A g n u s D e i

CHRISTIFIDELES LAICI
João Paulo II
30.12.1988

I
EU SOU A VIDEIRA E VÓS OS RAMOS
A dignidade dos fiéis leigos na Igreja-Mistério

O Mistério da vinha

8. A Bíblia emprega a imagem da vinha de muitas maneiras e com diversos significados: ela serve particularmente para exprimir o mistério do Po vo de Detus. Nesta perspectiva mais interior, os fiéis leigos não são simplesmente os agricultores que trabalham na vinha, mas são parte dessa mesma vinha: « Eu sou a videira, vós os ramos », diz Jesus (Jo 15, 5).

Já no Antigo Testamento os profetas recorriam à imagem da vinha para indicar o povo eleito. Israel é a vinha de Deus, a obra do Senhor, a alegria do Seu coração: « Eu tinha-te plantado como vinha predilecta » (Jer 2, 21); « A tua mãe era como uma videira plantada à beira das águas. Era fecunda e rica em sarmentos, graças à abundancia de água » (Ez 19, 10); « O meu amado possuía uma vinha numa colina fértil. Cavou-a, tirou-lhe as pedras, e plantou-a com varas escolhidas... » (Is 5, 2).

Jesus retoma o símbolo da vinha e dele se serve para revelar alguns aspectos do Reino de Deus: « Um homem plantou uma vinha, cercou-a de uma sebe, cavou nela um lagar e edificou uma torre, depois arrendou-a a uns vinhateiros e partiu para longe » (Mc 12, 1; cf. Mt 21, 28 ss).

O evangelista João convida-nos a penetrar em profundidade e introduz-nos na descoberta do mistério da vinha: esta é o símbolo e a figura, não só do povo de Deus, mas do próprio Jesus. Ele é a cepa e nós, os discípulos, somos os ramos; Ele é a « verdadeira videira », à qual estão vitalmente ligados os ramos (cf. Jo 15, 1 ss.).

O Concílio Vaticano II, referindo as várias imagens bíblicas que iluminam o mistério da Igreja, usa novamente a imagem da videira e das vides: « Cristo é a videira verdadeira que dá vida e fecundidade às vides, isto é, a nós, que por meio da Igreja permanecemos n'Ele e sem o qual nada podemos fazer (Jo 15, 1-5) ».(12) A própria Igreja é, portanto, a vinha evangélica. É mistério, porque o amor e a vida do Pai, do Filho e do Espírito Santo são o dom totalmente gratuito oferecido a todos aqueles que nasceram da água e do Espírito (cf. Jo 3, 5), chamados a reviver a mesma comunhão de Deus e a manifestá-la e a comunicá-la na história (missão): « Naquele dia — diz Jesus — conhecereis que Eu estou no Pai e vós em Mim e Eu em vós » (Jo 14, 20).

Assim, só no interior do mistério da Igreja como mistério de comunhão se revela a « identidade » dos fiéis leigos, a sua original dignidade. E só no interior dessa dignidade se podem definir a sua vocação e a sua missão na Igreja e no mundo.

Quem são os fiéis leigos

9. Os Padres sinodais justamente sublinharam a necessidade de se delinear e propor uma descrição positiva da vocação e da missão dos fiéis leigos, aprofundando o estudo da doutrina do Concílio Vaticano II à luz, tanto dos mais recentes documentos do Magistério como da experiência da mesma vida da Igreja guiada pelo Espírito Santo.(13)

Ao responder à pergunta « quem são os fiéis leigos », o Concílio, ultrapassando anteriores interpretações prevalentemente negativas, abriu-se a uma vissão decididamente positiva e manifestou o seu propósito fundamental ao afirmar a plena pertença dos fiéis leigos à Igreja e ao seu mistério e a índole peculiar da sua vocação, a qual tem como específico « procurar o Reino de Deus tratando das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus ».(14) « Por leigos — assim os descreve a Constituição Lumen gentium — entendem se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja, isto é, os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Baptismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, exercem pela parte que lhes toca, na Igreja e no mundo, a missão de todo o povo cristão ».(15)

Já Pio XII, dizia: « Os fiéis, e mais propriamente os leigos, encontram-se na linha mais avançada da vida da Igreja; para eles, a Igreja é o princípio vital da sociedade humana. Por isso, eles, e sobretudo eles, devem ter uma consciência, cada vez mais clara, não só de pertencerem à Igleja, mas de ser a Igreja, isto é, a comunidade dos fiéis sobre a terra sob a guia do Crefe comum, o Papa, e dos Bispos em comunhão com ele. Eles são a Igreja... ».(16)

Segundo a imagem bíblica da vinha, os fiéis leigos, como todos os outros membros da Igreja, são vides radicadas em Cristo, a verdadeira videira, que torna as vides vivas e vivificantes.

