A g n u s D e i

CENTESIMUS ANNUS
João Paulo II
01.05.1991

IV
A PROPRIETADE PRIVADA E O DESTINO UNIVERSAL DOS BENS

30. Na Rerum novarum, Leão XIII, com diversos argumentos, insistia fortemente, contra o socialismo do seu tempo, no carácter natural do direito de propriedade privada (65). Este direito, fundamental para a autonomia e o desenvolvimento da pessoa, foi sempre defendido pela Igreja até aos nossos dias. De igual modo a Igreja ensina que a propriedade dos bens não é um direito absoluto, mas, na sua natureza de direito humano, traz inscritos os próprios limites.

O Pontífice ao proclamar o direito de propriedade privada, afirmava com igual clareza que o «uso» das coisas, confiado à liberdade, está subordinado ao seu originário destino comum de bens criados e ainda à vontade de Jesus Cristo manifestada no Evangelho. Com efeito, escrevia: «os abastados, portanto, são advertidos (...); os ricos devem tremer, pensando nas ameaças de Jesus Cristo (...); do uso dos seus bens deverão um dia prestar rigorosíssimas contas a Deus Juiz»; e, citando S. Tomás de Aquino, acrescentava: «Mas se se perguntar qual deve ser o uso desses bens, a Igreja (...) não hesita em responder que, a este propósito, o homem não deve possuir os bens externos como próprios, mas como comuns», porque «acima das leis e juízos dos homens está a lei, o juízo de Cristo» (66).

Os sucessores de Leão XIII repetiram a dupla afirmação: a necessidade e, por conseguinte, a liceidade da propriedade privada e conjuntamente os limites que pesam sobre ela (67). Também o Concílio Vaticano II repropôs a doutrina tradicional com palavras que merecem ser textualmente referidas: «o homem, usando destes bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que podem beneficiar não apenas a si, mas também aos outros». E pouco depois: «A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana (...). A própria propriedade privada é, por sua natureza, de índole social, fundada na lei do destino comum dos bens» (68). Retomei a mesma doutrina, primeiramente no discurso à III Conferência do Episcopado latino-americano, em Puebla, e depois nas Encíclicas Laborem exercens e Sollicitudo rei socialis (69).

31. Relendo esse ensinamento relativo ao direito de propriedade e ao destino comum dos bens, no horizonte do nosso tempo, pode-se colocar a questão acerca da origem dos bens que sustentam a vida do homem, satisfazem as suas carências e são objecto dos seus direitos.

A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio acto de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com o seu tabalho e goze dos seus frutos (cf. Gen 1, 28-29). Deus deu a terra a todo o género humano, para que ela sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Está aqui a raiz do destino universal dos bens da terra. Esta, pela sua própria fecundidade e capacidade de satisfazer as necessidades do homem, constitui o primeiro dom de Deus para o sustento da vida humana. Ora, a terra não dá os seus frutos, sem uma peculiar resposta do homem ao dom de Deus, isto é, sem o trabalho: é mediante o trabalho que o homem, usando da sua inteligência e liberdade, consegue dominá-la e estabelecer nela a sua digna morada. Deste modo, ele apropria-se de uma parte da terra, adquirida precisamente com o trabalho. Está aqui a origem da propriedade individual. Obviamente ele tem também a responsabilidade de não impedir que os outros homens tenham igualmente a sua parte no dom de Deus, pelo contrário, deve cooperar com eles para conjuntamente dominarem toda a terra.

Ao longo da história, sempre se encontram estes dois factores — o trabalho e a terra —, no princípio de cada sociedade humana; nem sempre, porém, guardam a mesma relação entre si. Outrora a fecundidade natural da terra revelava-se e, de facto, era o principal factor de riqueza, sendo o trabalho uma espécie de ajuda e apoio a tal fecundidade. No nosso tempo, torna-se cada vez mais relevante o papel do trabalho humano, como factor produtivo das riquezas espirituais e materiais; aparece, além disso, evidente como o trabalho de um homem se cruza naturalmente com o de outros homens. Hoje mais do que nunca, trabalhar é um trabalhar com os outros e um trabalhar para os outros: torna-se cada vez mais um fazer qualquer coisa para alguém. O trabalho é tanto mais fecundo e produtivo, quanto mais o homem é capaz de conhecer as potencialidades criativas da terra e de ler profundamente as necessidades do outro homem, para o qual é feito o trabalho.

