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SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS |
» INTRODUÇÃO
Querido Marcelino, admiro teu fervor cristão: sobrelevas perfeitamente tua atual
situação, e, ainda que muito te faça sofrer, não descuidas em absoluto as
asceses. Perguntei ao portador de tua carta pelo gênero de vida que levas agora
que estás doente e ele me informou que bem dedicas teu tempo à Escritura
Santa, tendo, todavia, com maior freqüência o livro dos Salmos entre as mãos,
tratando de compreender o sentido que cada um esconde. Te felicito, pois
tenho idêntica paixão pelos Salmos, como a tenho pela Escritura inteira.
Encontrando-me numa ocasião (invadido) por semelhantes sentimentos, tive um
encontro com um ancião estudioso e quero transcrever-te a conversação que
sobre os Salmos, - Saltério em mão! - sustento comigo. O que aquele velho mestre
me transmitiu é agradável e, ao mesmo tempo, instrutivo. Eis aqui o que me
disse:
Toda a nossa Escritura, filho meu, tanto do Antigo como do Novo (Testamento),
é, tal como está escrito, inspirada por Deus e útil para ensinar (2Tim 3,16).
Porém, o livro dos Salmos, se feita uma reflexão atenta, possui algo que merece
uma especial atenção.
Cada um dos livros, com efeito, nos oferece e nos entrega seu próprio ensinamento:
O Pentateuco, por exemplo, relata o começo do mundo e a vida dos Patriarcas,
a saída de Israel do Egito, como também a entrega da Lei. O Triteuco relata a
distribuição da terra, as façanhas dos Juízes, como também a genealogia de
Davi. Os livros dos Reis e das Crônicas relatam os feitos dos reis. Esdras descreve
a libertação do cativeiro, o retorno do povo, a reconstrução do templo e da
cidade. Os (livros dos) Profetas predizem a vinda do Salvador, recordam os
Mandamentos, advertem e exortam aos pecadores, como também profetizam
acerca das nações. O livro dos Salmos é como um jardim em cujo solo crescem
todas estas plantas e, ademais, melodiosamente cantadas, senão que nos mostra
o que lhe é privativo, já que ao cantar (salmos) agrega o seu próprio.
Canta os acontecimentos do Gênesis no salmo 18: "Os céus apregoam a glória
de Deus e o firmamento proclama a obra de suas mãos" (Sal 18,1) e, no salmo 23:
"A terra e tudo que ela contem é do Senhor; o mundo e tudo que o habita, Ele o
fundou sobre os mares" (Sal 23,1-2). Os temas do Êxodo, Números e Deuteronômio
os canta formosamente nos salmos 77 e 113: "Quando Israel saiu do Egito, a
casa de Jacó, de um povo bárbaro, Judá foi seu santuário e Israel seu domínio"
(Sal 113,1-2). Similares temas canta no salmo 104: "Enviou a Moisés seu servo,
e a Aarão, seu eleito. Confiou-lhes suas palavras e suas maravilhas na terra de
Cam. Enviou a obscuridade e escureceu; mas se rebelaram contra suas palavras.
Transformou suas águas em sangue, e deu morte a seus peixes. Sua terra produziu
rãs, até nas habitações do rei. Falou e se encheu de moscas e de mosquitos todo
seu território" (Sal 104,26-31). É fácil descobrir que todo este salmo, como também
o 105, foram escritos em referência a todos estes acontecimentos. As coisas
que se referem ao sacerdócio e ao tabernáculo as proclama naquele do salmo
28: "Ao sair do tabernáculo, dizendo: 'Ofereçam ao Senhor, filhos de Deus,
ofereçam-lhe glória e honra'" (Sal 28,1).