A inserção em Cristo através da fé e dos sacramentos da iniciação cristã é a raiz primeira que dá origem à nova condição do cristão no mistério da Igreja, que constitui a sua mais profunda « fisionomia » e que está na base de todas as vocações e do dinamismo da vida cristã dos fiéis leigos: em Jesus Cristo morto e ressuscitado o baptizado torna-se uma « nova criatura » (Gal 6, 15; 2 Cor 5, 17), uma criatura purificada do pecado e vivificada pela graça.

Assim, só descobrindo a misteriosa riqueza que Deus dá ao cristão no santo Baptismo é possível delinear a « figura » do fiel leigo.

O Baptismo e a novidade cristã

10. Não é um exagero dizer-se que toda a existência do fiel leigo tem por finalidade levá-lo a descobrir a radical novidade cristã que promana do Baptismo, sacramento da fé, a fim de poder viver as suas exigências segundo a vocação que recebeu de Deus. Para descrever a « figura » do fiel.leigo, vamos agora considerar de forma explícita e mais directa, entre outros, estes três aspectos fundamentais: o Baptismo regenera-nos para a vida dos fiIbos de Deus, une-nos a Jesus Cristo e ao Seu Corpo que é a Igreja, unge-nos no Espírito Santo, constituindo-nos templos espirituais.

Filhos no Filho

11. Recordemos as palavras que Jesus disse a Nicodemos: « Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus » (Jo 3, 5). O santo Baptismo é, pois, um novo nascimento, é uma regeneração.

É mesmo a pensar neste aspecto do dom baptismal que o apóstolo Pedro irrompe no canto: « Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que na Sua grande misericórdia nos regenerou pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não pode contaminar-se, e imarcessível » (1 Ped 1, 3-4). Para Pedro, os cristãos são aqueles que foram « regenerados, não de uma semente corruptível, mas incorruptível: pela palavra de Deus viva e eterna » (1 Ped 1, 23).

Com o santo Baptismo tornamo-nos fiIhos de Deus no Seu Unigenito Filho, Jesus Cristo. Ao sair das águas da sagrada fonte, todo o cristão ouve de novo aquela voz que um dia se fez ouvir nas margens do rio Jordão: « Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti pus todo o Meu enlevo » (Lc 3, 22), e compreende ter sido associado ao Filho predilecto, tornando-se filho de adopção (cf. Gal 4, 4-7) e irmão de Cristo. Realiza-se, assim, na história de cada um o desígnio eterno do Pai: « Aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem do Seu Filho, a fim de que Este seja o Primogenito de muitos irmãos » (Rom 8, 29).

É o Espírito Santo que constitui os baptizados em filhos de Deus e, ao mesmo tempo, membros do corpo de Cristo. Paulo recorda-o aos cristãos de Corinto: « Foi num só Espírito que todos nós fomos baptizados, a fim de formarmos um só corpo » (1 Cor 12, 13), de forma que o apóstolo pode dizer aos fiéis leigos: « Sois agora corpo de Cristo e Seus membros, cada um na parte que lhe toca » (1 Cor 12, 27); « Que vós sois filhos prova-o o facto que Deus mandou aos nossos corações o Espírito do Seu Filho » (Gal 4, 6; cf. Rom 8, 15-16).

Um só corpo em Cristo

12. Regenerados como « filhos no Filho », os baptizados são inseparavelmente « membros de Cristo e membros do corpo da Igreja », como ensina o Concílio de Florença.(17)

O Baptismo significa e realiza uma incorporação, mística mas real, no corpo crucificado e glorioso de Jesus. Através do sacramento Jesus une o baptizado à Sua morte para uni-lo à Sua ressurreição (Rom 6, 3-5), despoja-o do « homem velho » e reveste-o do « homem novo », isto é, de Si mesmo: « Todos os que fostes baptizados em Cristo — proclama o apóstolo Paulo — vos revestistes de Cristo » (Gal 3, 27; cf. Ef 4, 22-24; Col 3, 9-10). Daí resulta que « nós, embora sendo muitos, constituimos um só corpo em Cristo » (Rm 12, 5).

