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APOLOGÉTICA: A. Boulenger
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CAPÍTULO I - INSTITUIÇÃO DE UMA IGREJA
I. Noções preliminares.
Para evitar confusões, é conveniente, antes de mais nada, determinar o sentido das duas expressões “reino de
Deus” e “Igreja”, cujo uso será freqüente nesse capítulo.
- Conceito de reino de Deus. A expressão “reino de Deus” aparece ao menos cinqüenta vezes
nos Evangelhos de S. Marcos e S. Lucas. S. Mateus, pelo contrário, emprega-a raramente (XII, 28; XXI, 31, 43),
substituindo-a pelo hebraísmo “reino dos céus”. Mas pouco importa, porque as duas expressões têm o mesmo
sentido. O reino de Deus, ou reino dos céus, era o assunto em que Jesus mais insistia.
Os judeus, fundando-se nos oráculos messiânicos, esperaram durante alguns séculos o estabelecimento de um grande Reino,
que devia propagar-se pelo mundo, e dum Rei que Javé deveria enviar para governar. Portanto, a fundação desse reino
devia se a obra do Messias. Mas o reino que Jesus prega não era semelhante àquele que os judeus imaginaram. É a nova
religião, a grande sociedade cristã que Jesus Cristo vai fundar, e que há de implantar na terra até o dia em que será juiz e
rei na sua última vinda. O reino de Deus tem, pois, duas faces:
- Um reino terrestre, no qual poderão entrar todos os homens do mundo;
- Um reino celeste e transcendente, um reino escatológico, que será estabelecido no céu.
- Conceito de Igreja. Etimologicamente, a palavra Igreja (do grego “ekklêsia”, assembléia)
designa uma assembléia de cidadãos convocados por um pregoeiro público.
- Na linguagem escriturística a palavra tem duas significações.
- No sentido restrito e conforme a etimologia, aplica-se quer a assembléia dos cristãos que se reúnem numa casa
particular (Rom. XVI, 5; Col. IV, 15), quer ao conjunto de fiéis de uma cidade ou região; tais são, por exemplo, a igreja
de Jerusalém (Act., VIII, 1; XI, 22; XV, 24), a igreja de Antioquia (Act. XIV, 26; XV, 3; XXIII, 1), as igrejas da Judéia
(Gal., I, 22), da Ásia (I Cor., XVI, 19) e da Macedônia (II Cor., VIII, 1).
- Geralmente, Igreja designa a sociedade universal dos discípulos de Cristo. Nessa significação é empregada no
evangelho de S. Mateus no célebre “Tu es Petrus”... Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha “Igreja”
(Mat. XVI, 18). Aparece o mesmo sentido com bastante freqüência nos Actos (V, 11; VIII, 1, 3;IX, 31), nas
Epístolas de S. Paulo (I Cor., X, 32; XI, 16; XIV, 1; XV, 9; Gal., I, 13; Ef., I, 23; V, 23; Col., I, 18), Epístola de S.
Tiago (V, 14).
Na linguagem dos SS. Padres, a palavra Igreja encontra-se em ambos os sentidos:
- Em sentido restrito ou de assembléia dos fiéis, por exemplo, Didaché (IV, 12); ou de agrupamento local ou regional
dos fiéis; como na Epístola de S. Clemente para os Coríntios no endereço e XLVII, 6;
- Em sentido geral, para designar o conjunto dos fiéis pertencentes à religião cristã, encontra-se nos escritos do papa S.
Clemente, de S. Inácio, de S. Ireneu, de Tertuliano e de S. Cipriano.
- Conforme a doutrina católica, a palavra Igreja, tomada em sentido geral, aplica-se à sociedade dos fiéis que
professam a religião de Cristo, sob a autoridade do Papa e dos Bispos.
- Como sociedade, a Igreja possui a três características comuns a toda sociedade, a saber: fim, sujeitos aptos para
atingir o fim, e a autoridade com a missão de os conduzir ao fim.
- Os caracteres da Igreja como sociedade religiosa, tem natureza especial. O fim que prossegue é de ordem
sobrenatural, pois não tem em vista os interesses temporais dos súditos, mas unicamente a salvação de suas almas. A
autoridade, que assume a direção, é uma autoridade sobrenatural que recebeu de Jesus Cristo um tríplice poder:
- O poder doutrinal infalível, para ensinar a doutrina de Cristo;
- O poder sacerdotal para comunicar a vida divina pelos sacramentos e;
- O poder de governar, que impõe aos fiéis o que é necessário e útil para sua salvação.
Nota
O conceito de reino é muito mais extenso que o da Igreja. Esta faz parte do reino; é o seu lado visível o social, mas
não é todo o reino, pois este tem dois aspectos; o terrestre e o celeste ou escatológico. Contudo:
- Igreja, tomada no sentido lato, confunde-se como reino de Deus. Com efeito, os teólogos distinguem o
corpo e a alma da Igreja, isto é, a comunidade visível e hierárquica dos cristãos, e a sociedade
invisível, a alma, à qual pertencem todos os que estão em estado de graça, ainda que professem outra religião.
Compreendem, além disso, na noção de Igreja não somente os fiéis deste mundo (Igreja militante), mas também
os eleitos que estão no Céu (Igreja triunfante) e as almas que sofrem no Purgatório (Igreja purgante
ou padecente).
- Sob o ponto de vista apologético, como aqui o entendemos, a palavra Igreja significa a sociedade visível e
hierárquica dos cristãos deste mundo, considerado sob o seu aspecto esterno e social (sentido geral).
II. Divisão do capítulo
Neste capítulo estudaremos duas questões:
- Indagaremos, primeiramente, se Jesus Cristo pensou em fundar uma Igreja: é a questão prévia;
- No caso afirmativo, devemos provar historicamente quais são as características essenciais da Igreja fundada
por Jesus. Daí, dois artigos. No primeiro, teremos como adversários os racionalistas, os protestantes liberais e os
modernistas. No segundo, além desses adversários, teremos também os protestantes ortodoxos e os gregos
cismáticos.
Art. I - Questão preliminar: Jesus pensou em fundar uma Igreja
Segundo os protestantes liberais e os modernistas, como Jesus tinha somente a missão de estabelecer o reino de Deus,
não podia ter pensado em fundar a Igreja. O reino de Deus, como o concebem os nossos adversários, é incompatível
com a noção católica de Igreja. O reino de Deus pregado por Jesus Cristo é, pois:
- Para uns, um reino meramente espiritual;
- Para outros, um reino somente escatológico.
Mostraremos que esses dois sistemas são uma interpretação incompleta e, por conseqüência, falsa, do pensamento e
obra de Jesus Cristo.
§1º - O sistema do reino de Deus meramente interior. Refutação.
- Exposição do sistema. Segundo Sebastier e Harnack, Jesus nunca pensou em fundar um Igreja, ou
sociedade visível, mas limitou-se a pregar um reino de Deus interior e espiritual. A sua única
preocupação foi o de fundar o reino de Deus na alma da cada fiel, operando nela uma renovação interior e inspirando-lhe
para com Deus os sentimentos dum filho para com seu Pai.
Jesus encontrara, na geração de seu tempo, uma religião exclusivamente ritual e formalista. Não a proibiu expressamente,
mas considerou como secundário esse aspecto externo da religião.
A grande novidade que pregou, o elemento original e propriamente seu, por assim dizer, a essência do cristianismo, é o
lugar preponderante que atribui ao sentimento. Deste modo, o reino de Deus é íntimo e espiritual, destinado às
necessidades da alma, sem imposição alguma de dogmas, instituições positivas e ritos meramente externos, deixando neste
ponto completa liberdade ao modo de pensar individual.
Por conseguinte, a organização do cristianismo, como sociedade hierárquica, não entra no plano traçado pelo salvador;
a Igreja visível é criação humana, cujas causas e origens pertencem ao domínio da história.
- Refutação. Concedemos sem dificuldade aos nossos adversários que a essência da religião pregada por
Cristo é sobretudo espiritual, que a maior inovação do cristianismo foi a renovação interior pela fé, pela caridade e pelo
amor ao Pai, e que Jesus estabeleceu uma diferença essencial entre o farisaísmo daquele tempo e a nova religião. Não
devemos porém exagerar, porque a espiritualidade do reino dos céus não é estranha ao conceito que dele faziam os
profetas.
Todavia, temos de admitir, com Harnack, que o reino espiritual e interior foi exatamente a obra de Jesus; porque, como a
voz dos profetas teve pouco eco, só Jesus conseguiu com sua autoridade, opor à justiça meramente externa e material do
culto mosaico a justiça do novo reino, onde as virtudes interiores, como a humildade, a castidade, a caridade e o perdão
das injúrias ocupam o primeiro lugar.
Mas, feitas essas observações, seguir-se-á, porventura, como pretende Harnack, que o reino de Deus, pregado e fundado
por Jesus Cristo, é um reino meramente individual, uma sociedade invisível compostas das almas justas, sem nenhum
caráter coletivo e social? Poder-se-á afirmar que a perfeição interior deve ser considerada como a essência do cristianismo,
por ser ela só a obra de Cristo? De modo algum.
Há, neste modo de pensar, um sofisma desmascarado pelo próprio Loisy: “Não seria lógico", diz ele,
"considerar como essência total duma religião o que a diferencia das outras. A fé monoteísta, por exemplo, é comum ao
judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, e contudo, e modo algum se deve procurar, fora da idéia monoteísta, a essência
dessas três religiões. O judeu, o cristão e muçulmano admitem igualmente que a fé num só Deus é o primeiro e principal
artigo de seu símbolo. É pelas suas diferenças que se estabelece o fim essencial de cada uma delas, mas não são somente
as diferenças que constituem as religiões... Jesus não quis destruir a lei, mos cumpri-la. É pois natural que haja no judaísmo
e no cristianismo elementos em comum, essenciais a ambos... A importância desses elementos não depende de sua
antiguidade, nem da sua novidade, mas do lugar que ocupam na doutrina de Jesus Cristo e da importância que o próprio
Jesus Cristo lhes dá” (Loisy, L´Évangile et l´Église, Introd. p. XVI e seg.).
Por outras palavras, o “reino de Deus” não e exclusivamente espiritual, só porque o Messias ensinou que era
sobretudo espiritual. Tudo isso é evidente, se interpretarmos as palavras de Jesus Cristo, segundo as
condições do meio e das idéias, em que foram proferidas.
