça: uma e outra, cada qual à sua maneira, exigem o pleno reconhecimento efectivo dos direitos da pessoa, a que é ordenada a sociedade com todas as suas estruturas e instituições.(149)

Para animar cristãmente a ordem temporal, no sentido que se disse de servir a pessoa e a sociedade, os fiéis leigos não podem absolutamente abdicar da participação na « política », ou seja, da múltipla e variada acção económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover organica e institucionalmente o bem comum. Como repetidamente afirmaram os Padres sinodais, todos e cada um têm o direito e o dever de participar na política, embora em diversidade e complementariedade de formas, níveis, funções e responsabilidades. As acusações de arrivismo, idolatria de poder, egoísmo e corrupção que muitas vezes são dirigidas aos homens do governo, do parlamento, da classe dominante ou partido político, bem como a opinião muito difusa de que a política é um lugar de necessário perigo moral, não justificam minimamente nem o cepticismo nem o absenteismo dos cristãos pela coisa pública.

Pelo contrário, é muito significativa a palavra do Concílio Vaticano II: « A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, ao serviço dos homens ».(150)

Uma política em favor da pessoa e da sociedade tem o seu critério de base na busca do bem comum, como bem de todos os homens e do homem todo, bem oferecido e garantido para ser livre e responsavelmente aceite pelas pessoas, tanto individualmente como em grupo « A comunidade política — lemos na Constituição Gaudium et spes — existe precisamente em vista do bem comum; nele ela encontra a sua completa justificação e significado e dele deriva o seu direito natural e próprio. Quanto ao bem comum, ele compreende o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição ».(151)

Além disso, uma política em favor da pessoa e da sociedade encontra a sua linha constante de acção na defesa e na promoção da justiça, entendida como « virtude » para a qual todos devem ser educados e como « força » moral que apoia o empenho em favorecer os direitos e os deveres de todos e de cada um, na base da dignidade pessoal do ser humano.

No exercício do poder político é fundamental o espírito de serviço, único capaz de, ao lado da necessária competência e eficiência, tornar « transparente » ou « limpa » a actividade dos homens políticos, como aliás o povo justamente exige. Isso pressupõe a luta aberta e a decidida superação de certas tentações, tais como, o recurso à deslealdade e à mentira, o desperdício do dinheiro público em vantagem de uns poucos e com miras de clientela, o uso de meios equívocos ou ilícitos para a todo o custo conquistar, conservar e aumentar o poder.

Os fiéis leigos empenhados na política devem certamente respeitar a autonomia das realidades terrenas, rectamente entendida, como lemos na Constituição Gaudium et spes: « É de grande importância, sobretudo onde existe uma sociedade pluralista, que se tenha uma concepção exacta das relações entre a comunidade política e a Igreja, e ainda que se distingam claramente as actividades que os fiéis, isoladamente ou em grupo, desempenham em próprio nome como cidadãos guiados pela sua consciência de cristãos, e aquelas que eles exercem em nome da Igreja e em união com os seus pastores. A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é, ao mesmo tempo, o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana »,(152) Simultaneamente — e hoje sente-se-o com urgência e responsabilidade — os fiéis leigos devem dar testemunho daqueles valores humanos e evangélicos que estão intimamente ligados à própria actividade política, como a libertade e a justiça, a solidariedade, a dedicação fiel e desinteressada ao bem de todos, o estilo simples de vida, o amor preferencial pelos pobres e pelos últimos. Isso exige que os fiéis leigos sejam cada vez mais animados de uma real participação na vida da Igreja e iluminados pela sua doutrina social. Para isso poder-lhes-á ser de apoio e de ajuda a familiaridade com as comunidades cristãs e com os seus Pastores.(153)

Estilo e meio de realizar uma política que tenha em vista o verdadeiro progresso humano é a solidariedade: esta pede a participação activa e responsável de todos na vida política, desde os cidadãos individualmente aos vários grupos, sindicatos e partidos: todos e cada um somos simultaneamente destinatários e protagonistas da política. Neste campo, como escrevi na Encíclica Sollicitudo rei socialis, a solidariedade « não é um sentimento de vaga compaixão ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos ».(154)

A solidariedade política deve hoje actuar-se num horizonte que, superando uma simples nação ou um simples bloco de nações, assuma uma dimensão mais propriamente continental e mundial.