Reencontramos nas palavras de Paulo o eco fiel da doutrina do próprio Jesus, que revelou a unidade misteriosa dos Seus discípulos com Ele e entre si, apresentando-a como imagem e prolongamento daquela arcana comunhão que une o Pai ao Filho e o Filho ao Pai no vínculo amoroso do Espírito (cf. Jo 17, 21). Trata-se da mesma unidade de que fala Jesus quando usa a imagem da videira e das vides: « Eu sou a videira, vós as vides » (Jo 15, 5), uma imagem que ilumina, não apenas a profunda intimidade dos discípulos com Jesus, mas também a comunhão vital dos discípulos entre si: todos eles vides da única Videira.

Templos vivos e santos do Espírito

13. Usando uma outra imagem, a do edifício, o apóstolo Pedro define os baptizados como « pedras vivas » edificadas sobre Cristo, a « pedra angular », e destinadas à « construção de um edifício espiritual » (1 Ped 2, 4 ss.). A imagem introduz-nos num outro aspecto da novidade baptismal, e que o Concílio Vaticano II assim apresenta: « Pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, os baptizados são consagrados para serem uma morada espiritual ».(18)

O Espírito Santo « unge » o baptizado, imprime-lhe a Sua marca indelével (cf. 2 Cor 1, 21-22) e faz dele templo espiritual, isto é, enche-o com a santa presença de Deus, graças à união e à conformação com Jesus Cristo.

Com esta espiritual « unção », o cristão pode, por sua vez, repetir as palavras de Jesus: « O Espírito do Senhor está sobre mim: por isso, me ungiu e me enviou para anunciar a Boa Nova aos pobres, para proclamar a libertação aos cativos, e aos cegos o recobrar da vista, para mandar em liberdade os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor » (Lc 4, 18-19; Is 61, 1-2). Assim, com a efusão baptismal e crismal o baptizado torna-se participante na mesma missão de Jesus Cristo, o Messias Salvador.

Partipantes no múnus sacerdotal, profético e real de Jesus Cristo

14. Dirigindo-se aos baptizados como a crianças recém-nascidas, o apóstolo Pedro escreve: « Agarrando-vos a Ele pedra viva, rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus, vós também, quais pedras vivas, sois usados na construção de um edifício espiritual, por meio de um sacerdócio santo, cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus, por Jesus Cristo... Vós, porém, sois a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo que Deus adquiriu para anunciar as maravilhas d'Aquele que vos chamou das trevas à Sua luz admirável ... » (1 Ped 2, 4-5. 9).

Eis um novo aspecto da graça e da dignidade baptismal: os fiéis leigos participam, por sua vez, no tríplice múnus — sacerdotal, profético e real — de Jesus Cristo. Trata-se de um aspecto que a tradição viva da Igreja nunca esqueceu, como resulta, por exemplo, da explicação que Santo Agostinho deu do Salmo 26. Escreve ele: « David foi ungido rei. Naquele tempo ungiam-se apenas o rei e o sacerdote. Nessas duas pessoas prefigurava-se o futuro único rei e sacerdote, Cristo (daí que "Cristo" venha de "crisma"). Não foi, porém, ungido apenas a nossa Cabeça, mas fomos ungidos também nós, Seu corpo... Por isso, a unção diz respeito a todos os cristãos, quando no tempo do Antigo Testamento pertencia apenas a duas pessoas. Deduz-se claramente sermos nós o corpo de Cristo, do facto de sermos todos ungidos e de todos sermos n'Ele "cristos" e Cristo, porque, de certa forma, a Cabeça e o corpo formam o Cristo na sua integridade ».(19)

Nas pisadas do Concílio Vaticano II,(20) propus-me, desde o início do meu serviço pastoral, exaltar a dignidade sacerdotal, profética e real de todo o Povo de Deus, afirmando: « Aquele que nasceu da Virgem Maria, o Filho do carpinteiro — como o julgavam — o Filho do Deus vivo, como confessou Pedro, veio para fazer de todos nós "um reino de sacerdotes". O Concílio Vaticano II recordou-nos o mistério deste poder e o facto de que a missão de Cristo — Sacerdote, Profeta-Mestre, Rei — continua na Igreja. Todos, todo o Povo de Deus participa nesta tríplice missão ».(21)

Com esta Exortação mais uma vez convido os fiéis leigos a reler, a meditar e a assimilar com inteligência e com amor a rica e fecunda doutrina do Concílio sobre a sua participação no tríplice múnus de Cristo.(22) Eis agora em síntese os elementos essenciais dessa doutrina.