Jesus insistia particularmente na idéia de perfeição interior e de renovação espiritual para corrigir os falsos conceitos dos
judeus, que esperavam um reino temporal, por se terem fixado quase exclusivamente no elemento secundário das profecias.
Queria persuadir-lhes que o reino de Deus que veio fundar não era reino temporal, nem o triunfo de uma nação sobre as
outras, mas reino universal, para todos os povos, no qual poderia entrar todo homem de boa vontade pela prática das
virtudes morais e interiores.
Essa mesma idéia se depreende principalmente das parábolas, que eram a maneira mais usada por Jesus Cristo para ensinar
as verdades que desejava inculcar. Compara, por exemplo, o reino dos céus ao campo do pai de família onde nasceram e
cresceram juntamente o bom grão e o joio (Mat. XIII, 24-30), a rede que pesca peixes bons e maus (Mat. XIII, 47). Ora,
essas palavras não fariam sentido na hipótese de um reino meramente interior e espiritual.
Ademais, a expressão reino de Deus seria muito imprópria se devesse entender reino de Deus na alma individual;
porque, nesse caso, não se trataria de um reino, mas de tantos reinos quantas as almas.
Os partidários desse sistema, para provar a sua tese, fundam-se no texto de Lucas (XVII, 20): Ecce regnum Dei intra
vos est, que traduzem deste modo: “O reino de Deus está em vós”. Mas esta passagem tem outro sentido e,
segundo o contexto, deve traduzir-se: “O reino de Deus está no meio de vós”. Os fariseus interrogam Jesus e
perguntam-lhe quando virá o reino de Deus. Jesus responde: “O reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores.
Não dirão: ei-lo aqui, ou ei-lo acolá; porque eis aqui está o reino de Deus no meio de vós”. Como é fácil de ver, estas
palavras no contexto não só não favorecem, mas parecem até ir contra a idéia de um reino meramente espiritual; porque,
dirigindo-se essa resposta aos fariseus, que não criam e que, por conseguinte, se punham fora do reino, Jesus não lhes podia
dizer que o reino estava em suas almas.
Portanto, o pensamento de Jesus é muito diverso daquele que nossos adversários atribuem. Conhecendo Jesus as falsas
idéias dos seus contraditores, que julgavam que a vinda do reino e do Messias seria acompanhada de sinais portentosos,
de prodígios extraordinários no céu, ensinava-lhes a maneira como o reino de Deus há de vir. Diz-lhes que não virá como
uma coisa que impressiona a vista, como um astro, cujo curso se pode conhecer, porque o reino será principalmente
espiritual e por isso não será objeto de observação. Além de que, ajunta Jesus, é inútil andar e procura-lo, porque já
veio e está no meio de vós.
- Conclusão. Da genuína interpretação do texto de S. Lucas e das razões que antes demos, pode coligir-se
que o reino de Deus não é meramente espiritual, mas coletivo e social e que, por conseguinte,
não se pode afirmar que Jesus Cristo nunca pensou em fundar uma Igreja visível.
§2º - O sistema de um reino meramente escatológico
- Exposição do sistema. Segundo Loisy a fundação da Igreja nunca entrou nos planos do Salvador.
Vejamos como o autor o demonstra.
Na época em que apareceu o Nosso Salvador, era idéia corrente entre o Judeus que o Messias havia de inaugurar o reino
final e definitivo de Deus, isto é, o reino escatológico. Ora, analisando os textos dos Evangelhos, somente sobre o aspecto
crítico e sem os deformar com interpretações teológicas, parece certo que Jesus compartilhava do erro de seus
contemporâneos.
Por conseqüência, a sua pregação tinha dois fins:
- Anunciar a vinda próxima do reino e o fim do mundo, intimamente conexos entre si; e
- Preparar as almas para estes acontecimentos por meio da renuncia dos bens do mundo e da prática das virtudes
morais para alcançar a justiça.
Portanto o Cristo da história não pôde sequer pensar em fundar uma Igreja, isto é, uma instituição estável.
Não se pode, por conseguinte, falar de instituição divina da Igreja; porque foram as circunstâncias e o fato de não se ter
realizado o reino escatológico que levaram os discípulos a corrigir o plano do Mestre e a interpretar de outro modo as
expressões que Jesus tinha dito de um mundo prestes a acabar, para acomoda-las ao mundo que continua a existir.
Donde se pode concluir que Jesus Cristo anunciava o reino, e em vez dele apareceu a Igreja.
Posto que a Igreja não provenha da intenção e vontade de Jesus, contudo, continuam os modernistas, pode dizer-se que
está relacionada com o Evangelho, por ser uma espécie de continuação da sociedade que Jesus tinha reunido em volta
de si, em vista do reino que desejava fundar. Assim, a Igreja é, em certo modo, o resultado legítimo, ainda que
inesperado, da pregação de Jesus, e pode dizer-se que é realmente continuação do Evangelho. Por outros termos; Jesus
tinha reunido em volta de si alguns discípulos, aos quais confiou a missão de preparar o advento do reino próximo; mas,
como os acontecimentos iludiam as esperanças dos apóstolos - porque o reino não chegava, - a pequena comunidade
cresceu e deu origem a Igreja.
A Igreja pode, portanto, definir-se: a sociedade dos discípulos de Cristo, que, vendo que o reino escatológico não se
realizava, se organizaram e adaptaram às condições atuais.
Se perguntarmos a Loisy que havemos de fazer dos textos que narram a fundação da Igreja, responder-nos-á, com os
protestantes liberais, que não são históricos, pois “são palavra de Cristo glorificado” e, por conseguinte, interpretações
ou maneiras de pensar dos primeiros cristãos. Em seguida, Loisy conclui que “a fundação da Igreja por Jesus Cristo
ressuscitado não é, para o historiador, fato palpável” (Loisy, L´Évangile de l´Église).
- Refutação. Jesus Cristo, tendo apenas o objetivo de preparar as almas para a vinda iminente do reino dos céus e
para a sua “parúsia”, mão podia ter pensado em fundar uma sociedade estável: tal é a idéia mestra do sistema de Loisy. Ora,
para provar esta tese seria necessário retalhar o texto evangélico sem motivo justificável, e fazer uma escolha inadmissível, ou
uma interpretação fantasista das passagens referentes à Igreja, como vamos demonstrar.
Sujeitemos a exame cada uma das afirmações de Loisy. Primeiramente, será verdade que os contemporâneos de Jesus tinham
somente a idéia de um reino de Deus escatológico? Como muito bem observou o P. Lagrange, em "Le Messianisme chez
lês Juifs", podemos distinguir claramente na literatura daquele tempo duas manifestações do pensamento judeu: a dos
apocalipses e a dos rabinos.
Ora, tanto uns como outros afirmavam que o reino messiânico não se identificava como o reino escatológico, e ambos se
preocupavam com o porvir do reino de Israel neste mundo. A única diferença que havia entre eles é que os primeiros insistem
mais no reino escatológico, e os segundos, no reino do mundo atual. Por conseguinte, se Jesus Cristo tivesse adotado as
idéias dos apocalipses, pregaria somente um reino escatológico e corrigiria as idéias dos rabinos. Ora, Jesus não o fez.
Vemos claramente do exame imparcial dos Evangelhos que o Salvador descreve um reino que tem duas fazes sucessivas,
uma terrestre a outra escatológica ou final. A primeira é apresentada por Jesus Cristo com
características que não podem de modo algum aplicar-se ao reino escatológico e se adaptam perfeitamente à vida presente.
Fala de um reino já fundado: “Desde os dias de João Batista até agora, o reino de Deus padece força, e os que fazem
força são os que a arrebatam”, (Mat. XII, 12). Quando replica os fariseus, que o acusam de expulsar os demônios em
nome de Belzebu, diz: “Se eu lanço fora os demônios pela virtude do Espírito de Deus, logo é chegado a vós o reino de
Deus” (Mat. XII, 28).
Todavia, nas parábolas de Jesus aparece mais claramente a doutrina de Jesus. Nelas se descreve o reino de Deus como
realidade já existente e concreta, que deve crescer e desenvolver-se (parábola do grão de mostarda, em Mat. XIII, 31-35;
Marc. IV, 30-32), que tem no seu seio bons e maus (parábolas do joio e do trigo, Mat.XVII, 24-30; da rede que pesca
peixes bons e maus, Mat. XIII, 47-50; das virgens prudentes a das virgens loucas, Mat. XXIV, 1-18).
Ora, essas qualidades não se podem aplicar ao reino escatológico, e só podem convir a um reino já fundado, suscetível
de se adaptar e de aperfeiçoar, que sirva de preparação a outra forma de reino onde a escolha já está feita, no qual só
o bom grão, os bons peixes e as virgens prudentes terão entrada e do qual o joio os peixes maus e as virgens loucas
serão escolhidos.
- Instância. Não teríamos dificuldade em admitir tudo isso, dizem os partidários do sistema escatológico, se
os textos alagados para provar o reino de Deus neste mundo fossem autênticos. Mas não o são; porque foram
intercalados pela primitiva geração cristã que, vendo que o reino escatológico não se realizava, procuraram harmonizar
o pensamento e as palavras de Jesus com os fatos.
Todo crítico de boa fé reconhece as duas séries de textos, uma escatologia e outra não, e admite que são incompatíveis
entre si. Devemos, pois, fazer a escolha dos dois textos das duas tradições e indagar qual a primitiva. Ora, tudo nos leva
a crer que só a série escatológica representa o genuíno pensamento do Salvador, porque não podia ter sido inventada
no momento em que os fatos a desmentiam. Logo, a segunda série é posterior ao Evangelho.
- Resposta. A objeção modernista carece de fundamento sólido. As duas séries de textos não são novidade
alguma para nós, e todos os católicos as admitem; mas daí não se pode concluir que se excluam mutuamente. Não
haverá acaso meio algum de as conciliar? A dificuldade está exatamente neste ponto.
Se Jesus Cristo tivesse anunciado o fim do mundo e o reino escatológico, como um acontecimento iminente, haveria sem
dúvida motivo para contradição entre as duas séries de textos, e Jesus não podia ser o autor da série não escatológica.
Mas, será verdade que o Salvador afirme que o reino escatológico devia realizar-se em breve?
