A g n u s D e i

CENTESIMUS ANNUS
João Paulo II
01.05.1991

VI
O HOMEM É O CAMINHO DA IGREJA

53. Em face da miséria do proletariado, Leão XIII dizia: «Abordamos este argumento com confiança e no nosso pleno direito (...). Parecer-nos-ia faltar à nossa missão, se calássemos» (107). Nos últimos 100 anos, a Igreja manifestou repetidamente o seu pensamento, seguindo de perto a evolução contínua da questão social. Não o fez para recuperar privilégios do passado ou para impor a sua concepção social. O seu único objectivo era o cuidado e a responsabilidade pelo homem, a Ela confiado pelo próprio Cristo: por este homem que, como o Concílio Vaticano II recorda, é a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, e para a qual Deus tem o seu projecto, isto é, a participação na salvação eterna. Não se trata do homem «abstracto», mas do homem real, «concreto», «histórico»: trata-se de cada homem, porque cada um foi englobado no mistério da redenção e Cristo uniu-se com cada um para sempre, através desse mistério. Disto se segue que a Igreja não pode abandonar o homem e que «este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer na realização da sua missão (...) o caminho traçado pelo próprio Cristo, caminho que invariavelmente passa pelo mistério da incarnação e da redenção» (109).

A inspiração que preside à doutrina social da Igreja é esta, e só esta. Se a foi elaborando pouco a pouco de forma sistemática, sobretudo a partir da data que comemoramos, é porque toda a riqueza doutrinal da Igreja tem como horizonte o homem, na sua concreta realidade de pecador e de justo.

54. A doutrina social hoje especialmente visa o homem, enquanto inserido na complexa rede de relações das sociedades modernas. As ciências humanas e a filosofia servem de ajuda para interpretar a centralidade do homem dentro da sociedade, e para o capacitarem a uma melhor compreensão de si mesmo, enquanto «ser social». Todavia somente a fé lhe revela plenamente a sua verdadeira identidade, e é dela precisamente que parte a doutrina social da Igreja, que, recolhendo todos os contributos das ciências e da filosofia, se propõe assistir o homem no caminho da salvação.

A Encíclica Rerum novarum pode ser lida como um importante contributo à análise sócio-económica do fim do século XIX, mas o seu valor particular deriva de ela ser um Documento do Magistério que se insere perfeitamente na missão evangelizadora da Igreja, conjuntamente com muitos outros Documentos desta natureza. Daqui resulta que a doutrina social, por si mesma, tem o valor de um instrumento de evangelização: enquanto tal, anuncia Deus e o mistério de salvação em Cristo a cada homem e, pela mesma razão, revela o homem a si mesmo. A esta luz, e somente nela, se ocupa do resto: dos direitos humanos de cada um e, em particular, do «proletariado», da família e da educação, dos deveres do Estado, do ordenamento da sociedade nacional e internacional, da vida económica, da cultura, da guerra e da paz, do respeito pela vida desde o momento da concepção até à morte.

55. A Igreja recebe o «sentido do homem» da Revelação divina. «Para conhecer o homem, o homem verdadeiro, o homem integral, é preciso conhecer Deus», dizia Paulo VI, citando imediatamente Santa Catarina de Sena, que, em oração, exprimia a mesma doutrina: «Na tua natureza, Divindade eterna, conhecerei a minha natureza» (110).

Portanto, a antropologia cristã é realmente um capítulo da teologia e, pela mesma razão, a doutrina social da Igreja, ocupando-se do homem, interassando-se por ele e pelo seu modo de se comportar no mundo, «pertence (...) ao campo da teologia e especialmente da teologia moral» (11). A dimensão teológica revela-se necessária para interpretar e resolver os problemas actuais da convivência humana. Isto é válido — tenha-se na devida conta — tanto no que se refere à solução «ateia», que priva o homem de uma das suas componentes fundamentais, a espiritual, quanto no que diz respeito às soluções permissivas e consumísticas, que buscam, sob vários pretextos, convencê-lo da sua independência de toda a lei e de Deus, encerrando-o num egoísmo que acaba por lesar a si e aos outros.