Os fiéis leigos participam no múnus sacerdotal, pelo qual Jesus se ofereceu a Si mesmo sobre a Cruz e continuamente Se oferece na celebração da Eucaristia para glória do Pai e pela salvação da humanidade. Incorporados em Cristo Jesus, os baptizados unem-se a Ele e ao Seu sacrifício, na oferta de si mesmos e de todas as suas actividades (cf. Rom 12, 1-2). Ao falar dos fiéis leigos, o Concílio diz: « Todos os seus trabalhos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se tornam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cf. 1 Ped 2, 5); sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo em toda a parte santamente, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo ».(23)

A participação no múnus profético de Cristo, « que, pelo testemunho da vida e pela força da palavra, proclamou o Reino do Pai »,(24) habilita e empenha os fiéis leigos a aceitar, na fé, o Evangelho e a anunciá-lo com a palavra e com as obras, sem medo de denunciar corajosamente o mal. Unidos a Cristo, o « grande profeta » (Lc 7, 16), e constituidos no Espírito « testemunhas » de Cristo Ressuscitado, os fiéis leigos tornam-se participantes quer do sentido de fé sobrenatural da Igreja que « não pode errar no crer »(25) quer da graça da palavra (cf. Act 2, 17-18; Ap 19,10); eles são igualmente chamados a fazer brilhar a novidade e a força do Evangelho na sua vida quotidiana, familiar e social, e a manifestar, com paciência e coragem, nas contradições da época presente, a sua esperança na glória « também por meio das estruturas da vida secular ».(26)

Ao pertencerem a Cristo Senhor e Rei do universo, os fiéis leigos participam no Seu múnus real e por Ele são chamados para o serviço do Reino de Deus e para a sua difusão na história. Vivem a realeza cristã, sobretudo no combate espiritual para vencerem dentro de si o reino do pecado (cf. Rom 6, 12), e depois, mediante o dom de si, para servirem, na caridade e na justiça, o próprio Jesus presente em todos os seus irmãos, sobretudo nos mais pequeninos (cf. Mt 25, 40).

Mas os fiéis leigos são chamados de forma particular a restituir à criação todo o seu valor originário. Ao ordenar as coisas criadas para o verdadeiro bem do homem, com uma acção animada pela vida da graça, os fiéis leigos participam no exercício do poder com que Jesus Ressuscitado atrai a Si todas as coisas e as submete, com Ele mesmo, ao Pai, por forma a que Deus seja tudo em todos (cf. 1 Cor 15, 28; Jo 12, 32).

A participação dos fiéis leigos no tríplice múnus de Cristo Sacerdote, Profeta e Rei encontra a sua raiz primeira na unção do Baptismo, o seu desenvolvimento na Confirmação e a sua perfeição e sustento dinamico na Eucaristia. É uma participação que se oferece a cada um dos fiéis leigos, mas enquanto formam o único corpo do Senhor. Com efeito, é a Igreja que Jesus enriquece com os Seus dons, qual Seu Corpo e Sua Esposa. Assim, os indivíduos participam no tríplice múnus de Cristo enquanto membros da Igreja, como claramente ensina o apóstolo Pedro, que define os baptizados como « raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo que Deus adquiriu » (1 Ped 2, 9). Precisamente por derivar da comunhão eclesial, a participação dos fiéis leigos no tríplice múnus de Cristo exige ser vivida e actuada na comunhão e para o crescimento da mesma comunhão. Escrevia Santo Agostinho: « Como chamamos a todos cristãos em virtude do místico crisma, assim a todos chamamos sacerdotes porque são membros do único Sacerdote ».(27)

Os fiéis leigos e a índole secular

15. A novidade cristã é o fundamento e o título da igualdade de todos os baptizados em Cristo, de todos os membros do Povo de Deus: « Comum é a dignidade dos membros, pela regeneração em Cristo, comum a graça dos filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e indivisa caridade ».(28) Em virtude da comum dignidade baptismal, o fiel leigo é corresponsável, juntamente com os ministros ordenados e com os religiosos e as religiosas, da missão da Igreja.