O fruto da actividade política solidária, a que todos tanto aspiram, e, todavia, sempre tão imperfeito, é a paz. Os fiéis leigos não podem ficar indiferentes, estranhos e indolentes diante de tudo o que negue ou comprometa a paz: violência e guerra, tortura e terrorismo, campos de concentração, militarização da política, corrida aos armamentos, ameaça nuclear. Antes, como discípulos de Cristo « Príncipe da paz » (Is 9, 5) e « Nossa Paz » (Ef 2, 14), os fiéis leigos devem assumir o dever de serem « construtores de paz » (Mt 5, 9), tanto com a conversão do « coração », como com a acção em favor da verdade, da liberdade, da justiça e da caridade que são os fundamentos irrenunciáveis da paz.(155)

Colaborando com todos aqueles que procuram verdadeiramente a paz e servindo-se dos específicos organismos e instituições nacionais e internacionais, os fiéis leigos deverão promover uma capilar acção educativa destinada a neutralizar a dominante cultura do egoísmo, do ódio, da vingança e da inimizade e a desenvolver a cultura da solidariedade a todos os níveis. Tal solidariedade, com efeito, « é caminho para a paz e simultaneamente para o progresso ».(156) Nesta ordem de ideias, os Padres sinodais convidaram todos os cristãos a recusar formas inaceitáveis de violência, a promover comportamentos de diálogo e de paz e a empenhar-se na instauração de uma ordem social e internacional justa.157

Pôr o homem no centro da vida económico-social

43. O serviço prestado à sociedade pelos fiéis leigos tem um seu momento essencial na questão económico-social, cuja chave é dada pela organização do trabalho.

A gravidade actual de tais problemas, individuada no panorama do progresso e segundo a proposta de solução oferecida pela doutrina social da Igreja, foi recordada recentemente na Encíclica Sollicitudo rei socialis, que quero vivamente recomendar a todos, em especial aos fiéis leigos.

Entre os principios fundamentais da doutrina social da Igreja encontra-se o do destino universal dos bens: os bens da terra são, no desígnio de Deus, oferecidos a todos os homens e a cada um deles como meio do desenvolvimento de uma vida autenticamente humana. A propriedade privada que, precisamente por isso, possui uma intrínseca função social, está ao serviço desse destino. Concretamente o trabalho do homem e da mulher representa o instrumento mais comum e mais imediato para o progresso da vida económica, instrumento que constitui simultaneamente um direito e um dever de cada homem.

Tudo isto faz parte, de modo particular, da missão dos fiéis leigos. O fim e o critério da sua presença e da sua acção são, em termos gerais, formulados pelo Concílio Vaticano II: « Também na vida económica e social se devem respeitar e promover a dignidade e a vocação integral da pessoa humana e o bem de toda a sociedade. Com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social ».(158)

No contexto das importantes transformações em curso no mundo da economia e do trabalho, os fiéis leigos, empenhem-se em primeira linha na solução dos gravíssimos problemas do crescente desemprego, lutando em favor de uma mais rápida superação das numerosas injustiças que provêm de deficientes organizações do trabalho, transformando o lugar de trabalho numa comunidade de pessoas respeitadas na sua subjectividade e no seu direito à participação, desenvolvendo novas formas de solidariedade entre aqueles que tomam parte no trabalho comum, fomentando novos tipos de empresariedade e revendo os sistemas de comércio, de finança e de intercambios tecnológicos.

Em vista de tais objectivos, os fiéis leigos deverão executar o seu trabalho com competência profissional, com honestidade humana, espírito cristão, como meio da própria santificação,(159) segundo o convite explícito do Concílio: « Com o seu trabalho, o homem sustenta de ordinário a própria vida e a dos seus; por meio dele se une e serve os seus irmãos, pode exercer uma caridade autêntica e colaborar no acabamento da criação divina. Mais ainda, sabemos que, oferecendo a Deus o seu trabalho, o homem se associa à obra redentora de Cristo, o qual conferiu ao trabalho uma dignidade sublime, trabalhando com as suas próprias mãos em Nazaré ».(160)

Em relação com a vida económico-social e com o trabalho, levanta-se hoje, de forma cada vez mais aguda, a chamada questão « ecológica ». Sem dúvida, o homem recebeu do próprio Deus a missão de « dominar » as coisas criadas e de a cultivar o jardim » do mundo; mas, esta é uma tarefa que o homem deve desempenhar no respeito pela imagem divina que recebeu e, portanto, com inteligência e com amor: deve sentir-se responsável pelos dons que Deus lhe deu e continuamente lhe dá. O homem tem nas suas mãos um dom para transmitir — e, possivelmente, mesmo melhorado — às gerações futuras, também elas destinatárias dos dons do Senhor: « O domínio conferido ao homem pelo Criador não é um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e abusar" ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2, 16 s.), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas mas também morais, que não podem impunemente ser transgredidas. Uma justa concepção do desenvolvimento não pode prescindir destas considerações — relativas ao uso dos elementos da natureza, às possibilidades de renovação dos recursos e às consequências de uma industrialização desordenada — as quais propõem uma vez mais à nossa consciência a dimensão moral, que deve distinguir o desenvolvimento ».(161)