32. Mas existe, em particular no nosso tempo, uma outra forma de propriedade, que reveste uma importância nada inferior à da terra: é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber. A riqueza das Nações industrializadas funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade, do que sobre a dos recursos naturais.

Acenou-se pouco antes ao facto de que o homem trabalha com os outros homens, participando num «trabalho social» que engloba progressivamente círculos cada vez mais amplos. Quem produz um objecto, para além do uso pessoal, fá-lo em geral para que outros o possam usar também, depois de ter pago o preço justo, estabelecido de comum acordo, mediante uma livre negociação. Ora, precisamente a capacidade de conhecer a tempo as carências dos outros homens e as combinações dos factores produtivos mais idóneos para as satisfazer, é outra importante fonte de riqueza na sociedade moderna. Aliás, muitos bens não podem ser adequadamente produzidos através de um único indivíduo, mas requerem a colaboração de muitos para o mesmo fim. Organizar um tal esforço produtivo, planear a sua duração no tempo, procurar que corresponda positivamente às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários: também esta é uma fonte de riqueza na sociedade actual. Assim aparece cada vez mais evidente e determinante o papel do trabalho humano disciplinado e criativo e — enquanto parte essencial desse trabalho — das capacidades de iniciativa empresarial (70).

Um tal processo, que faz concretamente ressaltar uma verdade da pessoa, afirmada incessantemente pelo cristianismo, deve ser visto com atenção e favor. Efectivamente, a riqueza principal do homem é, em conjunto com a terra, o próprio homem. É a sua inteligência que o leva a descobrir as potencialidades produtivas da terra e as múltiplas modalidades através das quais podem ser satisfeitas as necessidades humanas. É o seu trabalho disciplinado, em colaboração solidária, que permite a criação de comunidades de trabalho cada vez mais amplas e eficientes para operar a transformação do ambiente natural e do próprio ambiente humano. Para este processo, concorrem importantes virtudes, tais como a diligência, a laboriosidade, a prudência em assumir riscos razoáveis, a confiança e fidelidade nas relações interpessoais, a coragem na execução de decisões difíceis e dolorosas, mas necessárias para o trabalho comum da empresa, e para enfrentar os eventuais reveses da vida.

A moderna economia de empresa comporta aspectos positivos, cuja raiz é a liberdade da pessoa, que se exprime no campo económico e em muitos outros campos. A economia, de facto, é apenas um sector da multiforme actividade humana, e nela, como em qualquer outro campo, vale o direito à liberdade, da mesma forma que o dever de a usar responsavelmente. Mas é importante notar a existência de diferenças específicas entre essas tendências da sociedade actual, e as do passado, mesmo se recente. Se outrora o factor decisivo da produção era a terra e mais tarde o capital, visto como o conjunto de maquinaria e de bens instrumentais, hoje o factor decisivo é cada vez mais o próprio homem, isto é, a sua capacidade de conhecimento que se revela no saber científico, a sua capacidade de organização solidária, a sua capacidade de intuir e satisfazer a necessidade do outro.

33. Contudo não se podem deixar de denunciar os riscos e os problemas conexos com este tipo de processo. De facto, hoje muitos homens, talvez a maioria, não dispõem de instrumentos que consintam entrar, de modo efectivo e humanamente digno, dentro de um sistema de empresa, no qual o trabalho ocupa uma posição verdadeiramente central. Não têm a possibilidade de adquirir os conhecimentos de base que permitam exprimir a sua criatividade e desenvolver as suas potencialidades, nem de penetrar na rede de conhecimentos e intercomunicações, que lhes consentiria ver apreciadas e utilizadas as suas qualidades. Em suma, eles, se não são propriamente explorados, vêem-se amplamente marginalizados, e o progresso económico desenvolve-se, por assim dizer, por cima das suas cabeças, quando não restringe ainda mais os espaços já estreitos das suas economias tradicionais de subsistência. Incapazes de resistir à concorrência de mercadorias produzidas em moldes novos e adequados às necessidades — que antes eles costumavam resolver através das formas organizativas tradicionais —, aliciados pelo esplendor de uma opulência ostensiva, mas para eles inacessível, e ao mesmo tempo constrangidos pela necessidade, estes homens aglomeram-se nas cidades do Terceiro Mundo, onde com frequência aparecem culturalmente desenraizados e encontram-se em situações de precariedade violenta, sem possibilidade de integração. Não se lhes reconhece, de facto, dignidade, e procura-se às vezes eliminá-los da história por meio de formas coercivas de controle demográfico, contrárias à dignidade humana.

