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SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS |
» CAPÍTULO I
Todavia, isto de assombroso e maravilhoso tem os Salmos: ao ler os demais livros,
aqueles que dizem os santos e o objeto de seus discursos, os leitores o
relacionam com o argumento do livro, os ouvintes se sentem estranhos ao
relato, de modo que as ações recordadas suscitam mera admiração ou o
simples desejo de rivalizá-las. Aqueles que, por outro lado, abrem o livro dos
Salmos recorrem, com a admiração e o assombro costumeiros, às profecias sobre
o Salvador contidas já nos restantes livros, porém lêem os salmos como se
fossem pessoais. O ouvinte, igual ao autor, entra em clima de compulsão,
apropriando-se as palavras dos cânticos como se fossem suas. Para ser mais
claro, não vacilaria, igual que o benaventurado Apóstolo, em retomar o dito:
"Os discursos pronunciados em nome dos patriarcas, são numerosos; Moisés
falava e Deus respondia; Elias e Eliseu, estabelecidos sobre a montanha do
Carmelo, invocavam sem cessar ao Senhor, dizendo: 'Vive o
Senhor, em cuja presença estou hoje!'" (1Rs 17,1; 2Rs 3,4). As palavras dos
demais santos profetas têm por objeto o Salvador, e um certo número se
referem aos pagãos e a Israel. Contudo, nenhuma pessoa pronunciaria as
palavras dos patriarcas como se fossem suas, nem ousaria imitar e pronunciar
as mesmas palavras que Moisés, nem as de Abraão acerca de sua escrava e
Ismael ou as referentes ao grande Isaac; por necessário ou útil que fosse, nada
se animaria a dizê-las como próprias. Ainda que um se compadecesse dos que
sofrem e desejasse o melhor, jamais diria como Moisés: "Mostra-te a mim!" (Ex 33,13),
ou tampouco: "Se perdoas seu pecado, perdoado serás; se não o perdoas,
apaga-me do livro que tu escreveste" (Ex 33,12). Ainda no caso dos
profetas, nada empregaria pessoalmente seus oráculos para elogiar ou repreender
aqueles que se assemelham por suas ações aos que eles repreendiam ou elogiavam;
ninguém diria: "Vive o Senhor, em cuja presença estou
hoje!" Quem toma em suas mãos esses livros, vê claramente que as ditas
palavras devem ler-se não como pessoais, mas sim como pertencentes aos santos
e aos objetos dos quais falam. Os Salmos - coisa estranha! - salvo o que concerne
ao Salvador e às profecias sobre os pagãos, são para o leitor palavras pessoais:
cada um as canta como escritas para ele e não as toma nem as recorre como
escritas por outro, nem tampouco referentes a outro. Suas disposições (de
ânimo) são as de alguém que fala de si mesmo. O que diz, o orador o eleva
até Deus como se fora ele quem falara e atuara. Não experimenta temor algum
diante destas palavras, como diante às dos patriarcas, de Moisés ou dos outros
profetas, senão por bem, considerando-as como pessoais e escritas referidas a
ele, encontra a coragem para proferi-las e cantá-las. Seja que um cumpra ou
quebre os mandamentos, os Salmos se aplicam a ambos. É necessário, em
qualquer caso, seja como transgressor, seja como cumpridor, ver-se como
obrigado a pronunciar as palavras escritas sobre cada qual.
» CAPÍTULO II
[As palavras dos Salmos] me parecem que são para quem as canta, como um
espelho no qual se refletem as emoções da sua alma para que assim, sob seu
efeito, possa recitá-las. Até quem somente os escuta, percebe o canto como
referido a ele: ou convencido por sua consciência e, afligido, se arrepende;
ou ouvindo falar da esperança em Deus e do auxilio concedido aos crentes, se
alegra de que lhe haja sido outorgado e prorrompe em ações de graças a Deus.