Quando a Igreja anuncia ao homem a salvação de Deus, quando lhe oferece e comunica, através dos sacramentos, a vida divina, quando orienta a sua vida segundo os mandamentos do amor a Deus e ao próximo, contribui para a valorização da dignidade do homem. Mas como nunca poderá abandonar esta sua missão religiosa e transcendente a favor do homem, eis porque se empenha sempre com novas forças e novos métodos na evangelização que promove o homem todo. Apesar de se dar conta de que a sua obra encontra hoje particulares dificuldades e obstáculos, a Igreja, quase ao início do Terceiro Milénio, permanece «sinal e salvaguarda do carácter transcendente da pessoa humana» (112) como, aliás, sempre procurou fazer, desde o princípio da sua existência, caminhando conjuntamente com o homem, ao longo de toda a história. A Encíclica Rerum novarum é disso uma expressão significativa.

56. Quero agradecer, no centenário desta Encíclica, a todos os que se empenharam em estudar, aprofundar e divulgar a doutrina social cristã. Para este fim, é indispensável a colaboração das Igrejas locais e faço votos de que a ocorrência seja motivo de um novo estímulo para o seu estudo, divulgação e aplicação nos múltiplos âmbitos da realidade.

Desejava, de modo particular, que ela fosse dada a conhecer e actuada nos Países, onde, após a queda do socialismo real, se revela uma grave desorientação na obra de reconstrução. Por sua vez os Países ocidentais correm o perigo de verem, nesta derrocada, a vitória unilateral do próprio sistema sócio-económico, sem se preocuparem, por isso, em fazerem nele as devidas correcções. Depois os Países do Terceiro Mundo encontram-se mais que nunca na dramática situação do subdesenvolvimento, que cada dia se torna mais grave.

Leão XIII, depois de ter formulado os princípios e as orientações para a solução da questão operária, escreveu esta palavra decisiva: «Cada um realize a parte que lhe compete e não demore porque o atraso poderia ainda tornar mais difícil a cura de um mal já tão grave», acrescentando ainda: «Quanto à Igreja, não deixará de modo nenhum faltar a sua quota-parte» (113).

57. Para a Igreja, a mensagem social do Evangelho não deve ser considerada uma teoria, mas sobretudo um fundamento e uma motivação para a acção. Impelidos por esta mensagem, alguns dos primeiros cristãos distribuíam os seus bens pelos pobres e davam testemunho de que era possível uma convivência pacífica e solidária, apesar das diversas proveniências sociais. Pela força do Evangelho, ao longo dos séculos, os monges cultivaram as terras, os religiosos e as religiosas fundaram hospitais e asilos para os pobres, as confrarias, bem como homens e mulheres de todas as condições empenharam-se a favor dos pobres e dos marginalizados, convencidos de que as palavras de Cristo: «Cada vez que fizestes estas coisas a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes» (Mt 25, 40), não deviam permanecer um piedoso desejo, mas tornar-se um compromisso concreto de vida.

A Igreja está consciente hoje mais que nunca de que a sua mensagem social encontrará credibilidade primeiro no testemunho das obras e só depois na sua coerência e lógica interna. Desta convicção provém também a sua opção preferencial pelos pobres, que nunca será exclusiva nem descriminatória relativamente aos outros grupos. Trata-se, de facto, de uma opção que não se estende apenas à pobreza material, dado que se encontram, especialmente na sociedade moderna, formas de pobreza não só económica mas também cultural e religiosa. O amor da Igreja pelos pobres, que é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-económico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas. Nos Países ocidentais, existe a variada pobreza dos grupos marginalizados, dos anciãos e doentes, das vítimas do consumismo, e ainda de tantos refugiados e emigrantes; nos Países em vias de desenvolvimento, desenham-se no horizonte crises dramáticas se não forem tomadas medidas internacionalmente coordenadas.