Muitos outros, embora não estando totalmente marginalizados, vivem inseridos em ambientes onde a luta pelo necessário é absolutamente primária, e vigoram ainda as regras do capitalismo original, na «crueldade» de uma situação que nada fica a dever à dos momentos mais negros da primeira fase da industrialização. Noutros casos, a terra é ainda o elemento central do processo económico, e aqueles que a cultivam, excluídos da sua posse, estão reduzidos a condições de semi-escravatura (71). Nestas situações pode-se ainda hoje, como no tempo da Rerum novarum, falar de exploração desumana. Apesar das grandes mudanças verificadas nas sociedades mais avançadas, as carências humanas do capitalismo, com o consequente domínio das coisas sobre os homens, ainda não desapareceram; pelo contrário, para os pobres à carência dos bens materiais juntou-se a do conhecimento e da ciência, que lhes impede de sair do estado de humilhante subordinação.

Infelizmente a grande maioria dos habitantes do Terceiro Mundo vive ainda nestas condições. Seria errado, porém, imaginar este Mundo, num sentido somente geográfico. Em algumas regiões e em alguns sectores sociais, foram activados processos de desenvolvimento centrados na valorização não tanto dos recursos materiais, mas dos «recursos humanos».

Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos Países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os Países que foram excluídos registaram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das actividades económicas a nível internacional. O maior problema, portanto, parece ser a obtenção de um acesso equitativo ao mercado internacional, não fundado sobre o princípio unilateral do aproveitamento dos recursos naturais, mas sobre a valorização dos recursos humanos (72).

Aspectos típicos do Terceiro Mundo emergem também nos Países desenvolvidos, onde a transformação incessante das modalidades de produção e consumo desvaloriza certos conhecimentos já adquiridos e capacidades profissionais consolidadas, exigindo um esforço contínuo de requalificação e actualização. Aqueles que não conseguem acompanhar os tempos podem facilmente ser marginalizados; juntamente com eles são-no os anciãos, os jovens incapazes de se inserirem na vida social e, de um modo geral, os sujeitos mais débeis e o denominado Quarto Mundo. Nestas condições, também a situação da mulher se apresenta muito difícil.

34. Tanto a nível da cada Nação, como no das relações internacionais, o livre mercado parece ser o instrumento mais eficaz para dinamizar os recursos e corresponder eficazmente às necessidades. Isto, contudo, vale apenas para as necessidades «solvíveis», que gozam da possibilidade de aquisição, e para os recursos que são «comercializavéis», isto é, capazes de obter um preço adequado. Mas existem numerosas carências humanas, sem acesso ao mercado. É estrito dever de justiça e verdade impedir que as necessidades humanas fundamentais permaneçam insatisfeitas e que pereçam os homens por elas oprimidos. Além disso, é necessário que estes homens carenciados sejam ajudados a adquirir os conhecimentos, a entrar no círculo de relações, a desenvolver as suas aptidões, para melhor valorizar as suas capacidades e recursos. Ainda antes da lógica da comercialização dos valores equivalentes e das formas de justiça, que lhe são próprias, existe algo que é devido ao homem porque é homem, com base na sua eminente dignidade. Esse algo que é devido comporta inseparavelmente a possibilidade de sobreviver e de dar um contributo activo para o bem comum da humanidade.

No contexto do Terceiro Mundo, conservam a sua validade (em certos casos é ainda uma meta a ser alcançada), aqueles mesmos objectivos indicados pela Rerum novarum para evitar a redução do trabalho humano e do próprio homem ao nível de simples mercadoria: o salário suficiente para a vida da família, seguros sociais para a ancianidade e o desemprego, a tutela adequada das condições de trabalho.