Posta a questão nestes termos, poderemos responder a priori que a conciliação é possível; porque é inadmissível
que os Evangelistas, escrevendo os discursos do Senhor tantos anos depois, fossem tão ineptos que introduzissem textos
que os vinham contradizer. Mas uma das duas: ou os Evangelistas são fidedignos ou não. Na primeira hipótese
foram fiéis, e neste caso só teríamos uma série de textos. Na segunda hipótese, porque não suprimiram e série
escatológica, visto que era desmentida pelos acontecimentos, deixando apenas a série não escatológica?
Será acaso verdade que a série escatológica só admite a interpretação modernista? A resposta levar-nos-ia à celebre
profecia sobre o fim do mundo. É impossível que a redação tenha sido posterior aos acontecimentos, por causa do
enredo dos fatos e da confusão que se nota nas narrações. Se os Evangelistas tivessem escrito depois da ruína de
Jerusalém, teriam distinguido melhor, entre a ruína de Jerusalém e o fim do mundo, e indicado com maior clareza o fato de
que davam os sinais precursores. Ademais, o historiador Eusébio (Hist. Ecl. III, 5, 3) diz-nos que os cristãos da Judéia
se lembraram da predição de Jesus quando viram aproximar-se os Romanos, e fugiram em grande número para Pela
da Transjordânia, evitando assim os horrores da invasão. É inútil, portanto, insistir. Basta recordar que a frase de Jesus
“esta geração não passará antes que todas estas coisas se cumpram" (Mat. XXIV, 34; Marc. XIII, 30; Luc.
XXI. 32), invocada pelos adversários para provar que o Salvador cria no fim iminente do mundo, segundo o
contexto, deve aplicar-se à ruína de Jerusalém e do povo judeu.
É certo que os Evangelistas não estabelecem distinção suficientemente clara entre as duas catástrofes a que as suas
narrativas do fim do mundo e da ruína do templo são faltas de precisão. E é por esse motivo que muitos críticos julgaram
que os apóstolos, levados pelas idéias do meio ambiente, se enganaram acerca do pensamento de Jesus.
Em qualquer hipótese não se pode admitir que Jesus cometesse o erro que lhe imputam os adversários; porque, é fora
de dúvida, - cingindo-nos simplesmente aos dados da crítica literária, - que a catástrofe, cuja realização Jesus anunciava
como iminente e à qual havia de assistir a geração de seu tempo, era a destruição de Jerusalém e do templo; porquanto,
o tempo da segunda é considerado por Jesus como muito mais afastado, pois diz que “ninguém lhe sabe o dia nem a
hora" (Mat. XXIV, 36).
Quanto às passagens que declaram iminente a vinda o Filho do homem sobre as nuvens do céu (Mat. XVI, 28;
XXVI, 64; Marc. IX, 1; Luc. IX, 27; XXII, 69), podem entender-se da predição do admirável incremento que o reino
messiânico teria em breve e do qual havia de ser testemunha a geração a que Nosso Senhor se dirigia. Assim
interpretados esses textos, podemos dizer que se cumpriram à letra, visto que a difusão da religião cristã se operou com
rapidez admirável.
- Conclusão. Da discussão precedente não é temeridade concluir que o sistema dum reino exclusivamente
escatológico é tão inaceitável quanto o sistema dum reino meramente interior e espiritual. Portanto, Jesus tinha em vista
a formação de uma Igreja como sociedade visível.
Art. II. - Jesus Cristo fundo uma Igreja. Caracteres essenciais
Estado da questão
Demonstramos que o reino de Deus pregado por Cristo inclui um período a que podemos chamar fase terrestre e
preparatória do reino escatológico. Ora, esse reino compreende todos aqueles que admitem a doutrina ensinada por Jesus
e, por conseguinte, é uma sociedade, a que damos o nome de Igreja.
Investiguemos agora a natureza dessa sociedade. Compõe-se porventura de membros iguais, ficando assim a
interpretação da doutrina de Cristo ao arbítrio do juízo individual, ou está hierarquicamente constituída, isto é, composta
de dois grupos distintos, um que ensina e governa, e outro que é ensinado e governado? Instituiu Jesus, por si mesmo,
uma autoridade a qual confiou a missão de ensinar autoritativamente a sua doutrina? Numa palavra, o cristianismo, é
“religião de espírito” ou “religião de autoridade”?
Os protestantes ortodoxos, que são os adversários neste ponto, sustentam a primeira hipótese, isto é, que Jesus não
instituiu uma autoridade visível. As verdades de fé, os preceitos e os meios de santificação ficaram dependentes da
apreciação subjetiva e individual, pois Jesus não estabeleceu intermediário algum obrigatório entre Deus e a consciência.
Se lhes perguntarmos porque motivo se agrupam e fazem reuniões, respondem simplesmente que é para orar em comum,
para ler e comentar o Evangelho, para praticar os ritos do batismo e da ceia e para se edificaram mutuamente no amor de
Deus e na caridade fraterna, mas nunca para obedecer uma autoridade constituída. Os protestantes procuram apoiar na
história essa maneira de sentir. Veremos depois como explicam a instituição da hierarquia e as origens do catolicismo.
Contra essas afirmações demonstraremos que Jesus instituiu uma hierarquia permanente, - o colégio dos Doze e seus
sucessores, - cujo chefe único é Pedro e os que lhe sucederem no cargo, e que a essa hierarquia outorgou a autoridade
governativa dotada duma caução divina, da infalibilidade doutrinal.
Para melhor atingir o nosso intento, dividiremos as questões do seguinte modo:
- Jesus conferindo aos apóstolos os três poderes de ensinar, reger e santificar, fundou uma hierarquia e por
conseguinte, instituiu uma autoridade visível;
- Esta hierarquia é permanente, visto que os três poderes dos apóstolos devem transmitir-se aos seus sucessores;
- À frente da hierarquia colocou um chefe único (primado de Pedro e seus sucessores);
- Finalmente, garantiu a integral conservação de sua doutrina, outorgando à Igreja docente o privilégio da infalibilidade.
Estes pontos constituirão outros tantos parágrafos.
§ 1º - Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica
Estado da questão
- Os protestantes ortodoxos, dissemos nós, não admitem que Jesus tenha posto à frente de sua Igreja uma autoridade
visível. Entretanto, concedem a historicidade e até a inspiração dos textos evangélicos que os católicos alegam em favor de
sua tese.
- Os racionalistas, os protestantes liberais e os modernistas, pelo contrário, rejeitam a autenticidade desses textos, dizendo
que foram redigidos posteriormente por autores desconhecidos e insertos na narração evangélica depois dos acontecimentos,
quer dizer, no momento em que a instituição da Igreja hierárquica era um fato consumado.
A tese católica baseia-se, portanto, em dois argumentos:
- Um, fundado nos textos evangélicos, que, com todo o direito, podemos utilizar contra os protestantes
ortodoxos, e
- Outro, históricos, em que nos propomos refutar a falsa concepção dos liberais e dos modernistas acerca da
origem da Igreja hierárquica.
- Argumento escriturístico - nota: Quando sustentamos que a possibilidade de encontrar a instituição divina de
uma Igreja hierárquica nos textos evangélicos, não queremos afirmar que Jesus declarou explicitamente que
fundava uma Igreja hierárquica para um dia ser governada pelos Bispos sob o primado do Papa; porque nunca
pronunciou explicitamente estas palavras. Para demonstrarmos a nossa tese, basta provar que encontramos o equivalente
no fato de ter escolhido os Doze apóstolos e de lhes ter conferido poderes especiais que não concedeu
aos outros discípulos.
- Escolha dos Doze. Todos os Evangelistas são concordes em testemunhar que Jesus escolheu doze entre os
discípulos, a quem deu o nome de Apóstolos (Mat. X, 2-4; Marc. III, 13, 19; Luc. VI, 13, 16; João, I, 35 e segs.).
Instituiu-os de uma maneira particular, desvendou-lhes o sentido das parábolas que as turbas não compreendiam
(Mat. XIII, 11) e associou-os à sua obra mandando-lhes que pregassem o reino de Deus aos filhos de Israel (Mat. X, 5,
42; Marc. VI, 7, 13; Luc. IX, 1, 6).
- Poderes conferidos ao colégio dos Doze.
- Ao colégio dos Doze, - a Pedro em particular (Mat. XVI, 18s), e a todo o colégio apostólico (Mat. XVIII, 18), -
Jesus primeiro prometeu "o poder de ligar no céu o que eles ligassem na terra”, isto é, uma autoridade governativa
que os constituiria juízes nos casos de consciência e lhes comunicaria a faculdade de preceituar ou proibir e, portanto, de
obrigar; de modo que todo aquele que não obedecesse a Igreja seria considerado “como um pagão ou publicano”
(Mat. XVIII, 17).
Mas, objetam os protestantes a propósito do último texto, a palavra Igreja no versículo 17 é tomada no sentido restrito de
assembléia, e por isso não pode servir de argumento em favor duma autoridade hierárquica. Bem, palavra Igreja pode
prestar-se a duas interpretações. Segundo as regras a hermenêutica, porém, todo texto obscuro deve ser interpretado
conforme os lugares paralelos mais claros. Ora, não há dúvida que nos outros textos, que tratam dos poderes concedidos
por Nosso Senhor à sua Igreja, esta concessão estende-se somente ao colégio apostólico. Portanto, devemos atribuir
o mesmo sentido ao texto de Mateus.
- Poucos dias antes da Ascensão, Jesus conferiu aos doze apóstolos o poder que antes ele tinha prometido: “Todo
poder me foi dado no céu e na terra; ide, pois, e ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos tenho ordenado, e estai certos de que eu estou
convosco todos os dias até a consumação dos séculos" (Mat. XXVIII, 19, 20).
Deste modo, Jesus comunicou aos apóstolos o poder:
- De ensinar: “Ide e ensinai todos os povos”;
- De santificar, pelos ritos instituídos para esse fim e, em particular pelo batismo;
- De governar, uma vez que os apóstolos ao de ensinar o mundo a observar tudo o que Jesus mandou.
Objetam os racionalistas que esta passagem não tem valor algum, sob pretexto que as palavras e ações de Cristo
ressuscitado não podem ser comprovadas pelo historiador.
É evidente o preconceito racionalista. Se a Ressurreição pode demonstrar-se como fato histórico e como uma realidade
de que os apóstolos alcançaram a certeza, o propósito de rejeitar as palavras de Cristo ressuscitado, atinge a própria
ressurreição. Além de que, as palavras de Cristo ressuscitado estão de tal modo conexas com as palavras da promessa
que impugnar umas é o mesmo que impugnar as outras, e negar umas é tornar inexplicável o procedimento dos apóstolos,
que após a morte do seu mestre reivindicaram os três poderes mencionados.