Os fatos concernentes a Josué e aos Juízes os refere brevemente o salmo 106
com as palavras: "Fundaram cidades para habitar nelas, semearam campos e
plantaram vinhas" (Sal 106, 36-37). Pois foi sob Josué que se lhes entregou a
terra prometida. Ao repetir reiteradamente no mesmo salmo: "Então gritaram ao
Senhor em sua atribulação, e Ele os livrou de todas suas angústias" (Sal 106,6),
está indicando o livro dos Juizes. Já que quando eles gritavam os suscitavam
juízes a seu devido tempo para livrar a seu povo daqueles que o afligiam. O
referente aos reis se canta no salmo 19 ao dizer: "Alguns se vangloriam em carros,
outros em cavalos, porém, nós, no nome do Senhor nosso Deus. Eles foram detidos
e caíram; porem nós nos levantamos e mantivemo-nos em pé. Senhor, salva ao
Rei e escuta-nos quando te invocamos!" (Sal 19,8-10). E o que se refere a
Esdras, o canta no salmo 125 (um dos salmos graduais): "Quando o Senhor
trocou o cativeiro de Sião, ficamos consolados" (Sal 125,1); e novamente
no 121: "Me alegrei quando me disseram: 'Vamos à casa do Senhor'. Nossos
pés percorreram teus palácios, Jerusalém; Jerusalém está edificada qual cidade
completamente povoada. Pois ali sobem as tribos, as tribos do Senhor, como
testemunho para Israel" (Sal 121,1-4).
Praticamente cada salmo remete aos profetas. Sobre a vinda do Salvador e
Daquele que devia vir ser Deus, assim se expressa o salmo 49: "O Senhor
nosso Deus virá manifestamente, e não se calará" (Sal 49,2-3); e o salmo
117: "Bendito o que vem em nome do Senhor! Nós os temos abençoados desde
a casa do Senhor; o Senhor (é) Deus e ele se nos manifestou" (Sal 117,26-27).
Ele é o Verbo do Pai, como o canta o 106: "Ele enviou seu Verbo e os
curou, os salvou de suas corrupções" (Sal 106,20). O Deus que vem é ele
mesmo o Verbo enviado. Sabendo que este Verbo é o Filho de Deus, faz dizer
ao Pai no salmo 44: "Meu coração proferiu um Verbo bom" (Sal 44,1), e
também no salmo 109: "De meu seio antes da aurora eu te engendrei"
(Sal 109,3). Quem pode dizer-se engendrado pelo Pai senão seu Verbo e sua
Sabedoria? Sabendo que é a ele ao que o Pai dizia: "Que seja a luz e o
firmamento e todas as coisas", o livro dos Salmos também contém
palavras similares: "O Verbo do Senhor afiançou os céus e pelo Espírito de sua
boca toda sua potência" (Sal 32,6).
(O salmista) não ignorava que Aquele que devia vir fosse também o Ungido, já
que propriamente dele fala (como sujeito principal) o salmo 44: "Teu trono,
ó Deus, permanece pelos séculos dos séculos; é cetro de retitude o cetro de teu
Reino. Hás amado a justiça e odiado a iniquidade; por isso Deus, tu Deus, te
ungiu com o óleo da alegria em preferência a teus companheiros"
(Sal 44,7-8). Para que nada se imagine que ele vem só em aparência, aclara que
é este mesmo o que se fará homem e que é por ele por quem tudo foi criado,
por ele afirma no salmo 86: "A mãe Sião dirá: um homem, um homem foi
engendrado nela, o Altíssimo em pessoa a fundou" (Sal 86,5). O que
eqüivale a afirmar: o Verbo era Deus, tudo foi feito por ele, e, o Verbo se fez
carne. Conhecendo, igualmente, o nascimento virginal, o Salmista não se calou,
senão que o expressou claramente no salmo 44, ao dizer: "Escuta, filha minha,
e veja; inclina teu ouvido, esqueça teu povo e a casa de teu pai, porque o rei
está cativado de tua beleza" (Sal 44, 11-12). Novamente, isto eqüivale ao
dito por Gabriel: "Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!"
(Lc 1,28). Depois de haver afirmado que ele é o Ungido, mostra à parte seu
nascimento humano da Virgem, ao dizer: "Escuta, filha minha".
Gabriel a chama por seu nome, Maria, porque é um estranho - enquanto ao
parentesco se refere - porém, Davi, o salmista, já que ela é de sua família, a
chama, com toda razão, 'sua filha'.