35. Abre-se aqui um grande e fecundo campo de empenhamento e luta, em nome da justiça, para os sindicatos e outras organizações dos trabalhadores que defendem direitos e tutelam o indivíduo, realizando simultaneamente uma função essencial de carácter cultural, com a finalidade de os fazer participar de modo mais pleno e digno na vida da Nação, e de os ajudar ao longo do caminho do progresso.

Neste sentido, é correcto falar de luta contra um sistema económico, visto como método que assegura a prevalência absoluta do capital, da posse dos meios de produção e da terra, relativamente à livre subjectividade do trabalho do homem (73). Nesta luta contra um tal sistema, não se veja, como modelo alternativo, o sistema socialista, que, de facto, não passa de um capitalismo de estado, mas uma sociedade do trabalho livre, da empresa e da participação. Esta não se contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a sociedade.

A Igreja reconhece a justa função do lucro, como indicador do bom funcionamento da empresa: quando esta dá lucro, isso significa que os factores produtivos foram adequadamente usados e as correlativas necessidades humanas devidamente satisfeitas. Todavia o lucro não é o único indicador das condições da empresa. Pode acontecer que a contabilidade esteja em ordem e simultaneamente os homens, que constituem o património mais precioso da empresa, sejam humilhados e ofendidos na sua dignidade. Além de ser moralmente inadmissível, isso não pode deixar de se reflectir futuramente de modo negativo na própria eficiência económica da empresa. Com efeito, o objectivo desta não é simplemente o lucro, mas sim a própria existência da empresa como comunidade de homens que, de diverso modo, procuram a satisfação das suas necessidades fundamentais e constituem um grupo especial ao serviço de toda a sociedade. O lucro é um regulador da vida da empresa, mas não o único; a ele se deve associar a consideração de outros factores humanos e morais que, a longo prazo, são igualmente essenciais para a vida da empresa.

Como vimos lá atrás, é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado «socialismo real» deixe o capitalismo como único modelo de organização económica. Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e Nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento. Tal objectivo requer esforços programados e responsáveis por parte de toda a comunidade internacional. É necessário que as Nações mais fortes saibam oferecer às mais débeis, ocasiões de inserção na vida internacional e que as mais débeis saibam aproveitar essas ocasiões, realizando os esforços e sacrifícios necessários, assegurando a estabilidade do quadro político e económico, a certeza de perspectivas para o futuro, o crescimento da capacidade dos próprios trabalhadores, a formação de empresários eficientes e conscientes das suas responsabilidades (74).

Actualmente, sobre os esforços positivos realizados com tal finalidade, pesa o problema, em grande medida ainda por resolver, da dívida externa dos Países mais pobres. Com certeza que é justo o princípio de que as dívidas devem ser pagas; não é lícito, porém, pedir ou pretender um pagamento, quando esse levaria de facto a impor opções políticas tais que condenariam à fome e ao desespero populações inteiras. Não se pode pretender que as dívidas contraídas sejam pagas com sacríficios insuportáveis. Nestes casos, é necessário — como, de resto, está sucedendo em certa medida — encontrar modalidades para mitigar, reescalonar ou até cancelar a dívida, compatíveis com o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso.

36. Convém agora prestar atenção aos problemas específicos e às ameaças, que se levantam no interior das economias mais avançadas e que estão conexas com as suas características peculiares. Nas fases precedentes do desenvolvimento, o homem sempre viveu sob o peso da necessidade. As suas carências eram poucas, de algum modo já fixadas nas estruturas objectivas da sua constituição corpórea, e a actividade económica estava orientada à sua satisfação. Hoje é claro que o problema não é só oferecer-lhes uma quantidade suficiente de bens, mas de responder a uma exigência de qualidade: qualidade das mercadorias a produzir e a consumir, qualidade dos serviços a ser utilizados, qualidade do ambiente e da vida em geral.