Mas a comum dignidade baptismal assume no fiel leigo uma modalidade que o distingue, sem todavia o separar, do presbítero, do religioso e da religiosa. O Concílio Vaticano II apontou a índole secular como sendo essa modalidade: « A índole secular é própria e peculiar dos leigos ».(29)

Precisamente para se entender de forma completa, adequada e específica a condição eclesial do fiel leigo, é preciso aprofundar o alcance teológico da índole secular, á luz do plano salvífico de Deus e do mistério da Igreja.

Como dizia Paulo VI, a Igreja « tem uma autêntica dimensão secular, inerente á sua íntima natureza e missão, cuja raiz mergulha no mistério do Verbo encarnado e que se concretiza de formas diversas para os seus membros ».(30)

A Igreja, com efeito, vive no mundo, embora não seja do mundo (cf. Jo 17, 16) e é enviada para dar continuidade à obra redentora de Jesus Cristo, a qual, « visando por natureza salvar os homens, compreende também a instauração de toda a ordem temporal ».(31)

É verdade que todos os membros da Igreja participam na sua dimensão secular, mas de maneiras diferentes. Nomeadamente a participação dos fiéis leigos tem uma sua modalidade de actuação e de função, que, segundo o Concílio, lhes é « própria e peculiar »: tal modalidade é indicada na expressão « índole secular ».(32)

Efectivamente, o Concílio descreve a condição secular dos fiéis leigos indicando-a, antes de mais, como o lugar onde lhes é dirigida a chamada de Deus: « Aí são chamados por Deus ».(33) Trata-se de um « lugar » descrito em termos dinâmicos: os fiéis leigos « vivem no século, isto é, empenhados em toda a qualquer ocupação e actividade terrena e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência ».(34) Os fiéis leigos são pessoas que vivem a vida normal no mundo, estudam, trabalham, estabelecem relações amigáveis, sociais, profissionais, culturais, etc. O Concílio considera essa sua condição não simplesmente como um dado exterior e ambiental, mas como uma realidade destinada a encontrar em Jesus Cristo a plenitude do seu significado.(35) Mais, atesta que: « O próprio Verbo encarnado quis participar da vida social dos homens... Santificou os laços sociais e, antes de mais, os familiares, fonte da vida social, e submeteu-Se livremente às leis do Seu país. Quis levar a vida de um operário do Seu tempo e da Sua terra ». (36)

O « mundo » torna-se assim o ambiente e o meio da vocação cristã dos fiéis leigos, pois também ele está destinado a dar glória a Deus Pai em Cristo. O Concílio pode, então, indicar qual o sentido próprio e peculiar da vocação divina dirigida aos fiéis leigos. Estes não são chamados a deixar o lugar que ocupam no mundo. O Baptismo não os tira de modo nenhum do mundo, como sublinha o apóstolo Paulo: « Irmãos, fique cada um de vós diante de Deus na condição em que estava quando foi chamado » (1 Cor 7, 24); mas confia-lhes uma vocação que diz respeito a essa mesma condição intra-mundana: pois, os fiéis leigos « são chamados por Deus para que aí, exercendo o seu próprio ofício, inspirados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais, pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade ».(37) Dessa forma, o estar e o agir no mundo são para os fiéis leigos uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial, pois, é na sua situação intra-mundana que Deus manifesta o Seu plano e comunica a especial vocação de « procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus ».(38)

E foi precisamente nesta linha que os Padres sinodais afirmaram: « A índole secular do fiel leigo não deve, pois, definir-se apenas em sentido sociológico, mas sobretudo em sentido teológico. A característica secular é vista á luz do acto criador e redentor de Deus, que confiou o mundo aos homens e às mulheres, para tomarem parte na obra da criação, libertarem a mesma criação da influência do pecado e santificarem a si mesmos no matrimónio ou na vida celibatária, na família, no emprego e nas várias actividades sociais ».(39)

A condição eclesial dos fiéis leigos é radicalmente definida pela sua novidade cristã e caracterizada pela sua índole secular.(40)

As imagens evangélicas do sal, da luz e do fermento, emboram se refiram indistintamente a todos os discípulos de Jesus, têm uma específica aplicação nos fiéis leigos. São imagens maravilhosamente significativas, porque falam, não só da inserção profunda e da participação plena dos fiéis leigos na terra, no mundo, na comunidade humana, mas também e, sobretudo, da novidade e da originalidade de uma inserção e de uma participação destinadas à difusão do Evangelho que salva.