58. O amor ao homem — e em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo — concretiza-se na promoção da justica. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem. De facto, não se trata apenas de «dar o supérfluo», mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida, os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades. Não se trata de destruir instrumentos de organização social que deram boa prova de si, mas principalmente de os orientar segundo uma concepção adequada do bem comum dirigido a toda a família humana. Hoje está-se a verificar a denominada «mundialização da economia», fenómeno este que não deve ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar. Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia correspondam válidos organismos internacionais de controle e orientação que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer. Para poder conseguir tal resultado é necessário que cresça o entendimento entre os grandes Países, e que nos organismos internacionais sejam equitativamente representados os interesses da grande família humana. Mas impõe-se também que, ao avaliarem as consequências das suas decisões, tenham em devida conta aqueles povos e Países que têm escasso peso no mercado internacional, mas em si concentram as necessidades mais graves e dolorosas, e necessitam de maior apoio para o seu desenvolvimento. Sem dúvida, há ainda muito a fazer neste campo.

59. Para se cumprir a justiça e serem bem sucedidas as tentativas dos homens para a realizar, é necessário o dom da graça que vem de Deus. Por meio dela, em colaboração com a liberdade dos homens, obtém-se aquela misteriosa presença de Deus na história que é a Providência.

A experiência da novidade vivida no seguimento de Cristo requer a sua comunicação aos outros homens, nas situações concretas das suas dificuldades, lutas, problemas e desafios, para que sejam iluminadas e tornadas mais humanas à luz da fé. Esta não ajuda simplesmente a encontrar soluções, mas torna humanamente aceitáveis inclusive as situações de sofrimento, de modo que nelas o homem não se perca nem esqueça a sua dignidade e vocação.

A doutrina social tem, além disso, uma importante dimensão interdisciplinar. Para encarnar melhor nos diversos contextos sociais, económicos e políticos em contínua mutação, essa doutrina entra em diálogo com diversas disciplinas que se ocupam do homem, assumindo em si os contributos que delas provêm, e ajudando-as, por sua vez, a abrir-se numa dimensão mais ampla ao serviço de cada pessoa, conhecida e amada na plenitude da sua vocação.

A par desta dimensão interdisciplinar, aparece depois a dimensão prática e em certo sentido experimental desta doutrina. De facto, ela situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias, agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para lhe dar forma e aplicação na história.

60. Ao anunciar os princípios para a solução da questão operária, Leão XIII escrevia: «A solução de um problema tão árduo requer o concurso e a cooperação eficaz de outros também» (114). Ele estava convencido que os graves problemas, causados pela sociedade industrial, só podiam ser resolvidos pela colaboração entre todas as forças intervenientes. Essa afirmação tornou-se um elemento permanente da doutrina social da Igreja, e isto explica, entre outras razões, porquê o Papa João XXIII dirigiu a sua Encíclica sobre a paz, também a «todos os homens de boa vontade».

Todavia Leão XIII constatava com tristeza que as ideologias do tempo, especialmente o liberalismo e o marxismo, recusavam essa colaboração. Entretanto muitas coisas mudaram, especialmente nos últimos anos. O mundo de hoje está sempre mais consciente de que a solução dos graves problemas nacionais e internacionais não é apenas uma questão de produção económica ou de uma organização jurídica ou social, mas requer valores ético-religiosos específicos, bem como mudanças de mentalidade, de comportamentos e de estruturas. A Igreja sente-se particularmente responsável em oferecer este contributo e, como escrevi na Encíclica Sollicitudo rei socialis, há fundada esperança de que mesmo o grupo numeroso dos que não professam explicitamente uma religião possa contribuir para esse fundamento ético necessário à questão social (115).