O pedido de uma existência qualitativamente mais satisfatória e mais rica é, em si mesmo, legítimo; mas devemos sublinhar as novas responsabilidades e os perigos conexos com esta fase histórica. No mundo onde surgem e se definem as novas necessidades, está sempre subjacente uma concepção mais ou menos adequada do homem e do seu verdadeiro bem: através das opções de produção e de consumo, manifesta-se uma determinada cultura, como concepção global da vida. É aqui que surge o fenómeno do consumismo. Individuando novas necessidades e novas modalidades para a sua satisfação, é necessário deixar-se guiar por uma imagem integral do homem, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais. Caso contrário, explorando directamente os seus instintos e prescindindo, de diversos modos, da sua realidade pessoal consciente e livre, podem-se criar hábitos de consumo e estilos de vida objectivamente ilícitos, e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual. O sistema económico, em si mesmo, não possui critérios que permitam distinguir correctamente as formas novas e mais elevadas de satisfação das necessidades humanas, das necessidades artificialmente criadas que se opõem à formação de uma personalidade madura. Torna-se por isso necessária e urgente, uma grande obra educativa e cultural, que abranja a educação dos consumidores para um uso responsável do seu poder de escolha, a formação de um alto sentido de responsabilidade nos produtores, e, sobretudo, nos profissionais dos mass-media, além da necessária intervenção das Autoridades públicas.

Um exemplo flagrante de consumo artificial, contrário à saúde e à dignidade do homem, certamente difícil de ser controlado, é o da droga. A sua difusão é índice de uma grave disfunção do sistema social, e subentende igualmente uma «leitura» materialista, em certo sentido, destrutiva das necessidades humanas. Deste modo a capacidade de inovação da livre economia termina actuando-se de modo unilateral e inadequado. A droga, como também a pornografia e outras formas de consumismo, explorando a fragilidade dos débeis, tentam preencher o vazio espiritual que se veio a criar.

Não é mal desejar uma vida melhor, mas é errado o estilo de vida que se presume ser melhor, quando ela é orientada ao ter e não ao ser, e deseja ter mais não para ser mais, mas para consumir a existência no prazer, visto como fim em si próprio (75). É necessário, por isso, esforçar-se por construir estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom, e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento. A propósito disto, não posso limitar-me a recordar o dever da caridade, isto é, o dever de acorrer com o «supérfluo», e às vezes até com o «necessário» para garantir o indispensável à vida do pobre. Mas aludo também ao facto de que a opção de investir num lugar em vez de outro, neste sector produtivo e não naquele, é sempre uma escolha moral e cultural. Postas certas condições económicas e de estabilidade política absolutamente imprescindíveis, a decisão de investir, isto é, de oferecer a um povo a ocasião de valorizar o próprio trabalho, é determinada também por uma atitude de solidariedade e pela confiança na Providência divina, que revela a qualidade humana daquele que decide.

37. Igualmente preocupante, ao lado do problema do consumismo e com ele estritamente ligada, é a questão ecológica. O homem, tomado mais pelo desejo do ter e do prazer, do que pelo de ser e de crescer, consome de maneira excessiva e desordenada os recursos da terra e da sua própria vida. Na raiz da destruição insensata do ambiente natural, há um erro antropológico, infelizmente muito espalhado no nosso tempo. O homem, que descobre a sua capacidade de transformar e, de certo modo, criar o mundo com o próprio trabalho, esquece que este se desenrola sempre sobre a base da doação originária das coisas por parte de Deus. Pensa que pode dispor arbitrariamente da terra, submetendo-a sem reservas à sua vontade, como se ela não possuísse uma forma própria e um destino anterior que Deus lhe deu, e que o homem pode, sim, desenvolver, mas não deve trair. Em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza, mais tiranizada que governada por ele (76).

Nota-se aqui, antes de mais, uma pobreza ou mesquinhez da visão humana, mais animada pelo desejo de possuir as coisas do que relacioná-las com a verdade, privado do comportamento desinteressado, gratuito, estético que brota do assombro diante do ser e da beleza, que leva a ler, nas coisas visíveis, a mensagem do Deus invisível que as criou. A respeito disso, a humanidade de hoje deve estar consciente dos seus deveres e tarefas, em vista das gerações futuras.