- Argumento histórico - preliminares:
- A questão da instituição divina de uma Igreja hierárquica é sobretudo histórica; porque se a história nos mostrasse
que a fundação da Igreja foi posterior aos tempos apostólica e obra somente circunstâncias acidentais, em vão
alegaríamos argumentos escriturísticos, pois os adversários teriam o direito de considerar os textos evangélicos como
interpolações.
- Os documentos, que servem de fundamento ao estudo do cristianismo nascente, são os Atos dos Apóstolos e
as Epístolas de S. Paulo; para o período pós-apostólico (isto é, para as três gerações que se seguem aos
apóstolos), as obras dos Padres e dos escritores eclesiásticos.
Os Atos dos Apóstolos: S. Lucas, segundo a tradição universal e constante, é o autor dos Atos dos Apóstolos.
Esta tradição funda-se:
- Num argumento extrínseco (testemunhos de S. Ireneu, do cânon de Muratori, de Clemente de Alexandria),
e
- Num argumento intrínseco, pois da análise da obra concluiu-se que o autor era médico e companheiro de
S. Paulo e que os Atos apresentam as mesmas particularidades de linguagem e composição que o terceiro Evangelho.
Como o livro termina com a primeira prisão de Paulo em Roma, é provável que tenha sido composto depois de ter saído
do cárcere e antes da morte de S. Paulo (67). Os Atos são, pois, para o historiador dos primeiros tempos do cristianismo,
um dos mais preciosos documentos.
O autor refere os fatos, já como testemunha ocular, já conforme a narração de testemunhos oculares: Paulo, Barnabé,
Filipe e Marcos. A precisão e os pormenores circunstanciados com que são narrados afastam qualquer possibilidade de
lenda ou de amplificações tendenciosas. Quanto aos discursos que contém, foram sem dúvida colhidos de fontes escritas,
como parece indicar os numerosos aramaísmos que nele se encontram. Por outro lado, a sinceridade de S. Lucas não é
suspeita, e os críticos racionalistas só põe de parte o que se opõe à sua tese, isto é, os milagres e alguns discursos por
causa de seu alcance doutrinal.
A importância dos Atos é manifesta por conterem uma exposição completa da primeira pregação dos apóstolos e por nos
manifestarem a organização da Igreja primitiva.
As Epístolas de S. Paulo são também para o apologista fontes de grande importância tanto pela sua antiguidade, como
pelo valor documentário.
Podem agrupar-se em quatro séries segundo a data de composição:
- 1.a série: Ep. I e II aos Tessalonicenses (ano de 51);
- 2.a série: As Epístolas maiores, I e II aos Coríntios, aos Gálatas e aos Romanos (56, 57);
- 3.a série: As Epístolas escritas na prisão aos Filipenses, aos Efésios, aos Colossenses e a Filémon (61,62);
- 4.a série: As Epístolas pastorais I e II a Timóteo e a Tito (62).
A autenticidade das três primeiras séries é admitida pelos próprios racionalistas.
- Em muitos lugares dos Atos dos Apóstolos fala-se de “carismas”. Carismas (grego “charis” e “charisma”,
graça, dom, favor) são dons sobrenaturais concedidos pelo Espírito Santo para a propagação do cristianismo e
para o bem geral da Igreja nascente. São manifestações extraordinárias do Espírito Santo e por vezes desordenadas, como
o dom das línguas ou glossolalia, que consistia em louvar a Deus numa língua estranha e com ares de exaltação e entusiasmo
(leia-se a este propósito I Cor. XIV). Os carismas mais apreciados era o dom dos milagres e o das profecias; mas todos
eles eram sempre sinais divinos que tinham por fim confirmar a primeira pregação do Evangelho.
- Exporemos, sem sair do campo da história, as duas tese, racionalista e católica, acerca da origem da Igreja. A primeira,
a que damos o título geral da racionalista, é também defendida pelos historiadores protestantes, ortodoxos ou liberais e
pelos modernistas. Damos aqui um resumo, o mais objetivo possível, da exposição feita por A. Sabatier ("Les Religions
d´autorité et la Religion de l´espirit", pág. 47-83, 4.ª edição) que é melhor que existe em francês.
- A tese racionalista - Origem da Igreja
- A fundação duma Igreja hierárquica não podia ter sido obra de Jesus. “Nem a quis nem a podia prever, porque
pensava que a sua vinda coincidiria com o fim do mundo; portanto, o desenvolvimento histórico do cristianismo estava fora
do âmbito da sua missão messiânica”.
- Como os apóstolos “estavam sempre à espera da volta triunfante de Jesus sobre as nuvens do céu”, viviam
“numa exaltação febril”, considerando-se como estrangeiros e peregrinos, que "passam sem se preocupar com uma
fundação perdurável”.
- As primeiras comunidades de discípulos de Cristo não formavam, portanto, uma sociedade hierárquica. “Os dons
individuais (carismas) eram concedidos pelo Espírito Santo a diversos membros da comunidade cristã, consoante as
necessidades. Era o Espírito Santo que, operando em cada indivíduo, determinava as vocações e conferia aos fiéis, conforme
a sua capacidade ou zelo, ministérios e ofícios provisórios”.
- As primeiras comunidades cristãs, compostas ao princípio “de membros iguais entre si, distintos somente pela
variedade dos dons do Espírito”, tornaram-se com o tempo “corpos organizados, igrejas verdadeiras, que se
desenvolveram, tomando fisionomias diferentes, segundo a diversidade dos meios geográficos e sociais. As assembléias dos
cristãos na Palestina e na Transjordânia imitam as sinagogas dos judeus... No Ocidente tomam a fisionomia dos
colégios, ou associações pagãs, muito numerosas nessa época nas cidades gregas. Todavia, as associações cristãs dispersas
pelo império mantém entre si relações freqüentes... É pois natural que tenham tido desde o começo consciência nítida da
sua unidade espiritual e que tenha surgido nas casas do Apóstolo da gentes a idéia da Igreja de Deus, - ou de Cristo, - una
e universal, acima das igrejas particulares e locais... A unidade ideal da Igreja tenderá a tornar-se uma realidade visível, pela
unidade de governo, de culto e de disciplina”.
- Pra se operar essa unidade “faltam ainda duas condições necessárias. Primeiramente é preciso que as
cristandades particulares encontrem um centro fixo, à volta do qual se reúnam. Em segundo lugar importa que se estabeleçam
uma regra dogmática e um princípio de autoridade com que possam vencer todas as heresias e todas as resistências”.
Essas duas condições efetuaram-se do seguinte modo: Após a destruição de Jerusalém “a cristandade greco-romana
buscou um novo centro à volta do qual se pudessem agrupar. As hesitações não podiam ser longas. As Igrejas de Antioquia,
Éfeso e Alexandria, as mais importantes dos tempos apostólicos, eram mais ou menos iguais na autoridade que exerciam nas
comunidades das respectivas regiões. Mas havia uma cidade que sobressaia sobre todas as demais e que tinha importância
universal. Era Roma, e cidade eterna e sagrada... A capital do império estava, portanto, indicada de antemão para capital
da cristandade”. Está realizada a primeira condição: o centro fixo, princípio da unidade hierárquica.
- Numerosas seitas, entre outras, as grandes heresias do gnosticismo e do montanismo, que apareceram respectivamente
pelos anos 130 e 160, realizaram a segunda condição; porque “procurou-se e descobriu-se o meio de opor a todas a
objeções uma espécie de declinatório, ou questão prévia, mais eficaz do que a refutação das heresias, porque as executava
logo ao nascer. Esse meio consistia na profissão de fé apostólica, num símbolo universal e popular, que constituído como
lei na Igreja, excluía do seu seio, sem discussão nenhuma, todos aqueles que se recusavam a aceitá-lo. Foi esta a “regra
de fé”, a que se chamou símbolo dos apóstolos, redigido pela primeira vez na Igreja de Roma, entre os anos de 150 e
160”. A partir deste momento ficou fundado o catolicismo dotado de governo episcopal e da regra de fé externa.
Resumindo: o cristianismo, no começo, era uma “religião de espírito”, tendo como única regra de fé os carismas, isto é,
as inspirações individuais do Espírito Santo. Não tinha hierarquia nem sociedade visível. Não era independente das
sociedades judaicas, nem das sociedades pagãs, e só conseguiu ser religião de autoridade, com hierarquia própria, 120 ou
150 anos depois de Jesus Cristo, cerca dos fins do século II, no tempo de S. Ireneu e do papa S. Vitor. Entre a morte de
Jesus e a constituição católica da Igreja, há um período intermediário, em que não existiam organizações de qualquer espécie
e que pode designar-se com o nome de época pré-católica do cristianismo. Daí se segue que a Igreja Católica não é de
instituição divina. A fundação, o desenvolvimento e as vicissitudes de sua história explicam-se plenamente pelo concurso de
circunstâncias humanas. Só depois da Igreja estabelecer a sua infalibilidade... procurou justificar teoricamente o que já tinha
se realizado na prática. O dogma só consagrou o que passara à prática no primeiro ou nos dois primeiros séculos.
- Tese católica - Nota. Antes de discutirmos a tese racionalista, convém observar, para evitar equívocos, que
os historiadores católicos não pretendem de modo algum encontrar no começo do cristianismo uma organização tão perfeita
como a que mais tarde adquiriu. Seria desejar que a semente, logo depois de lançada à terra, produzisse frutos sem passar
pelas várias fases da germinação.
Os racionalistas concedem que no começo do século III, e mesmo nos fins do século II, a Igreja possuía já uma hierarquia e
tinha um centro de unidade e um símbolo de fé. A nossa investigação terminará, portanto, nessa época e
mostrará que o fruto sazonado, encontrado pelos historiadores e racionalistas nos fins do século II, é efeito do
desenvolvimento normal da semente lançada à terra nos primeiros anos do cristianismo.
Falando sem metáforas, demonstraremos que não existiu o suposto período pré-católico, que os órgãos essenciais do
cristianismo posterior estavam contidos no cristianismo dos tempos apostólicos. Antes, porém, examinaremos um por um
todos os artigos da tese racionalista.