Assim, por exemplo, canta alguém o salmo terceiro? Refletindo sobre suas
próprias atribulações, se apropriaria das palavras do salmo. Assim mesmo, lerá
ao 11 e ss. e ao 16 e ss. de acordo com a sua confiança e oração; o recitado do
50 e ss. será expressão de sua própria penitência; o 53 e ss., 55 e ss., 100 e ss. e
o 41ss. expressam seus sentimentos sobre a perseguição de que ele é objeto;
são suas palavras as que canta ao Senhor. Assim pois, cada salmo, sem entrar
em maiores detalhes, pode-se dizer que está composto e é
proferido pelo Espírito, de modo que nessas mesmas palavras, como já o
disse antes, podemos captar os movimentos da nossa alma e nos faz dizer
como provenientes de nós mesmos, como palavras nossas, para que, trazendo à
memória nossas emoções passadas, reformemos a nossa vida espiritual. O que
os salmos dizem pode servir-nos de exemplo e de padrão de medida.
» CAPÍTULO III
Isto também é dom do Salvador: feito homem por nós, ofereceu por nós seu
corpo à morte, para livrar-nos a todos da morte. Querendo mostrar-nos sua
maneira celestial e perfeita de viver, a criou em si mesmo para que não sejamos já
facilmente enganados pelo inimigo, já que temos uma prenda segura na vitoria
que em favor nosso obteve sobre o diabo. É por esta razão que não só ensinou,
mas também praticou seu ensinamento, de modo que cada um o escute quando
fala e, olhando-o, como se observa a um modelo, aceite dele o exemplo, como
quando diz: "Aprendam comigo, que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29).
Não poderá existir ensinamento mais perfeito da virtude que a realizada pelo
Salvador em sua própria pessoa: paciência, amor à humanidade, bondade,
fortaleza, misericórdia, justiça, tudo o encontramos nele e nada temos que
esperar, quanto a virtudes, ao observar detidamente sua vida. Paulo o dizia
claramente: "Sejam imitadores meus, como eu o sou de Cristo"
(1Cor 11,1). Os legisladores, entre os gregos, tem graça unicamente para
legislar; o Senhor, qual verdadeiro Senhor do universo, preocupado por sua
obra, não somente legisla, mas também se dá como modelo para que aqueles que
o desejam, saibam como atuar. Ainda antes de sua vinda entre nós, o colocou
manifesto nos Salmos, de maneira que igual que nos proveu da imagem
acabada do homem terreno e celestial em sua própria pessoa; também nos
Salmos, aquele que o deseja, pode aprender e conhecer as disposições da
alma, encontrando como curá-las e retificá-las.
» CAPÍTULO IV
Falando com maior precisão, pontualizemos então que se toda a Escritura
divina é mestra de virtude e de fé autêntica, o livro dos Salmos oferece, ademais,
um perfeito modelo de vida espiritual. Igual a quem se apresenta diante de um
rei e assume as corretas atitudes corporais e verbais, não seja que apenas abra
a boca, seja arrojado fora por sua falta de compostura, também a aquele que
corre até a meta das virtudes e deseja conhecer a conduta do Salvador durante
sua vida mortal; o sagrado Livro o conduz primeiro, através da leitura, à
consideração dos movimentos da alma e, a partir daí, vai representando sucessivamente
o resto, ensinando aos leitores graças a ditas expressões. Neste livro, chama a
atenção que alguns salmos contenham narrações históricas, outros admoestações
morais, outros profecias, outros súplicas e outros, todavia, confissão.
Estando, então, os salmos dispostos acima ordenados desta maneira, é
possível aos leitores - como já o disse antes - descobrir em cada um deles os
movimentos e a constituição de sua alma, do mesmo modo que descobrem o
gênero e o ensinamento que cada um lhes transmitem.
Igualmente se pode aprender deles as palavras a dizer para agradar o Senhor,
ou com quais palavras expressar o desejo de corrigir-se e arrepender-se ou de
dar-lhe graças. Tudo isto impede, ao que recita literalmente estas expressões,
cair na impiedade. Já que não somente tenhamos de dar a razão das nossas obras
ao Juiz (Supremo), como também de toda palavra inútil (Mt 12,36):
» CAPÍTULO V