Chamados à santidade

16. A dignidade do fiel leigo revela-se em plenitude quando se considera a primeira e fundamental vocação que o Pai, em Jesus Cristo por meio do Espírito Santo, dirige a cada um deles: a vocação à santidade, isto é, à perfeição da caridade. O santo é o testemunho mais esplêndido da dignidade conferida ao discípulo de Cristo.

Sobre a universal vocação à santidade, o Concílio Vaticano II teve palavras sobremaneira luminosas. Pode dizer-se que foi precisamente esta a primeira incumbência confiada a todos os filhos e filhas da Igreja por um Concílio que se quis para a renovação evangélica da vida cristã. (41) Tal incumbência não é uma simples exortação moral, mas uma exigência do mistério da Igreja, que não se pode suprimir: a Igreja é a Vinha escolhida, por meio da qual as vides vivem e crescem com a mesma linfa santa e santificadora de Cristo; é o Corpo místico, cujos membros participam da mesma vida de santidade da Cabeça que é Cristo; é a Esposa amada do Senhor Jesus que a Si mesmo Se entregou para a santificar (cf. Ef 5, 25 ss.). O Espírito que santificou a natureza humana de Jesus no seio virginal de Maria (cf. Lc 1, 35) é o mesmo Espírito que habita e actua na Igreja para lhe comunicar a santidade do Filho de Deus feito homem.

Hoje como nunca, urge que todos os cristãos retomem o caminho da renovação evangélica, acolhendo com generosidade o convite apostólico de « ser santos em todas as acções ». O Sínodo extraordinário de 1985, a vinte anos do encerramento do Concílio, insistiu com oportunidade sobre essa urgência: « Sendo a Igreja em Cristo um mistério, ela deve ser vista como sinal e instrumento de santidade... Os santos e santas foram sempre fonte e origem de renovação nas circunstâncias mais difíceis em toda a história da Igreja. Hoje temos muitíssima falta de santos, que devemos pedir com assiduidade ».(42)

Todos na Igreja, precisamente porque são seus membros, recebem e, por conseguinte, partilham a comum vocação à santidade. A título pleno, sem diferença alguma dos outros membros da Igreja, a essa vocação são chamados os fiéis leigos: « Todos os fiéis, de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade »; (43) « Todos os fiéis são convidados e têm por obrigação tender à santidade e à perfeição do próprio estado ».(44)

A vocação à santidade mergulha as suas raízes no Baptismo e volta a ser proposta pelos vários sacramentos, sobretudo pelo da Eucaristia: revestidos de Jesus Cristo e impregnados do Seu Espírito, os cristãos são « santos » e, por isso, são habilitados e empenhados em manifestar a santidade do seu ser na santidade de todo o seu operar. O apóstolo Paulo não se cansa de advertir todos os cristãos para que vivam « como convém a santos » (Ef 5, 3).

A vida segundo o Espírito, cujo fruto é a santificação (Rom 6, 22; cf. Gal 5, 22), suscita e exige de todos e de cada um dos baptizados o seguimento e imitação de Jesus Cristo, no acolhimento das Suas Bem-aventuranças, na escuta e meditação da Palavra de Deus, na consciente e activa participação na vida litúrgica e sacramental da Igreja, na oração individual, familiar e comunitária, na fome e sede de justiça, na prática do mandamento do amor em todas as circunstancias da vida e no serviço aos irmãos, sobretudo os pequeninos, os pobres e os doentes.