- Refutação da tese racionalista
- O que os nossos adversários afirmam a respeito das intenções de Jesus, isto é, que não podia ter pensado em fundar
uma Igreja por esta se encontrar fora do plano da sua missão messiânica, é um preconceito já refutado que não abordaremos
novamente.
- Será certo - como levianamente se afirma - que os apóstolos, iludidos pela pregação de Jesus e esperando a próxima
vinda do reino escatológico, também não puderam pensar na organização de uma instituição durável? Se assim fosse, se os
apóstolos e os primeiros cristãos estivessem verdadeiramente convencidos que Jesus Cristo lhes tinha anunciado a vinda
próxima dum reino escatológico, porque é que a comunidade cristã não se dissolveu quando viu que tinha sido enganado por
Jesus? Este raciocínio é tão claro que os próprios historiadores liberais, como Harnack, reconhecem que o Evangelho era
alguma coisa mais do que isso, alguma coisa nova, a saber, “a criação de uma religião universal fundada na religião do
Antigo Testamento”.
- Dizer que se devem aos carismas os primeiros elementos da organização da Igreja, é também uma hipótese destituída
de fundamento. É evidente - como o prova a experiência quotidiana - que a inspiração individual conduz quase sempre
à anarquia. É o próprio Renan que o confessa no seu Marc Aurèle: “A profecia livre, os carismas, a glossolalia
e a inspiração individual eram causas mais que suficiente para reduzir o cristianismo às proporções de uma seita efêmera,
como vemos na América e na Inglaterra”.
- Também não é conforme à verdade afirmar que as primeiras comunidades cristãs não possuíam autonomia alguma, que
não se distinguiam das sinagogas ou das escolas pagãs. Concedemos que, para suavizar as transições, se tinham feito mútuas
concessões nalguns pontos secundários - as comunidades compostas exclusivamente de judeus convertidos foram autorizadas
a conservar a circuncisão, ao passo que os pagãos eram admitidos ao batismo sem passar pelo judaísmo - mas propugnamos
desassombradamente que o catolicismo apareceu, desde o primeiro dia, como uma religião completamente distinta da
mosaica, porque os apóstolos reconheciam-se investidos de uma missão religiosa universal, que não receberam dos chefes
do judaísmo.
Portanto, a idéia da Igreja única e universal não é particular de S. Paulo, posto que ocupe lugar preponderante no seu
ensinamento. Essa idéia provém de os apóstolos terem sido discípulos do mesmo mestre, que a todos ensinou as mesmas
verdades. Se as diversas igrejas do mundo só formam uma Igreja é porque são todas filhas da mesma comunidade
primitiva, da Igreja Mãe de Jerusalém, que por toda parte pregou sempre a mesma fé.
É falsidade dizer que a ruína de Jerusalém fez deslocar o centro de gravidade do cristianismo, porque já no tempo das
missões de S. Paulo e, por conseguinte, muitos anos antes da ruína de Jerusalém (ano 70), as comunidades cristãs tinham
abandonado o judeo-cristianismo e já estavam desligadas da capital de Judéia. É natural que Roma tenha sido escolhido
para centro da cristandade, por ser a capital do Império greco-romano; “mas fazemos certas reservas", diz Mons.
Batiffol, "quanto aos termos políticos que se empregam para descrever a cooperação de Roma e também quanto
à tendência de consideram como causa o que é apenas circunstância” (Batiffol, "L´Église naissante et le
catholicisme").
Não se pode atribuir a influência atribuída ao Símbolo dos Apóstolos na criação da unidade da Igreja e da reação contra
as heresias nascentes; porque, não é provável que tenha sido imposto às igrejas gregas o texto romano, que era a
profissão de fé batismal comum a Roma e às igrejas da Gália e da África no tempo de S. Ireneu e mesmo antes dessa
época. É até provável que estas não tenham possuído nenhum formulário comum da sua fé antes do Concílio de Nicéia
(325). Não se pode, portanto, sustentar que o Símbolo romano tenha sido a causa da unidade.
Supõe os racionalistas que o Símbolo dos Apóstolos foi redigido por ocasião das heresias nascentes, mormente no
gnosticismo e no montanismo. Ora, nessa fórmula não aparece indício algum anti-gnóstico, e os artigos encontram-se
equivalentemente nos escritos anteriores à heresia gnóstica, por exemplo, entre os apologistas, como S. Justino (150),
Aristides (140) e S. Inácio (110). Pode dizer-se até que, ao menos na substância, já fazem parte da literatura cristã da
idade apostólica.
O Símbolo romano, com maior razão ainda, é independente do montanismo, porque este é muito posterior e só penetrou
no mundo cristão do ocidente depois do ano 180, data em que, segundo o parecer dos próprios adversários, já estava
redigido o Símbolo.
- Argumentos da tese católica. Segundo os historiadores católicos, a hierarquia da Igreja remonta às origens
do cristianismo. Como já advertimos, é fora de dúvida que a Igreja foi progredindo quanto as formas externas da sua
organização; mas afirmamos - e este é o único ponto controverso - que a evolução se fez normalmente.
Os protestantes e os modernistas admitem que a Igreja, desde o tempo de S. Ireneu, do papa S. Vitor e da controvérsia
pascal, possui uma autoridade de ensino e de governo, isto é, que a Igreja é hierárquica. Não é difícil provar que já o era
muito antes, que o foi sempre e que não existiu era pré-católica. Não são, é certo, numerosos os documentos em que se
apóia a nossa tese, mas são decisivos. Os principais, por ordem decisiva, são:
- Testemunho de S. Ireneu. Não se deveria aduzir o testemunho de S. Ireneu, visto que os racionalistas concedem
que a Igreja no seu tempo já estava hierarquicamente organizada. Mas relatamo-lo porque é de estrema importância e nos
facilita a ascensão aos tempos primitivos da era cristã. S. Ireneu, argumentando contra os hereges, apresenta o caráter
hierárquico da Igreja, como um fato notório que ninguém pode negar, como uma fundação de Cristo e dos Apóstolos.
Ora, como podia reivindicar para a Igreja cristã a origem apostólica, se os seus adversários pudessem apresentar provas
de fundação recente na hierarquia?
- Testemunho de S. Policarpo. Se de S. Ireneu passarmos à geração precedente, encontraremos o testemunho
de S. Policarpo, que, pelos meados do século II designa os pastores como “chefes da hierarquia e guardas da fé”.
Entre os testemunhos do século II poderíamos citar ainda: o de Hegesipo que mostra as igrejas governadas pelos Bispos,
sucessores dos apóstolos, o de Dionísio de Corinto, que escreve na sua carta à Igreja romana que a Igreja de Corinto
guarda fielmente as admoestações recebidas outrora do papa Clemente e o testemunho de Abécio. Naquela célebre
inscrição do fim do século II, Abécio, talvez Bispo de Hierápolis, conta que nas suas viagens pelas Igrejas cristãs,
encontrou por toda parte a mesma fé,, a mesma Escritura, a mesma Eucaristia.
- Testemunhos de S. Inácio de Antioquia (+110) e de S. Clemente de Roma (+100). Com esses dois
testemunhos chegamos ao princípio do século II, ou fins do século I.
S. Inácio fala, na sua Epístola aos Romanos, da Igreja de Roma como centro da cristandade: “Tu (Igreja de Roma)
ensinaste as outras. E eu quero que permaneçam firmes as coisas que tu prescreves pelo teu ensino” (Rom. IV, 1).
Cerca do ano 96, S. Clemente Romano, discípulo imediato de S. Pedro e S. Paulo, escreveu uma carta aos Coríntios, na
qual nos dá da Igreja noção equivalente à de Ireneu, apresentando a hierarquia como a guarda da Tradição e a Igreja de
Roma com a primazia universal sobre todas as Igrejas locais.
Deste modo, de geração em geração, chegamos aos tempos apostólicos. Os testemunhos dos Atos dos Apóstolos, com
termos claros e explícitos, falam-nos da existência de uma sociedade que tem a sua hierarquia visível, a sua regra de fé e
o seu culto:
- Hierarquia visível. Desde o primeiro alvorecer do cristianismo, os apóstolos desempenharam a dupla função de
dirigentes e pregadores. Escolheram Matias para ocupar o lugar de Judas (At. I, 12-26). No dia de Pentecostes S. Pedro
começou a sua pregação e fez numerosas conversões (At. II, 37). Pouco depois os apóstolos instituíram diáconos nos
quais delegaram parte dos seus poderes (At. VI, 1-6).
- Regra de fé. É incontestável que entre os primeiros cristãos alguns foram favorecidos com os dons do Espírito
Santo, ou carismas, mas não exageremos, nem julguemos que as primeiras comunidades eram apenas núcleos místicos de
judeus piedosos, que recebiam os dogmas por meio das inspirações do Espírito Santo. Os carismas eram um motivo de
credibilidade que levava as almas à fé ou as mantinha no fervor religioso. Não eram regra de fé, mas estavam subordinados
ao magistério dos apóstolos e à fé recebida, como se vê em S. Paulo, que regula o uso dos carismas nas assembléias (I Cor.
XIV, 26-40) e não hesita em declarar que nenhuma autoridade pode prevalecer sobre o Evangelho que ela ensinou (I
Cor. XV, 1).
Portanto, o cristianismo primitivo tinha uma regra de fé que lhe veio dos apóstolos. Não é complicada e resume-se em poucas
palavras. Geralmente os apóstolos ensinavam nas suas pregações que Jesus realizou a esperança messiânica, que é o Senhor
a quem são devidas as honras divinas e que só nele há salvação (At. IV, 12).
Esta é a doutrina elementar, que os Apóstolos impunham a todos os membros do cristianismo. Nada absolutamente é
deixado à inspiração individual; quando surge alguma controvérsia no seio da Igreja nascente, é levada aos Apóstolos como
a autoridade incontestável e única, com poder de a dirimir.
- Culto. A leitura dos Atos dos Apóstolos testifica-nos claramente que a sociedade cristã possuía e observava
ritos especificamente distintos dos judaicos: o batismo, a imposição das mãos para conferir o Espírito Santo e a fração do
pão.