Evangelizar a cultura e as culturas do homem

44. O serviço à pessoa e à sociedade humana exprime-se e realiza-se através da criação e transmissão da cultura, que, especialmente nos nossos dias, constitui uma das mais graves tarefas da convivência humana e da evolução social. A luz do Concílio, entendemos por « cultura » todos aqueles « meios com que o homem afina e usa os seus múltiplos dons de alma e de corpo; procura submeter ao seu poder, com o saber e o trabalho, o próprio cosmos; torna mais humana a vida social, tanto na família como em toda a sociedade civil, com o progresso do costume e das instituições; enfim, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e mesmo a humanidade inteira, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações ».(162)

Nesse sentido, a cultura deve ser considerada como o bem comum de cada povo, a expressão da sua dignidade, liberdade e criatividade; o testemunho do seu percurso histórico. Em particular, só dentro e através da cultura, é que a fé cristã se torna histórica e criadora de história.

Perante o progresso de uma cultura que aparece divorciada não só da fé cristã mas até dos próprios valores humanos,(163) bem como perante uma certa cultura científica e tecnológica incapaz de dar resposta à premente procura de verdade e de bem que arde no coração dos homens, a Igreja tem plena consciência da urgência pastoral de se dar à cultura uma atenção toda especial.

Por isso, a Igreja pede aos fiéis leigos que estejam presentes, em nome da coragem e da criatividade intelectual, nos lugares privilegiados da cultura, como são o mundo da escola e da universidade, os ambientes da investigação científica e técnica, os lugares da criação artística e da reflexão humanística. Tal presença tem como finalidade não só o reconhecimento e a eventual purificação dos elementos da cultura existente, criticamente avaliados, mas também a sua elevação, graças ao contributo das originais riquezas do Evangelho e da fé cristã. O que o Concílio Vaticano II escreve sobre a relação entre o Evangelho e a cultura representa um facto histórico constante e, simultaneamente, um ideal de acção de singular actualidade e urgência; é um programa empenhativo que se impõe à responsabilidade pastoral da Igreja inteira e, nela, à responsabilidade específica dos fiés leigos: « A boa nova de Cristo renova continuamente a vida e a cultura do homem decaído, combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos ... Desse modo, a Igreja, só com realizar a própria missão, já com isso mesmo estimula e ajuda a civilização e, com a sua actividade, também a litúrgica, educa o homem para a liberdade interior ».(164)

Merecem ser aqui ouvidas de novo certas expressões particularmente significativas da Exortação Evangelii nuntiandi de Paulo VI: « A Igreja evangeliza quando, unicamente firmada na potência divina da Mensagem que proclama (cfr. Rom 1, 16; 1 Cor 1, 18; 2, 4), procura converter, ao mesmo tempo, a consciência pessoal e colectiva dos homens, a actividade a que se dedicam e a vida e o meio concreto que lhes são próprios. Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação. Poder-se-ia exprimir tudo isto dizendo: importa evangelizar — não de maneira decorativa, como que aplicando uma verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes — a cultura e as culturas do homem ... A ruptura entre o Evangelho e a cultura é, sem dúvida, o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Importa, assim, envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou, mais exactamente, das culturas ».(165)

O caminho que hoje se privilegia para a criação e a transmissão da cultura é o dos instrumentos da comuniçacão social.(166) Também o mundo dos « mass-media », na sequência do acelerado progresso das inovações e da influência, ao mesmo tempo planetária e capilar, sobre a formação da mentalidade e do costume, constitui uma nova fronteira da missão da Igreja. Em particular, a responsabilidade profissional dos fiéis leigos neste campo, exercida, tanto a título pessoal como através de iniciativas e instituições comunitárias, deve ser reconhecida em todo o seu valor e apoiada com mais adequados recursos materiais, intelectuais e pastorais.

No uso e na recepção dos instrumentos de comunicação, tornam-se urgentes tanto uma acção educativa em ordem ao sentido crítico, animado da paixão pela verdade, como uma acção de defesa da liberdade, do respeito pela dignidade pessoal, da elevação da autêntica cultura dos povos, com a recusa, firme e corajosa, de toda a forma de monopolização e de manipulação.

Não deve ficar por esta acção de defesa a responsabilidade pastoral dos fiéis leigos: em todos os caminhos do mundo, também nos principais da imprensa, do cinema, da rádio, da televisão e do teatro, deve anunciar-se o Evangelho que salva.