No mesmo Documento, dirigi precisamente um apelo às Igrejas cristãs e a todas as grandes religiões do mundo, convidando-as a dar um testemunho unânime das nossas convicções comuns sobre a dignidade do homem, criado por Deus (116). De facto, estou persuadido que as religiões têm hoje e continuarão a ter um papel proeminente a desempenhar na conservação da paz e na construção de uma sociedade digna do homem.

A disponibilidade para o diálogo e colaboração vale, além disso, para todos os homens de boa vontade e, de modo particular, para as pessoas e grupos com uma responsabilidade específica no campo político, económico e social tanto a nível nacional como internacional.

61. No início da sociedade industrial, foi «o jugo quase servil» que obrigou o meu predecessor a tomar a palavra em defesa do homem. Nestes cem anos, a Igreja permaneceu fiel a esse empenho! De facto, interveio nos anos turbolentos da luta de classes, a seguir à primeira guerra mundial, para defender o homem da exploração económica e da tirania dos sistemas totalitários. Colocou a dignidade de pessoa no centro das suas mensagens sociais, após a segunda guerra mundial, insistindo sobre o destino universal dos bens materiais, sobre uma ordem social sem opressão e fundada no espírito de colaboração e solidariedade. Depois reiterou constantemente que a pessoa e a sociedade não têm necessidade apenas destes bens, mas também de valores espirituais e religiosos. Além disso, tendo verificado cada vez mais como tantos homens vivem, não no bem-estar do mundo ocidental, mas na miséria dos Países em vias de desenvolvimento e padecem uma condição que é ainda a do «jugo quase servil», sentiu-se na obrigação de denunciar essa realidade clara e francamente, embora sabendo que este seu grito não será sempre acolhido favoravelmente por todos.

Cem anos depois da publicação da Rerum novarum, a Igreja encontra-se ainda diante de «coisas novas» e de novos desafios. Por isso, este centenário da Encíclica deve confirmar em sua tarefa todos os «homens de boa vontade», e especialmente os crentes.

62. Esta minha Encíclica quis olhar ao passado, mas ela está sobretudo lançada para o futuro. Como a Rerum novarum, ela coloca-se quase no limiar do novo século e deseja, com a ajuda de Deus, preparar a sua vinda.

A verdadeira e perene «novidade das coisas» em cada tempo provém do infinito poder divino, que diz: «Eis que eu faço novas todas as coisas» (Ap 21, 5). Estas palavras referem-se à conclusão da história quando Cristo «entregar o reino a Deus Pai (...) para que Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 24.28). Mas o cristão sabe que esta novidade, cuja plenitude aguardamos com o Regresso do Senhor, está presente desde a criação do mundo, e, mais precisamente, desde que Deus se fez homem em Jesus Cristo, e com Ele e por Ele realizou uma «nova criação» (2 Cor 5, 17; Gal 6, 15).

Ao concluir, quero agradecer a Deus omnipotente por ter dado à sua Igreja a luz e a força para acompanhar o homem no seu caminho terreno para o destino eterno. A Igreja, também no Terceiro Milénio, permanecerá fiel no assumir como próprio o caminho do homem, sabendo que não caminha só, mas com Cristo, seu Senhor. Foi Ele que fez Seu o caminho do homem, e o guia mesmo quando ele disso não se dá conta.

Maria, a Mãe do Redentor, que permaneceu ao lado de Cristo, no seu caminho ao encontro dos homens e com os homens, e precede a Igreja na peregrinação da fé, acompanhe, com Sua maternal intercessão, a humanidade em direcção ao próximo Milénio, na fidelidade Àquele que «ontem como hoje, é o mesmo e sê-lo-á para sempre» (cf. Heb 13, 8), Jesus Cristo, Nosso Senhor, em Nome do Qual a todos abençoo.

- Dado em Roma, junto de S. Pedro, na memória de S. José Operário, dia 1 de Maio do ano de 1991, décimo terceiro de pontificado.