Havendo afirmado que se faria homem, os Salmos mostram logicamente que
ele é passível segundo a carne. O salmo 2 prevê a conspiração dos judeus: "Por
que se rebelaram os pagãos? Por que conceberam projetos vãos? Os reis da
terra se prepararam, os chefes conspiraram contra o Senhor e contra seu
Ungido" (Sal 2, 1-2). No salmo 21, o Salvador mesmo dá a conhecer seu
gênero de morte: "...me aprisionas no pó da morte, me rodeia um bando de
mastins; a assembléia dos perversos me circunda. Furaram minhas mãos e
meus pés. Contaram todos os meus ossos. Eles me vigiaram, dividiram minha
roupa e jogaram a sorte sobre a minha túnica" (Sal 21,17-19). Furar suas mãos
e seus pés, que outra coisa é senão indicar sua crucifixão? Depois de ensinar
tudo isto, acrescente que o Senhor padeceu por nossa causa, e não pela sua. E,
com seus próprios lábios, afirma novamente no salmo 87: "Pesadamente repousa
sobre mim a tua ira" (Sal 87,17), e no salmo 68: "Eis
de volta o que não havia arrebatado" (Sal 68,5). Pois se bem não devia
pagar as contas de crime algum, ele morreu - porém sofrendo por nossa causa,
tomando sobre si a cólera que nos estava destinada, por nossos pecados, como
o disse em Isaías, Ele carregou nossas fraquezas; o que se faz evidente quando
afirmamos no salmo 137: "O Senhor os recompensa por minha causa", e o
Espírito disse no salmo 71 que: "ele salva aos filhos do pobre e quebra aos que
acusam em falso... pois ele resgata o pobre do opressor e redime o indigente
que não tem protetor" (Sal 71, 4.12).
Por isso predisse também sua ascensão aos céus, dizendo no salmo 23: "Príncipes,
levantem seus portões e abram suas portas eternas para entrar o rei da glória"
(Sal 23,7.9). E no 46: "Deus ascende entre aclamações, o Senhor ao som de
trombeta(s)" (Sal 46,6). Também seu sentar-se (à direita de Deus) o anuncia
no salmo 109: "Disse o Senhor a meu Senhor, senta-te a minha direita até que
ponha teus inimigos como estrado para teus pés" (Sal 109,1). Até a
destruição do diabo se anuncia a vocês no salmo 9: "Te sentas em teu trono
qual juiz que julga justamente. Repreendeste aos povos e pereceu o ímpio"
(Sal 9,5-6). Tampouco calou que receberia pleno poder para julgar, de parte do
Pai, e que viria com autoridade sobre tudo, ao afirmar no 71: "Ó Deus,
concede teu juízo ao rei, e tua justiça ao filho do rei, para que julgue a teu povo
com justiça, e a teus pobres com retidão" (Sal 71,1-2). E no salmo 49 disse:
"Convoca ao céu, no alto, e a terra, para julgar a seu povo...E os céus
proclamaram sua justiça, pois Deus é juiz" (Sal 49,4.6). E no 81 lemos:
"Deus está em pé na assembléia dos deuses, e rodeado de deuses, (os) julga"
(Sal 81,1). Sobre a vocação dos pagãos muito se fala em nosso livro, porém,
sobretudo no salmo 46: "Povos todos, aplaudam, aclamem a Deus com
vozes jubilosas" (Sal 46,2). De maneira similar no 71: "Diante de si se
prostram os etíopes e seus inimigos lamberam ó pó; os reis de Tarsis, e as
ilhas, oferecem seus dons. Os reis da Arábia e de Sabá lhe ofereceram regalos.
E o adoraram todos os reis da terra; todos os povos lhe serviram" (Sal 71,9-11).
Tudo isto o cantam os Salmos e se anuncia em cada um dos outros Livros.
Não sendo um ignorante, (o ancião) agregava: em cada livro da Escritura se
significam realidades idênticas, sobretudo em relação com o Salvador, pois
todos estão intimamente relacionados, sinfonicamente concordes no Espírito.