38. Além da destruição irracional do ambiente natural, é de recordar aqui outra ainda mais grave, qual é a do ambiente humano, a que se está ainda longe de prestar a necessária atenção. Enquanto justamente nos preocupamos, apesar de bem menos do que o necessário, em preservar o «habitat» natural das diversas espécies animais ameaçadas de extinção, porque nos damos conta da particular contribuição que cada uma delas dá ao equilíbrio geral da terra, empenhamo-nos demasiado pouco em salvaguardar as condições morais de uma autêntica «ecologia humana». Não só a terra foi dada por Deus ao homem, que a deve usar respeitando a intenção originária de bem, segundo a qual lhe foi entregue; mas o homem é doado a si mesmo por Deus, devendo por isso respeitar a estrutura natural e moral, de que foi dotado. Neste contexto, são de mencionar os graves problemas da moderna urbanização, a necessidade de um urbanismo preocupado com a vida das pessoas, bem como a devida atenção a uma «ecologia social» do trabalho.

O homem recebe de Deus a sua dignidade essencial e com ela a capacidade de transcender todo o regime da sociedade, rumo à verdade e ao bem. Contudo está fortemente condicionado também pela estrutura social em que vive, pela educação recebida e pelo ambiente. Estes elementos tanto podem facilitar como dificultar o seu viver conforme à verdade. As decisões, graças às quais se constitui um ambiente humano, podem criar estruturas específicas de pecado, impedindo a plena realização daqueles que vivem de diversos modos oprimidos por elas. Destruir tais estruturas, substituindo-as por formas de convivência mais autênticas é uma tarefa que exige coragem e paciência (77).

39. A primeira e fundamental estrutura a favor da «ecologia humana» é a família, no seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa. Pensa-se aqui na família fundada sobre o matrimónio, onde a doação recíproca de si mesmo, por parte do homem e da mulher, cria um ambiente vital onde a criança pode nascer e desenvolver as suas potencialidades, tornar-se consciente da sua dignidade e preparar-se para enfrentar o seu único e irrepetível destino. Muitas vezes dá-se o inverso; o homem é desencorajado de realizar as autênticas condições da geração humana, e aliciado a considerar-se a si próprio e à sua vida mais como um conjunto de sensações a ser experimentadas do que como uma obra a realizar. Daqui nasce uma carência de liberdade que o leva a renunciar ao compromisso de se ligar estavelmente com outra pessoa e de gerar filhos, ou que o induz a considerar estes últimos como uma de tantas «coisas» que é possível ter ou não ter, segundo os próprios gostos, e que entram em concorrência com outras possibilidades.

É necessário voltar a considerar a família como o santuário da vida. De facto, ela é sagrada: é o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um crescimento humano autêntico. Contra a denominada cultura da morte, a família constitui a sede da cultura da vida.

O engenho humano parece orientar-se, nesse campo, mais para limitar, suprimir ou anular as fontes da vida, chegando até ao recurso do aborto, infelizmente tão espalhado pelo mundo, do que para defender e criar possibilidades à mesma vida. Na Encíclica Sollicitudo rei socialis, foram denunciadas as campanhas sistemáticas contra a natalidade, que, baseadas numa concepção distorcida do problema demográfico e num clima de «absoluta falta de respeito pela liberdade de decisão das pessoas interessadas», as submetem muitas vezes «a pressões intoleráveis (...) a fim de cederem a esta nova forma de opressão» (78). Trata-se de políticas que, com novas técnicas, estendem o seu raio de acção até ao ponto de chegarem, como numa «guerra química», a envenenar a vida de milhões de seres humanos indefesos.

Estas críticas, são dirigidas não tanto contra um sistema económico, quanto contra um sistema ético-cultural. De facto, a economia é apenas um aspecto e uma dimensão da complexa actividade humana. Se ela for absolutizada, se a produção e o consumo das coisas acabar por ocupar o centro da vida social, tornando-se o único valor verdadeiro da sociedade, não subordinado a nenhum outro, a causa terá de ser procurada não tanto no próprio sistema económico, quanto no facto de que todo o sistema socio-cultural, ignorando a dimensão ética e religiosa, ficou debilitado, limitando-se apenas à produção dos bens e dos serviços (79).

Tudo isto se pode resumir afirmando mais uma vez que a liberdade económica é apenas um elemento da liberdade humana. Quando aquela se torna autónoma, isto é, quando o homem é visto mais como um produtor ou um consumidor de bens do que como um sujeito que produz e consome para viver, então ela perde a sua necessária relação com a pessoa humana e acaba por a alienar e oprimir (80).