- Conclusão. Podemos inferir desta longa discussão que a Igreja Católica, logo no princípio da sua existência,
era uma sociedade hierárquica, conforma ao dogma católico. O que os racionalistas chamam época pré-católica é
uma falsidade. Se os apóstolos logo depois da Ascensão do Senhor falam e procedem como chefes, é porque julgam
possuir o direito e os poderes inerentes ao seu cargo. E, se eles se crêem investidos desse poderes, é muito provavelmente
porque o receberam de Cristo. Por conseqüência, os textos evangélicos estão de acordo com a historie a não há motivo
algum para os adversários afirmarem que são interpolações. A nossa tese fica, portanto, solidamente provada com os dois
argumentos escriturístico e histórico.
§ 2. - Jesus Cristo fundou uma hierarquia permanente. A sucessão apostólica
1. Estado da questão
Provamos no parágrafo precedente que Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica pelo fato de ter instituído uma
autoridade de ensino e governo na pessoa dos apóstolos. Vejamos agora se a jurisdição conferida aos apóstolos era
transmissível e, em caso afirmativo, em devia recair a sucessão.
Também aqui há duas teses: a racionalista e a católica.
- Na primeira não se põe o problema da transmissão da jurisdição apostólica, porque, segundo ela, a hierarquia não
é instituição de origem divina, mas meramente humana. Assim, o episcopado é o resultado de várias circunstâncias e
necessidades da primitiva Igreja. Veremos mais adiante as circunstâncias a que os racionalistas atribuem a sua origem.
- Segundo a tese católica o episcopado é de direito divino e os bispos, tomados no seu conjunto, são os sucessores
dos apóstolos, dos quais receberam os poderes e os privilégios inerentes ao cargo. Esta tese prova-se com dois
argumentos:
- Um escriturístico; e
- Um histórico no qual refutaremos a tese racionalista.
- Argumento escriturístico. Os textos do Evangelho devem servir-nos para tratar a questão de direito, a
saber, se a autoridade era transmissível. Ora, a resposta deduz-se claramente dos textos já citados e, em particular, das
palavras que nosso Senhor empregou quando constituiu os Apóstolos chefes da sua Igreja. Que outras coisas significam
as suas palavras: “Ide, ensinai todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-os a observar todas as coisas que vos tenho mandado: e estais certos de que eu estou convosco todos os dias
até a consumação dos séculos” (Mat. XXVIII. 20)? Jesus encarregou os Apóstolos da missão de pregar o Evangelho
a todos os povos, de batizar e reger a Igreja até o fim do mundo. Ora, esse encargo não se podia realizar por aqueles a
quem era confiado. Logo, os poderes conferidos aos Apóstolos eram ilimitados quanto ao espaço e quanto ao tempo e,
por conseguinte, na intenção de Cristo, deviam transmitir-se aos sucessores dos Apóstolos.
- Argumento histórico. Não insistimos muito no argumento escriturístico acerca das questões de direito,
embora seja útil contra os protestantes, porque os racionalistas rejeitam todos os textos que se referem a Cristo
ressuscitado, e só consideram a questão de fato. Conforme à sua teoria, “só na história, abstraindo de qualquer
preconceito dogmático, se devem procurar as origens do episcopado”. Exporemos resumidamente o modo como
explicam a sua origem.
- Tese racionalista - Origem do episcopado.
- Segundo a tese racionalista, os membros das primeiras comunidades cristãs eram todos iguais. Todos eles formavam
um povo escolhido, um povo de sacerdotes e profetas.
- Pode-se, no entanto, distinguir-se na sociedade cristã primitiva “duas grandes classes de operários da obra
divina: os homens da palavra - os apóstolos, os profetas, os doutores - e os anciãos, os vigias “episcopoi” ou
bispos e os diáconos”. Os primeiros estavam a serviço da Igreja em geral e só dependiam do Espírito que os inspirava.
Os segundos, pelo contrário, eram os empregados escolhidos por cada comunidade particular.
- “Ao começo, não somente não se encontra instituição alguma formal de episcopado, ou de qualquer outra
hierarquia, mas até os nomes de “episcopoi” e “presbyteri” são equivalentes e designam as mesmas
pessoas”. “A história não menciona exemplo algum de um bispo constituído por um apóstolo e ao qual tenha transmitido,
por essa instituição, quer a totalidade, quer parte dos seus poderes”. Os poderes de ensinar e de governar eram
reservados aos favorecidos pelos carismas. Somente pouco a pouco os bispos ou presbíteros, encarregados da
administração temporal das Igrejas, se apossaram dos poderes de ensinar e governar, primitivamente reservado aos
apóstolos a aos que tinhas os carismas. Conforme a tese racionalista, não existem poderes conferidos por Jesus Cristo.
O cristianismo é uma democracia na qual a assembléia dos cristãos conserva o poder e o delega aos que elege. Para
provar que a autoridade deriva da assembléia dos fiéis e que não se pode exercer senão com consentimento do povo
cristão (sistema chamado multitudinismo ou presbiterianismo defendido por algumas seitas protestantes) os historiadores
racionalistas alegam que antigamente os bispos eram muitas vezes escolhidos pelo povo. Confundem evidentemente a
eleição com a colação da jurisdição e a sagração:
- Quanto à eleição, é verdade que os fiéis concorreram por vezes para a escolha do candidato;
- A eleição, porém, não conferia o poder aos eleitos; porque só depois da eleição dos fiéis ter sido confirmada pelos
bispos de província eclesiástica, recebiam os eleitos a sagração e a jurisdição do metropolitano e, por conseguinte, do
Sumo Pontífice. O povo não conferia a jurisdição nem sagrava os bispos.
Continuam os racionalistas, a autoridade passa primeiro dos fiéis ao conselho dos anciãos, aos seniores ou presbíteros e
deste ao mais influente deles, que se torna o Bispo único. O episcopado é, portanto, segundo Renan e Harnack, uma
instituição humana nascida da mediocridade das massas e da ambição de alguns; foi a mediocridade que fundou a
autoridade.
A tese modernista é sensivelmente a mesma. Para eles, o episcopado não é de origem divina e os bispos não receberam
dos Apóstolos a missão nem os poderes.
- Tese católica
- O fundamento da tese racionalista, segundo a qual, os membros das primeiras comunidades eram iguais, já foi
refutado anteriormente.
- A distinção entre as duas classes de operários que trabalhavam na obra cristã, isto é, entre a chamada hierarquia
discorrente e a hierarquia estável, não se pode pôr em dúvida. Mas de alguma maneira constitui uma prova contra a
origem divina do episcopado, como veremos na discussão do terceiro artigo da tese racionalista. Essa distinção entre as
duas classes referidas já tinha sido mencionada por S. Paulo na Epístola aos Efésios. Na primeira classe inclui os
apóstolos, os profetas e os evangelistas; e na segunda os pastores e os didáscalos (Ef. IV, 11).
- Os apóstolos, os profetas e os evangelistas, isto é, os obreiros da primeira categoria, eram missionários: formavam
a hierarquia discorrente (itinerante).
- O termo apóstolo tem dois sentidos, um lato e outro restrito.
- No sentido lato, que é conforme a etimologia da palavra (grego “apóstolos” enviado, mensageiro)
o apóstolo é um mensageiro qualquer (II Cor. VIII, 23; Fil. II, 25). Eram apóstolos todos os que serviam de
intermediários; os que, por exemplo, eram encarregados por uma igreja de levar uma carta, ou qualquer outra
comunicação a outra igreja.
- No sentido restrito, apóstolo significa os enviados de Cristo. Todavia, mesmo neste caso, não se aplica
exclusivamente aos Doze, pois que não se podem excluir do apostolado S. Paulo e S. Barnabé. Portanto, as duas
expressões “Os Apóstolos” ou “os doze” ou o “colégio dos doze” não são idênticas. Mas o que
é que constitui o apostolado propriamente dito? Ter visto Cristo na sua vida mortal ou ressuscitado e ter recebido dele
a sua missão. São estas as duas razões que S. Paulo aduz para reivindicar o título de apóstolo de Cristo.
- Os profetas eram os que apesar de não serem enviados diretamente por Cristo, falavam em nome de Deus
em virtude duma inspiração especial. Dotados do dom da profecia e da faculdade de perscrutar os corações, tinham o
encargo de exortar, edificar e de converter os infiéis (I Cor. XIV, 3, 24, 25).
- Os evangelistas. Esta palavra, que se encontra somente três vezes no Novo Testamento (At. XXI, 8; Ef.
IV, 11; Tim. IV, 5), designa o encarregado de anunciar o Evangelho.
- Na segunda categoria coloca S. Paulo:
- Os pastores, isto é, os chefes propostos às igrejas locais: bispos ou presbíteros.
- Os didáscalos, ou doutores, eram uma espécie de catequistas, encarregados de instruir os fiéis da localidade
que lhe confiavam.
- A explicação das origens do episcopado por uma série de crises e de transformações é o ponto central da questão.
A tese racionalista nega que ao começo houvesse qualquer instituição de episcopado e para o provar estriba-se em dois
argumentos:
- Os dois termos episcopi e presbyteri são equivalentes; e
- A história não nos refere exemplo algum dum bispo monárquico constituído por um apóstolo, ao qual esse tenha
transmitido os seus poderes no todo ou em parte.
- Resposta
- Parece que as palavras episcopi e presbyteri foram sinônimas no princípio. Assim - para não citar mais de um
exemplo - escreve S. Paulo na Carta a Tito: “Deixei-te em Creta para que regulasses o que falta e estabelecesses
presbíteros em cada cidade. Que o escolhido tenha boa reputação, porque é necessário que o bispo seja irrepreensível,
como administrador da casa de Deus” (Tit. I, 5-7). É evidente que nesta passagem os dois termos presbítero e bispo
se empregam no mesmo sentido.
- Também é certo que nos primeiros tempos não encontramos vestígios de bispo monárquico, tal como
aparecerá mais tarde. Os presbíteros ou “episcopi” que os Apóstolos colocavam à frente das comunidades por
eles fundadas, formavam um conselho, o presbyterium, incumbido do governo da igreja local (At. XV,
2-4; XVI, 4; XXI, 18).
Teriam esses presbíteros os poderes que mais tarde teve o bispo monárquico, ou eram simples sacerdotes? Os
documentos históricos não nos permitem solucionar o problema, o que aliás não tem muita importância, visto não
se tratar disso na questão. Aqui apenas nos interessa saber se os Apóstolos delegaram ou não em vida os poderes
que receberam de Jesus Cristo para assegurar a questão, quando morressem. É o que vamos estudar.
