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SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS

» CAPÍTULO XVI

Se ao salmodiar queres destacar o que se refere ao Salvador, encontrarás referências praticamente em cada salmo; assim, por exemplo:

» CAPÍTULO XVII

Esta é a característica que possui o livro dos Salmos, para utilidade dos homens: uma parte dos salmos foram escritos para a purificação dos movimentos da alma; outra parte, para anunciarmos profeticamente a vinda na carne de nosso Senhor Jesus Cristo, como acima dissemos.

Porém, de modo algum devemos passar por alto a razão pela qual os salmos se modulam harmoniosamente e com canto. Alguns simplórios entre nós, se bem crêem na inspiração divina das palavras, sustentam que os salmos se cantam pelo agradável dos sons e para o prazer do ouvido. Isto não é exato. A Escritura para nada buscou o encanto ou a sedução, e sim a utilidade da alma; esta forma foi eleita sobre tudo por duas razoes:

  1. Em primeiro lugar, convinha que a Escritura não louvasse a Deus unicamente numa seqüência de palavras rápidas e contínuas, mas sim também com voz lenta e pausada. Em seqüência ininterrupta se lêem a Lei, os Profetas, os livros históricos e o Novo Testamento; a voz pausada é empregada para os Salmos, odes e cânticos. Assim se obtém que os homens expressem seu amor a Deus com todas as suas forças e com todas as suas possibilidades.

  2. A segunda razão apóia em que, como uma boa flauta unifica e harmoniza perfeitamente todos os sons, do mesmo modo requer a razão que os diversos movimentos da alma, como pensamento, desejo, cólera, sejam a origem das distintas atividades do corpo, de modo que o trabalho do homem não seja desarmônico, conflitando consigo mesmo, pensando muito bem e trabalhando muito mal; por exemplo, Pilatos que disse: "Nenhum delito encontro nele para condená-lo à morte" (Jo 18,38), porém trabalhou segundo o querer dos judeus... Ou, que desejando trabalhar mal, estejam impossibilitados de realizá-lo, como os anciãos com Susana... Ou que ainda abstendo-se de adulterar, seja ladrão, ou, sem ser ladrão seja homicida, ou, sem ser assassino seja blasfemador.

» CAPÍTULO XVIII

Para impedir que surja essa desarmonia interior, a razão requer que a alma, que possui o pensamento de Cristo (cf. 1Cor 2,16), como disse o Apóstolo, faça que este lhe sirva de diretor, que domine nele suas paixões, ordenando os membros do corpo para que obedeçam a razão. Como pleito para a harmonia, nesse saltério que é o homem, o Espírito deve ser fielmente obedecido, os membros e seus movimentos devem ser dóceis obedecendo a vontade de Deus. Esta tranqüilidade perfeita, esta calma interior, tem sua imagem e modelo na leitura modulada dos Salmos. Nos damos a conhecer os movimentos da alma através das nossas palavras; por isso o Senhor, desejando que a melodia das palavras fosse o símbolo da harmonia espiritual na alma, fez cantar os Salmos melodiosa, modulada e musicalmente. Precisamente este é o desejo da alma, vibrar em harmonia, como está escrito: "Algum de vós é feliz, que cante!" (St 5,13). Assim, salmodiando, se aplaca o que nele haja de confuso, áspero ou desordenado e o canto cura até a tristeza: "Por que estás triste, alma minha, por que me perturbas?" (Sal 41,6.12 e 42,5); reconhecer seu erro confessando: "Quase resvalaram minhas pisadas" (Sal 72,2); e no temor fortalecer a esperança: "O Senhor está comigo: não temo; que poderá fazer-me aquele homem?" (Sal 117,6).

» CAPÍTULO XIX

Os que não lêem desta maneira os cânticos divinos, não salmodiam sabiamente, mas buscam seu deleite, e merecem reprovação, já que o louvor não é formoso na boca do pecador (cf. Eclo. 15,9). Porém, quando se cantam da maneira que acima mencionamos, de modo que as palavras se vão proferindo ao ritmo da alma e em harmonia com o Espírito, então cantam em uníssono a boca e a mente; ao cantar assim, são úteis a si mesmos e aos ouvintes bem dispostos. O bem-aventurado Davi, por exemplo, cantando para Saul, alegrava a Deus e alijava de Saul a perturbação e a loucura, devolvendo-lhe a tranqüilidade à sua alma. De idêntica maneira os sacerdotes ao salmodiar, aportavam a calma à alma das multidões, induzindo-as a cantar unânimes com os coros celestiais. O fato de que os Salmos se recitem melodiosamente, não é em absoluto indício de buscar sons prazenteiros, e sim reflexo da harmoniosa composição da alma. A leitura mensurada é símbolo da índole ordenada e tranqüila do espírito. Louvar a Deus com pratinhos sonoros, com a cítara e o saltério de dez cordas, é, a sua vez, símbolo e indicação de que os membros do corpo estão harmoniosamente unidos do modo que estão as cordas; de que os pensamentos da alma atuam qual címbalos, recebendo todo o conjunto, movimento e vida a impulsos do espírito, já que viveram, como está escrito, e com o Espírito fazem morrer as obras do corpo (cf. Rom. 8,13). Quem salmodia desta maneira harmoniza sua alma levando-a do desacordo ao acorde, de modo que, falando-se em natural acordo nada a perturbe, ao contrário da imaginação pacificada que deseja ardentemente os bens futuros. Bem disposta pela harmonia das palavras, olvida suas paixões, para centrada, gostosa e harmoniosamente em Cristo conceber os melhores pensamentos.

» CAPÍTULO XX

É portanto necessário, filho meu, que todo o que lê este livro o faça com pureza de coração, aceitando que se deve à divina inspiração, e, beneficiando-se dele por isso mesmo, como dos frutos do jardim do paraíso, empregando-os segundo as circunstâncias e a utilidade de cada um deles.

Estimo, com efeito, que nas palavras deste livro se contem e descrevam todas as disposições, todos os afetos e todos os pensamentos da vida humana e que fora destes não há outros.

Há necessidade de arrependimento ou confissão; se lhes surpreenderam a aflição ou a tentação; se és perseguido ou se escapou a emboscadas; se estás triste, em dificuldades ou tens algum dos sentimentos acima mencionados; ou se vives prosperamente, havendo triunfado sobre teus inimigos, desejando louvar, dar graças ou bendizer ao Senhor... Para qualquer destas circunstâncias, deve-se falar o ensinamento adequado nos Salmos divinos. Que eleja aqueles relacionados com cada um desses argumentos, recitando-os como se ele os proferira, e adequando os próprios sentimentos aos neles expressados.