40. É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens colectivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida pos simples mecanismos de mercado. Como nos tempos do antigo capitalismo, o Estado tinha o dever de defender os direitos fundamentais do trabalho, assim diante do novo capitalismo, ele e toda sociedade têm a obrigação de defender os bens colectivos que, entre outras coisas, constituem o enquadramento dentro do qual cada um poderá conseguir legitimamente os seus fins individuais.

Acha-se aqui um novo limite do mercado: há necessidades colectivas e qualitativas, que não podem ser satisfeitas através dos seus mecanismos; existem exigências humanas importantes, que escapam à sua lógica; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar. Certamente os mecanismos de mercado oferecem seguras vantagens: ajudam, entre outras coisas, a utilizar melhor os recursos, favorecem o intercâmbio dos produtos e, sobretudo, põem no centro a vontade e as preferências da pessoa que, no contrato, se encontram com as de outrem. Todavia eles comportam o risco de uma «idolatria» do mercado, que ignora a existência de bens que, pela sua natureza, não são nem podem ser simples mercadoria.

41. O marxismo criticou as sociedades burguesas capitalistas, censurando-as pela «coisificação» e alienação da existência humana. Certamente esta censura baseia-se numa concepção errada e inadequada da alienação, porque restringe a sua causa apenas à esfera das relações de produção e propriedade, isto é, atribuindo-lhe um fundamento materialista e, além disso, negando a legitimidade e a positividade das relações de mercado, inclusive no âmbito que lhes é próprio. Acaba assim por afirmar que a alienação só poderia ser eliminada numa sociedade de tipo colectivista. Ora a experiência história dos Países socialistas demonstrou tristemente que o colectivismo não suprime a alienação, antes a aumenta, enquanto a ela junta ainda a carência das coisas necessárias e a ineficácia económica.

A experiência histórica do Ocidente, por sua vez, demonstra que, embora sejam falsas a análise e a fundamentação marxista da alienação, todavia esta, com a perda do sentido autêntico da existência, é também uma experiência real nas sociedades ocidentais. Ela verifica-se no consumo, quando o homem se vê implicado numa rede de falsas e superficiais satisfações, em vez de ser ajudado a fazer a autêntica e concreta experiência da sua personalidade. A alienação verifica-se também no trabalho, quando é organizado de modo a «maximizar» apenas os seus frutos e rendimentos, não se preocupando de que o trabalhador, por meio de seu trabalho, se realize mais ou menos como homem, conforme cresça a sua participação numa autêntica comunidade humana solidária, ou então cresça o seu isolamento num complexo de relações de exacerbada competição e de recíproco alheamento, no qual ele aparece considerado apenas como um meio, e não como um fim.

É necessário reconduzir o conceito de alienação à perspectiva cristã, reconhecendo-a como a inversão dos meios pelos fins: quando o homem não reconhece o valor e a grandeza da pessoa em si próprio e no outro, de facto priva-se da possibilidade de usufruir da própria humanidade e de entrar na relação de solidariedade e de comunhão com os outros homens para a qual Deus o criou. Com efeito, é mediante o livre dom de si que o homem se torna autenticamente ele próprio (81), e este dom é possível graças à essencial «capacidade de transcendência» da pessoa humana. O homem não se pode doar a um projecto somente humano da realidade, nem a um ideal abstracto ou a falsas utopias. Ele, enquanto pessoa, consegue doar-se a uma outra pessoa ou outras pessoas e, enfim, a Deus, que é o autor do seu ser e o único que pode acolher plenamente o seu dom (82). Alienado é o homem que recusa transcender-se a si próprio e viver a experiência do dom de si e da formação de uma autêntica comunidade humana, orientada para o seu destino último, que é Deus. Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana.