Afirmam os adversários que os poderes eram inerentes aos carismas; ora, como os carismas eram incomunicáveis, os
poderes não se podiam transmitir.
Também nós admitimos que os carismas eram dons ocasionais ou pessoais, porque procediam diretamente do Espírito
e portanto eram incomunicáveis. Mas, é preciso não confundir os carismas com os poderes apostólicos;
porque, embora muitas vezes se encontrem juntos na mesma pessoa, contudo os carismas não eram causa ou princípio
dos poderes; apoiavam ou reforçavam a autoridade, mas não a constituíam. Logo, os Apóstolos receberam de Jesus
Cristo poderes independentes dos carismas e, portanto, transmissíveis.
Consultemos agora os fatos e vejamos se os Apóstolos transmitiram os poderes que possuíam.
Examinemos, em primeiro lugar, as Epístolas de S. Paulo e por elas veremos que S. Paulo, ainda que se reservava a
autoridade suprema nas Igrejas que fundara (I Cor. V, 3; VII 10-12; XIV, 27-40; II Cor. XII, 1-6), delegava às vezes
noutros os seus poderes. Encarregou Timóteo de instituir o clero em Éfeso, e deu-lhe os poderes de impor as mãos e de
estabelecer a disciplina (I Tim. V, 22). Do mesmo modo escreveu a Tito estas palavras: “Deixei-te em Creta para que
regulasses o que falta...” (Tit. I, 5). Portanto, Timóteo e Tito receberam a missão de organizar as Igrejas e os poderes
de impõe as mãos, isto é, os poderes episcopais.
- No século II. Encontramos o germe do episcopado nos tempos apostólicos: procuremo-lo agora no século II. Logo
no começo desse século descobrimos vários testemunhos da existência do episcopado monárquico.
- Testemunho de S. João. Logo no princípio de seu Apocalipse, S. João escreve que vai narrar as suas
revelações acerca das sete Igrejas da Ásia: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia (Apoc.
I, 1-11). São sete cartas destinada ao anjo de cada uma delas. Mas quem é esse anjo? Todos são concordem em
afirmar que não se trata do anjo da guarda destas igrejas, porque, além dos elogios e exortações, as cartas contém
repreensões e ameaças, o que não se pode aplicar aos espíritos celestes. Estes anjos são, portanto, os chefes espirituais
das igrejas, os anjos do Senhor no sentido etimológico da palavra (“aggelos”, mensageiro, enviado), que
possuíam poderes episcopais.
- Testemunho de S. Inácio de Antioquia. O testemunho de S. Inácio data da primeira década do século II.
Neste tempo havia um bispo não somente em Éfeso, Magnésia, Trália, Filadélfia e Esmirna, mas em muitas outras Igrejas.
A hierarquia, por toda a parte, estava na posse tranqüila de seus cargos e não se encontraram na história daquele tempo
os mais ligeiros indícios de crises ou revoluções, pelos quais tinha passado o episcopado antes de conquistar os poderes
que todos lhe reconhecem. “Sem bispo, sacerdotes e diáconos não pode haver Igreja”, escreva S. Inácio à igreja
da Trália (III,1).
- Testemunho fundado nas listas episcopais feitas, uma por Hegesipo (que vem nas suas "Memórias")
e outra por S. Ireneu que pode ver-se no seu "Contra as heresias". Desejando Hegesipo, sob o pontificado de Aniceto
(155-166) conhecer a doutrina das diversas igrejas para ver se era uniforme, empreendeu uma viagem através de
cristandade. Visitou várias cidades e demorou-se particularmente em Corinto e Roma. Nesta última cidade escreveu uma
lista cronológica de todos os bispos até Aniceto...mas, infelizmente, perdeu-se e só conhecemos alguns extratos, que o
historiados Eusébio nos conservou.
A lista de S. Ireneu, feita cerca do ano 180, chegou até nós na íntegra. O bispo de Lião propôs-se combater as heresias,
especialmente o gnosticismo, apoiando-se na tradição e estabelecendo como princípio que a regra de fé deve basear-se
no ensino dos Apóstolos fielmente guardados pela Igreja. Declara que pode “enumerar os bispos constituídos pelos
Apóstolos e estabelecer a sua sucessão até nossos dias”. Mas, “como seria demasiado longo apresentar o
catálogo de todas as Igrejas”, limita-se a “considerar a maior, a mais antiga, a mais conhecida de todos, e que foi
fundada e organizada em Roma pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo”. Em seguida, apresenta a lista
dos Bispos de Roma até Eleutério: os bem-aventurados apóstolos (Pedro e Paulo), Lino, Anencleto, Clemente, Evaristo,
Alexandre, Sixto, Telésforo, Higino, Pio, Aniceto, Sotero e Eleutério"
Alguns contestam a historicidade destas listas, alegando que o nome dos bispos variam de catálogo para catálogo, e que
a lista de S. Ireneu difere da do catálogo “Liberiano” feita por Filócalo, em 354, no tempo do papa Libério. É certo que
exista alguma diferença entre elas, pois o catálogo Liberiano nomeia Lino depois de Clemente e desdobra Anencleto em
Cleto e Anacleto. Mas as variantes são de pouca importância e provavelmente devidas aos copistas.
- Conclusão. De tudo o que precede, podemos tirar as seguintes conclusões:
- Tanto dos textos evangélicos como dos documentos da Igreja primitiva, deduz-se claramente que os poderes
apostólicos eram transmissíveis e foram de fato transmitidos.
- Os apóstolos comunicaram os seus poderes a delegados, elevando alguns discípulos à plenitude da Ordem e
confiando-lhes a missão de governar as Igrejas por eles mesmos fundadas e de fundar outras novas.
- Portanto, é falso afirmar que o episcopado nasceu da mediocridade de uns e da ambição de outros; porque não foi
“a mediocridade que estabeleceu a autoridade”, mas o Evangelho. Os Bispos foram instituídos para receber a
missão e os poderes que Jesus tinha conferido aos Apóstolos e, por isso, tomados coletivamente, são os
sucessores do colégio apostólico.
§ 3º - Jesus Cristo fundou uma Igreja monárquica. Primado de Pedro e de seus sucessores.
Demonstramos nos parágrafos precedentes que a Igreja fundada por Jesus Cristo não é uma democracia baseada na
igualdade dos seus membros, mas uma sociedade hierárquica onde os dirigentes recebem os poderes diretamente de
Deus e não do povo cristão.
Outra questão se apresenta neste momento. A autoridade soberana que pertence à Igreja docente reside em todos os
bispos coletivamente, ou num só dos membros do episcopado? Por outros termos, a Igreja é uma monarquia ou uma
oligarquia? Terá por ventura Jesus Cristo dado a sua Igreja um chefe supremo? Os protestantes e os Gregos cismáticos
sustentam a negativa. Todavia, esses últimos com alguns Anglicanos concedem a S. Pedro a primazia de honra mas não
de jurisdição. Essas diferem essencialmente entre si. A segunda supõe uma autoridade efetiva; a primeira concede apenas
direitos honoríficos. Os que possuem a primazia têm o direito de governar seus súditos como verdadeiros vassalos; os
que possuem a primeira têm somente o direito de precedência.
Nós os católicos defendemos que Jesus conferiu o primado da jurisdição a S. Pedro e, na sua pessoa, a seus sucessores.
Provaremos separadamente as duas partes desta tese com os dois argumentos: um, escriturístico, e outro, histórico.
- Primeira parte: O Primado de S. Pedro
Jesus Cristo fundou uma Igreja monárquica, conferindo a S. Pedro o Primado de jurisdição sobre toda a Igreja.
- Argumento escriturístico. O Primado de S. Pedro deduz-se das palavras da promessa e das palavras da
colação do primado.
- Palavras da promessa. As palavras com que Jesus Cristo prometeu a S. Pedro o primado de jurisdição foram
conferidas em Cesaréia de Filipo. Jesus interrogara os discípulos para que dissessem que opiniões corriam a seu respeito.
S. Pedro em seu próprio nome, por inspiração espontânea, confessou que “Jesus era o Cristo, o Filho de Deus vivo”.
Foi então que o Salvador lhe dirigiu as célebres palavras: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não
foram a carne nem o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e
sobre esta pedra eu edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do
reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra será desligado nos
céus” (Mat. XVI, 17-19).
Ponhamos em relevo três pontos deste texto, que provam a nossa tese:
- Jesus muda o nome de Simão em Pedro. Ora, segundo o uso bíblico, a mudança de nome é sinal de um benefício.
Quando Deus quis estabelecer uma aliança com Abraão e constituí-lo pai dos crentes mudou-lhe o nome de Abram em
Abraão (Gen. XVII, 4s).
- No nosso caso, o novo nome dado por Jesus a Simão, simboliza a missão que Jesus quer lhe confiar. Para o futuro
Simão chamar-se-á Pedro, porque há de ser a pedra, ou a rocha sobre a qual Jesus quer fundar a sua Igreja. O
trocadilho, que tem toda a sua força na língua aramaica, na qual o nome “Kepha” dado por Jesus á Pedro é
masculino e significa rocha, pedra, desaparece em grego e em latim, porque nessas línguas Pedro se diz Petros ou
Petrus, e rocha, petra.
Pedro será, com respeito à sociedade cristã, à Igreja de Cristo, o que é a rocha com respeito ao edifício: fundamento
sólido que assegurará a estabilidade de todo o edifício, rochedo inabalável, que desafiará os séculos, e sobre o qual se
virão quebrar as portas do inferno, ou por outras palavras, os assaltos e o poder do demônio.
- Finalmente as chaves do reino dos céus foram confiadas a S. Pedro. A entrega das chaves é um privilégio insigne e
especial que confere um poder absoluto. Compara-se o reino dos céus a uma casa. Ora, só poderá entrar em casa quem
tem as chaves em seu poder, e aqueles a quem ele quiser abrir a porta. Pedro é constituído único intendente da casa cristã,
único introdutor do reino de Deus. É inútil insistir mais. A promessa de Cristo é tão clara que não pode haver dúvida
acerca da sua significação. Só a Pedro se muda o nome, só ele é chamado fundamento da futura Igreja, só a ele serão
entregues as chaves; se as palavras têm algum sentido, só podem significar o primado de Pedro.
Objetam os adversários, segundo sempre a mesma tática, que a passagem da questão não é autêntica e que foi
interpolada quando a Igreja tinha já completado a sua evolução e adquirido a forma católica. A prova está em que só
Mateus refere as palavras de Nosso Senhor.