Santificar-se no mundo

17. A vocação dos fiéis leigos à santidade comporta que a vida segundo o Espírito se exprima de forma peculiar na sua inserção nas realidades temporais e na sua participação nas actividades terrenas. É ainda o apóstolo que adverte: « Tudo quanto fizerdes por palavras e obras, fazei tudo no nome do Senhor Jesus, dando, por meio d'Ele, graças a Deus Pai » (Col 3, 17). Aplicando as palavras do apóstolo aos fiéis leigos, o Concílio afirma categoricamente: « Nem os cuidados familiares nem outras ocupações profanas devem ser alheias à vida espiritual ».(45) Por sua vez, os Padres sinodais afirmaram: « A unidade de vida dos fiéis leigos é de enorme importância, pois, eles têm que se santificar na normal vida profissional e social. Assim, para que possam responder à sua vocação, os fiéis leigos devem olhar para as atividades da vida quotidiana como uma ocasião de união com Deus e de cumprimento da Sua vontade, e também como serviço aos demais homens, levando-os à comunhão com Deus em Cristo ». (46)

A vocação à santidade deverá ser compreendida e vivida pelos fiéis leigos, antes de mais, como sendo uma obrigação exigente a que não se pode renunciar, como um sinal luminoso do infinito amor do Pai que os regenerou para a Sua vida de santidade. Tal vocação aparece então como componente essencial e inseparável de nova vida baptismal e, por conseguinte, elemento constitutivo da sua dignidade. Ao mesmo tempo, a vocação à santidade anda intimamente ligada à missão e à responsabilidade confiadas aos fiéis leigos na Igreja e no mundo. Com efeito, a própria santidade já vivida, que deriva da participação na vida de santidade da Igreja, representa o primeiro e fundamental contributo para a edificação da própria Igreja, como « Comunhão dos Santos ». Um cenário maravilhoso se abre aos olhos iluminados pela fé: o de inúmeros fiéis leigos, homens e mulheres, que, precisamente na vida e nas ocupações do dia a dia, muitas vezes inobservados ou até incompreendidos e ignorados pelos grandes da terra, mas vistos com amor pelo Pai, são obreiros incansáveis que trabalham na vinha do Senhor, artífices humildes e grandes — certamente pelo poder da graça de Deus — do crescimento do Reino de Deus na história.

A santidade é, portanto, um pressuposto fundamental e uma condição totalmente insubstituível da realização da missão de salvação na Igreja. A santidade da Igreja é a fonte secreta e a medida infalível da sua operosidade apostólica e do seu dinamismo missionário. Só na medida em que a Igreja, Esposa de Cristo, se deixa amar por Ele e O ama, é que ela se torna Mãe fecunda no Espírito.

Retomemos mais uma vez a imagem bíblica: o rebentar e o alastrar das vides dependem da sua inserção na videira. « Como a vide não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em Mim. Eu sou a videira, vós as vides. Quem permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer » (Jo 15, 4-5).

É natural recordar aqui a solene proclamação de fiéis leigos, homens e mulheres, como Beatos e Santos, feita durante o mês do Sínodo. Todo o Povo de Deus, e os fiéis leigos em particular, podem ter agora novos modelos de santidade e novos testemunhos de virtudes heróicas vividos nas condições comuns e ordinárias da existência humana. Como disseram os Padres sinodais: « As Igrejas locais e, sobretudo, as chamadas Igrejas mais jovens deverão procurar diligentemente entre os próprios membros aqueles homens e mulheres que prestaram nessas condições (as condições quotidianas do mundo e o estado conjugal) o testemunho da santidade e que podem servir de exemplo aos demais, a fim de, se for o caso, os proporem para a beatificação e canonização ».(47)

Ao concluir estas reflexões, destinadas a definir a condição eclesial do fiel leigo, vem-me à mente a célebre recomendação de São Leão Magno: « Agnosce, o Christiane, dignitatem tuam! ».(48) É a mesma advertência de São Máximo, Bispo de Turim: « Considerai a honra que vos foi feita neste mistério! ».(49) Todos os baptizados são convidados a ouvir de novo as palavras de Santo Agostinho: « Alegremo-nos e agradeçamos: tornámo-nos não só cristãos, mas Cristo...! Maravilhai-vos e alegrai-vos: Cristo nos tornámos ».(50)

A dignidade cristã, fonte da igualdade de todos os membros da Igreja, garante e promove o espírito de comunhão e de fraternidade e, ao mesmo tempo, torna-se o segredo e a força do dinamismo apostólico e missionário dos fiéis leigos. É uma dignidade exigente, a dignidade dos trabalhadores que o Senhor chamou para a Sua vinha: « Incumbe a todos os leigos — lemos no Concílio — a magnífica tarefa de trabalhar para que o desígnio de salvação atinja cada vez mais os homens de todos os tempos e de toda a terra ».(51)