Por isso, do mesmo modo que é possível descobrir no Saltério o conteúdo dos
outros Livros, também se encontra com freqüência o conteúdo do primeiro nos
restantes. Assim, por exemplo, Moisés compôs um hino, e Isaías canta e Habacuc
suplica com um cântico. Mais ainda, em todos os livros é possível encontrar
profecias, leis e relatos. O mesmo Espírito o abarca todo, e de acordo ao dom
destinado a cada qual, proclama a graça peculiar, repartindo-a em plenitude,
seja como capacidade de profetizar, ou de legislar, ou de relatar o sucedido, ou
o dom dos Salmos. Se bem que o Espírito é uno e indivisível, dele provêm
todos os dons particulares e em cada dom está totalmente presente, ainda que
cada um o percebe segundo as revelações e dons recebidos e na medida e
forma das necessidades, de modo que na medida em que cada um se deixa
guiar pelo Espírito se faz servidor do Verbo. É por isso, como o disse
anteriormente, que quando Moisés está legislando, algumas vezes também
profetiza e outras vezes canta; e os Profetas ao profetizar, algumas vezes
proclamam mandatos, como aquele: "Purifiquem-se.
Limpa teu coração de toda imundície, ó Jerusalém" (Is 1,16; Jr 4,14); e
outras vezes relatam historias como o faz Daniel com os acontecimentos concernentes
a Susana, ou Isaías quando relata o de Rabsaces e Senaquerib. O risco
característico do livro dos Salmos, como já dissemos, é o do canto, e por ele
modula melodiosamente o que em outros livros se narra com detalhe. Porém,
algumas vezes até legisla: "Abandona a ira e deixa a cólera" (Sal 36,8); e
"Afasta-te do mal, opera o bem; deseja a paz e corre atrás dela"
(Sal 33,15). E outras vezes relata o caminho de Israel e profetiza acerca do
Salvador, como o dissemos anteriormente.
A graça do Espírito é comum (a todos os livros), estando a mesma de acordo
à tarefa encomendada e segundo o Espírito a concede. Os mais e os menos não
provocam distinção alguma sempre que cada qual efetue e leve a cabo sua
própria missão. Porém, em sendo assim, o livro dos Salmos tem, neste mesmo
terreno, um dom e graça peculiares, uma propriedade de particular relevo.
Pois junto às qualidades, que lhe são comuns e similares com os Livros
restantes, tem ademais uma maravilhosa peculiaridade: contém exatamente descritos
e representados todos os movimentos da alma, suas trocas e mudanças, de
modo que uma pessoa sem experiência, ao estudá-los e ponderando-os, pode
ir-se modelando à sua imagem. Pois os outros livros somente expõem a lei e
estipula o que se deva, ou não, cumprir. Escutando as profecias, somente se
sabe da vinda do Salvador. Prestando atenção às descrições históricas, somente
se chega a averiguar os fatos dos reis e dos santos. O livro dos Salmos, ademais
de ditos ensinamentos, permite reconhecer ao leitor as emoções de sua própria
alma e se as ensina, pelo modo como algo o afeta ou o perturba; de acordo
com este livro pode ter uma idéia aproximada do que deve dizer. Por isso, não
se contenta com escutar simplesmente, senão que sabe como falar e como atuar
para curar seu mal. É certo que também os outros livros tem palavras que
proíbem o mal, porém, este também descreve como afastar-se dele. Por
exemplo: fazer penitência é um preceito; fazer penitência significa deixar de
pecar; aqui se indica não só como fazer penitência e o que é necessário dizer
para arrepender-se. Assim mesmo Paulo disse: "A atribulação produz na
alma a constância; a constância, a virtude provada; a virtude provada, a
esperança; e a esperança não fica despojada" (Rom. 5,3-5). Os Salmos
descrevem e mostram, ademais, como suportar as atribulações, o que deve
fazer o afligido, o que deve dizer uma vez passada a atribulação, como cada
um é posto à prova, quais são os pensamentos do que espera no Senhor... O de
dar graças em toda circunstância é também um preceito. Os Salmos indicam o
que deve dizer aquele que dá graças. Sabendo, por outro lado, que os que
pretendem viver piedosamente serão perseguidos, aprendemos dos Salmos como
clamar quando fugimos em meio a perseguição, e que palavras dirigir a Deus
uma vez escapando dela. Somos convidados a bendizer ao Senhor, encontramos
as expressões adequadas para manifestar-lhe nossa confissão. Os Salmos expressam
como devemos elogiar ao Senhor, que palavras lhe rendem homenagem de
modo adequado. Para toda ocasião e sobre todo argumento, encontraremos então
poemas divinos adequados às nossas emoções e sensibilidade.