Na sociedade ocidental foi superada a exploração, pelo menos nas formas analisadas e descritas por Karl Marx. Pelo contrário, não foi superada a alienação nas várias formas de exploração quando os homens se instrumentalizam mutuamente e, na satisfação cada vez mais refinada das suas necessidades particulares e secundárias, se tornam surdos às suas carências verdadeiras e autênticas, que devem regular as modalidades de satisfação das outras necessidades (83). O homem que se preocupa só ou prevalentemente do ter e do prazer, incapaz já de dominar os seus instintos e paixões e de subordiná-los pela obediência à verdade, não pode ser livre: a obediência à verdade sobre Deus e o homem é a primeira condição da liberdade, permitindo-lhe ordenar as próprias necessidades, os próprios desejos e as modalidades da sua satisfação, segundo uma justa hierarquia, de modo que a posse das coisas seja para ele um meio de crescimento. Um obstáculo a tal crescimento pode vir da manipulação realizada por alguns meios de comunicação social que impõem, pela força de uma bem orquestrada insistência, modos e movimentos de opinião, sem ser possível submeter a um exame crítico as premissas sobre as quais se fundamentam.

42. Voltando agora à questão inicial, pode-se porventura dizer que, após a falência do comunismo, o sistema social vencedor é o capitalismo e que para ele se devem encaminhar os esforços dos Países que procuram reconstruir as suas economias e a sua sociedade? É, porventura, este o modelo que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo, que procuram a estrada do verdadeiro progresso económico e civil?

A resposta apresenta-se obviamente complexa. Se por «capitalismo» se indica um sistema económico que reconhece o papel fundamental e positivo da empresa, do mercado, da propriedade privada e da consequente responsabilidade pelos meios de produção, da livre criatividade humana no sector da economia, a resposta é certamente positiva, embora talvez fosse mais apropriado falar de «economia de empresa», ou de «economia de mercado», ou simplesmente de «economia livre». Mas se por «capitalismo» se entende um sistema onde a liberdade no sector da economia não está enquadrada num sólido contexto jurídico que a coloque ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso, então a resposta é sem dúvida negativa.

A solução marxista faliu, mas permanecem no mundo fenómenos de marginalização e de exploração, especialmente no Terceiro Mundo, e fenómenos de alienação humana, especialmente nos Países mais avançados, contra os quais se levanta com firmeza a voz da Igreja. Tantas multidões vivem ainda agora em condições de grande miséria material e moral. A queda do sistema comunista, em tantos países, elimina certamente um obstáculo para enfrentar de modo adequado e realístico estes problemas, mas não basta para resolvê-los. Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado.

43. A Igreja não tem modelos a propor. Os modelos reais e eficazes poderão nascer apenas no quadro das diversas situações históricas, graças ao esforço dos responsáveis que enfrentam os problemas concretos em todos os seus aspectos sociais, económicos, políticos e culturais que se entrelaçam mutuamente (84). A esse empenhamento, a Igreja oferece, como orientação ideal indispensável, a própria doutrina social que — como se disse — reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes sejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores para conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob a direcção de outros, possam em certo sentido «trabalhar por conta própria» (85) exercitando a sua inteligência e liberdade.

O desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho, embora isso possa enfraquecer estruturas consolidadas de poder. A empresa não pode ser considerada apenas como uma «sociedade de capitais»; é simultaneamente uma «sociedade de pessoas», da qual fazem parte, de modo diverso e com específicas responsabilidades, quer aqueles que fornecem o capital necessário para a sua actividade, quer aqueles que à colaboram com o seu trabalho. Para conseguir este fim, é ainda necessário um grande movimento associado dos trabalhadores, cujo objectivo é a libertação e a promoção integral da pessoa.

À luz das «coisas novas» de hoje, foi relida a relação entre a propriedade individual, ou privada, e o destino universal dos bens. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objecto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para os outros e com os outros: cada um colabora para o trabalho e o bem dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, da Nação e, em definitivo, da humanidade inteira (86). Além disso, colabora para o trabalho dos outros, que operam na mesma empresa, como também para o trabalho dos fornecedores ou para o consumo dos clientes, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente. A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho (87). Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens.

A obrigação de ganhar o pão com o suor do próprio rosto supõe, ao mesmo tempo, um direito. Uma sociedade onde este direito seja sistematicamente negado, onde as medidas de política económica não consintam aos trabalhadores alcançarem níveis satisfatórios de ocupação, não pode conseguir nem a sua legitimação ética nem a paz social (88). Tal como a pessoa se realiza plenamente na livre doação de si própria, assim a propriedade se justifica moralmente na criação, em moldes e tempos devidos, de ocasiões de trabalho e crescimento humano para todos.