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SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS |
» CAPÍTULO XVI
Se ao salmodiar queres destacar o que se refere ao Salvador, encontrarás
referências praticamente em cada salmo; assim, por exemplo:
Esta é a característica que possui o livro dos Salmos, para utilidade dos
homens: uma parte dos salmos foram escritos para a purificação dos
movimentos da alma; outra parte, para anunciarmos profeticamente a vinda na
carne de nosso Senhor Jesus Cristo, como acima dissemos.
Porém, de modo algum devemos passar por alto a razão pela qual os salmos se
modulam harmoniosamente e com canto. Alguns simplórios entre nós, se bem crêem
na inspiração divina das palavras, sustentam que os salmos se cantam pelo
agradável dos sons e para o prazer do ouvido. Isto não é exato. A Escritura para
nada buscou o encanto ou a sedução, e sim a utilidade da alma; esta forma foi
eleita sobre tudo por duas razoes:
Para impedir que surja essa desarmonia interior, a razão requer que a alma, que
possui o pensamento de Cristo (cf. 1Cor 2,16), como disse o Apóstolo, faça
que este lhe sirva de diretor, que domine nele suas paixões, ordenando os
membros do corpo para que obedeçam a razão. Como pleito para a harmonia,
nesse saltério que é o homem, o Espírito deve ser fielmente obedecido, os
membros e seus movimentos devem ser dóceis obedecendo a vontade de Deus.
Esta tranqüilidade perfeita, esta calma interior, tem sua imagem e modelo na
leitura modulada dos Salmos. Nos damos a conhecer os movimentos da alma
através das nossas palavras; por isso o Senhor, desejando que a melodia das
palavras fosse o símbolo da harmonia espiritual na alma, fez cantar os Salmos
melodiosa, modulada e musicalmente. Precisamente este é o desejo da alma,
vibrar em harmonia, como está escrito: "Algum de vós é feliz, que cante!"
(St 5,13). Assim, salmodiando, se aplaca o que nele haja de confuso, áspero ou
desordenado e o canto cura até a tristeza: "Por que estás triste, alma minha,
por que me perturbas?" (Sal 41,6.12 e 42,5); reconhecer seu erro
confessando: "Quase resvalaram minhas pisadas" (Sal 72,2); e no temor
fortalecer a esperança: "O Senhor está comigo: não temo; que poderá fazer-me
aquele homem?" (Sal 117,6).
» CAPÍTULO XIX
Os que não lêem desta maneira os cânticos divinos, não salmodiam sabiamente,
mas buscam seu deleite, e merecem reprovação, já que o louvor não é formoso
na boca do pecador (cf. Eclo. 15,9). Porém, quando se cantam da maneira que
acima mencionamos, de modo que as palavras se vão proferindo ao ritmo da
alma e em harmonia com o Espírito, então cantam em uníssono a boca e a
mente; ao cantar assim, são úteis a si mesmos e aos ouvintes bem dispostos. O
bem-aventurado Davi, por exemplo, cantando para Saul, alegrava a Deus e
alijava de Saul a perturbação e a loucura, devolvendo-lhe a tranqüilidade à sua
alma. De idêntica maneira os sacerdotes ao salmodiar, aportavam a calma à alma
das multidões, induzindo-as a cantar unânimes com os coros celestiais. O fato
de que os Salmos se recitem melodiosamente, não é em absoluto indício de
buscar sons prazenteiros, e sim reflexo da harmoniosa composição da alma. A
leitura mensurada é símbolo da índole ordenada e tranqüila do espírito. Louvar a
Deus com pratinhos sonoros, com a cítara e o saltério de dez cordas, é, a sua
vez, símbolo e indicação de que os membros do corpo estão harmoniosamente unidos
do modo que estão as cordas; de que os pensamentos da alma atuam qual
címbalos, recebendo todo o conjunto, movimento e vida a impulsos do espírito,
já que viveram, como está escrito, e com o Espírito fazem morrer as obras do
corpo (cf. Rom. 8,13). Quem salmodia desta maneira harmoniza sua alma levando-a
do desacordo ao acorde, de modo que, falando-se em natural acordo nada a perturbe,
ao contrário da imaginação pacificada que deseja ardentemente os bens futuros.
Bem disposta pela harmonia das palavras, olvida suas paixões, para centrada,
gostosa e harmoniosamente em Cristo conceber os melhores pensamentos.
» CAPÍTULO XX
É portanto necessário, filho meu, que todo o que lê este livro o faça com pureza
de coração, aceitando que se deve à divina inspiração, e, beneficiando-se dele por
isso mesmo, como dos frutos do jardim do paraíso, empregando-os segundo
as circunstâncias e a utilidade de cada um deles.
Estimo, com efeito, que nas palavras deste livro se contem e descrevam todas
as disposições, todos os afetos e todos os pensamentos da vida humana e que
fora destes não há outros.
Há necessidade de arrependimento ou confissão; se lhes surpreenderam a aflição
ou a tentação; se és perseguido ou se escapou a emboscadas; se estás triste,
em dificuldades ou tens algum dos sentimentos acima mencionados; ou se
vives prosperamente, havendo triunfado sobre teus inimigos, desejando louvar,
dar graças ou bendizer ao Senhor... Para qualquer destas circunstâncias, deve-se falar
o ensinamento adequado nos Salmos divinos. Que eleja aqueles relacionados
com cada um desses argumentos, recitando-os como se ele os proferira, e
adequando os próprios sentimentos aos neles expressados.
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» CAPÍTULO XVIII