Resposta. A objeção fundada no silêncio de S. Marcos e de S. Lucas não tem valor algum. A dificuldade teria
alguma força se os adversários conseguissem provar que a narração dessa passagem era exigida pelo assunto que
tratavam. Ora, não conseguem fazer essa demonstração; logo, o silêncio dos dois sinóticos deve atribuir-se a motivos
literários, que não admitiam a entrada do texto nas suas narrativas.
- Palavras da colação. Duas passagens do Evangelho nos atestam que Jesus conferiu efetivamente a Pedro
o poder supremo que lhe tinha prometido.
- Missão, confiada a Pedro, de confirmar os seus irmãos. Algum tempo antes da Paixão, Jesus anunciou aos apóstolos
a sua falta próxima. Quando predisse a de Pedro declarou que tinha orado especialmente por ele: “Simão, Simão, eis
que Satanás vos pediu com insistência para vos joeirar como trigo; mas eu roguei por ti, para que não desfaleça a tua fé;
e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Luc. XXII, 31s). Quando os Apóstolos, depois de sucumbir à
tentação, se erguerem de sua queda, purificados das fraquezas do passado pela prova, como o crivo que aparta a palha
do grão, é Simão que tem a missão de os confirmar. Essa missão supõe evidentemente o primado de jurisdição.
- S. Pedro é nomeado o pastor das ovelhas de Cristo. A cena passa-se após a Ressurreição. Eis como se refere S. João
(João XXI, 15-17): Três vezes perguntou Jesus a Pedro se o amava e três vezes Pedro fez protestos de amor e dedicação
inabalável. Então o Salvador, sabendo que estava na véspera de deixar os seus discípulos, confia a Pedro a guarda do seu
rebanho, isto é, confia-lhe e cuidado de toda a cristandade, dos cordeiros e das ovelhas. “Apascenta os meus
cordeiros”, repete duas vezes; e à terceira: “apascenta as minhas ovelhas”.
Ora, conforme o uso corrente nas línguas orientais, a palavra “apascentar” significa governar. Apascentar
os cordeiros e as ovelhas é, portanto, governar com autoridade soberana a Igreja de Cristo; é ser o chefe
supremo; é ter o primado.
- Argumento histórico. Se encararmos a questão somente sob o aspecto histórico, temos duas teses opostas
ntre si: a racionalista e a católica.
- Tese racionalista. Segundo os racionalistas, o texto “tu és Pedro e sobre esta Pedra edificarei a minha
Igreja” “só teve o sentido e o alcance dogmático, que os teólogos papistas atribuíram no século III, quando os Bispos de
Roma dele se tiveram necessidade de fundar as suas pretenções então nascentes” (Sabatier, op. cit., p. 209).
O Primado de S. Pedro nunca foi reconhecido pelos outros apóstolos, mormente por S. Paulo, que nem sempre nomeia
Pedro em primeiro lugar (I Cor. I, 12; III, 22; Gal. II, 9), nem receia “resistir-lhe abertamente” (Gal. II, 11).
- Tese católica. Nos Atos dos Apóstolos encontra o historiador católico numerosos testemunhos para provar
que S. Pedro exerceu o primado desde os primeiros dias da Igreja nascente.
- Depois da Ascensão, S. Pedro propõe a eleição de um discípulo para ocupar o lugar de Judas e completar o colégio
dos Doze (At. I, 15-22).
- É ele o primeiro que prega o Evangelho aos judeus no dia de Pentecostes (At. II, 14; III, 16).
- É S. Pedro que, inspirado por Deus recebe na Igreja os primeiros gentios (At. X, 1).
- Visita as igrejas (At. IX, 32).
- No Concílio de Jerusalém põe termo à longa discussão que ali se trava, decidindo que não se deve impor a circuncisão
aos pagãos convertidos, e ninguém ousou opor-se à sua decisão (At. XV, 7-12). Se S. Tiago fala, depois de S. Pedro
ter emitido o seu parecer, não foi para discutir a sua opinião, mas unicamente porque, sendo Bispo de Igreja de
Jerusalém, julgou que se deviam impor aos gentios algumas prescrições da lei mosaica, cuja infração podia escandalizar
os cristãos de origem judaica, que constituíam a maior parte do seu rebanho. Pedia S. Tiago que os gentios se
abstivessem:
- Dos alimentos oferecidos aos ídolos;
- Da impureza, que os pagãos não consideravam como falta grave;
- Das carnes sufocadas;
- Do sangue, cujo uso estava interdito aos judeus (At. XVII, 20).
No parecer de S. Tiago essas prescrições evitariam o escândalo dos fracos e serviriam para aplanar dificuldades entre os
cristãos de diversas proveniências.
Objetam alguns que S. Paulo nunca reconheceu o primado de S. Pedro. Como se explica neste caso que, três
anos depois da conversão, foi a Jerusalém expressamente para o visitar? (Gal. I, 18s). Porque não foi antes a S. Tiago
(que era o Bispo de Jerusalém) a aos outros? Não será esta uma prova evidente de que o reconhecia como chefe dos
Apóstolos?
Porque é que S. Paulo, replicam, não nomeiam Pedro sempre em primeiro lugar? A razão é simples. S. Paulo nunca faz
menção de todo o colégio apostólico, e apenas fala incidentalmente de alguns. As vezes, como sucede na sua Epístola aos
Coríntios (I Cor. I, 12), nomeia-os em gradação ascendente, pondo o nome de Cristo depois do nome de S. Pedro.
Mas, dizem os racionalistas, não devemos esquecer-nos do conflito de Antioquia, no qual S. Paulo resistiu aberta e
publicamente a S. Pedro. Para que os adversários não julguem que procuramos fugir das dificuldades, referiremos aqui o
caso com as próprias palavras de Paulo (Gal. II, 11-14): “Quando Cefas veio a Antioquia, eu resisti-lhe abertamente,
porque era repreensível. Com efeito, antes de chegarem os que tinham estado com Tiago, ele comia com os gentios: mas
depois que eles chegaram, subtraía-se e separava-se dos gentios, temendo ofender os que eram circuncidados. E os
outros judeus consentiram na sua simulação. Mas quando eu vi que eles não andavam retamente conforme a verdade do
Evangelho, disse a Cefas diante de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios e não como os judeus, porque
obrigas tu os gentios a viver como judeus?”
Como se vê nessa passagem, o conflito originou-se da famosa questão, levantada pelos judaizantes, a saber, e a lei
judaica era obrigatória e se era preciso passar pela circuncisão para entrar na Igreja cristã. Ora, os dois apóstolos -
fixemos bem este ponto - estiveram sempre de acordo, defendendo ambos a negativa; portanto, nunca houve conflito
entre eles no terreno dogmático. O litígio consistia em que S. Pedro, para não provocar as recriminações dos
judaizantes, absteve-se de comer com os gentios que se tinham convertido sem passar pelo judaísmo.
Esta maneira de proceder podia ser diversamente interpretada.
- Podia ser uma simples medida de prudência justificada pelo fim que se queria obter. Sendo um, apóstolo dos
circuncidados e outro dos incircuncisos, não é para admirar que os dois apóstolos tenham adotado posturas diferentes
nesta questão disciplinar. Não se conta porventura nos Atos dos Apóstolos que o próprio S. Paulo, numa circunstância
idêntica, procedeu do mesmo modo, circuncidando Timóteo por causa dos judeus que havia naquelas regiões (Lístria
e Icônio), apesar das suas convicções serem diversas? (At. XVI, 3).
- Também se podia tomar o procedimento de S. Pedro por covardia ou hipocrisia: deste modo o julgou S. Paulo.
Pensou que para evitar as funestas conseqüências do procedimento de S. Pedro, devia repreendê-lo. É um caso de
correção fraterna dada por um inferior, e na qual este parece ter faltado na moderação e deferência devidas a um superior
hierárquico, deixando levar-se por um zelo indiscreto.
Se S. Paulo, objetamos nós, dava tanta importância ao procedimento de S. Pedro, não será porque a sua influência nas
Igrejas era maior e mais incontestável? Logo, podemos concluir que o conflito de Antioquia, longe de ser um argumento
contra o primado da Pedro, é testemunho em seu favor.
- Segunda parte: O primado dos sucessores de Pedro
O primado conferido por Jesus a S. Pedro será acaso um dom pessoal, uma espécie de carisma, ou um poder transmissível
a seus sucessores? Neste segundo caso, quais são os sucessores de S. Pedro? Responderemos a essas perguntas
mostrando:
- Que o primado de Pedro é um poder permanente, e;
- Que os sucessores de S. Pedro são os Bispos de Roma.
Tese I - O primado de S. Pedro é transmissível
Esta proposição prova-se com dois argumentos: um escriturístico e outro histórico.
- Argumento escriturístico. Do texto de S. Mateus (XVI, 17-19) já citado para provar o primado deduz-se
que Pedro foi escolhido para fundamento da Igreja e que recebeu as chaves do reino dos céus. Ora, como o fundamento
deve durar enquanto durar o edifício, e Jesus prometeu que havia de estar com a Igreja até o fim do mundo
(Mat. XXVIII, 20), segue-se que o primado, princípio e fundamento do edifício, deve durar para sempre e, por
conseguinte, deve poder transmitir-se aos seus sucessores. Além disso, a autoridade do primado há de ser tanto mais
necessária quanto mais se desenvolver a Igreja e mais estender os seus ramos ao longe: quanto maior é o exercito tanto
mais necessidade tem de um chefe supremo.
- Argumento histórico. Se o primado foi transmitido aos sucessores de Pedro, a história deve dar nisso
testemunho. Esta questão confunde-se com a tese seguinte, no qual veremos quem são os sucessores de S. Pedro.
Tese II - Os sucessores de S. Pedro no primado são os Bispos de Roma
Para o provarmos temos que demonstrar:
- Que Pedro esteve em Roma e que foi o primeiro Bispo desta Igreja;
- Que a primazia dos Bispos de Roma, seus sucessores, foi sempre reconhecida por toda a Igreja. É uma questão
histórica.
- A permanência e a morte de S. Pedro em Roma. Estado da questão.
- Trata-se de investigar se S. Pedro esteve na capital do Império romano e se aí fundou uma comunidade cristã. Não é
necessário provar que permaneceu durante muito tempo em Roma, nem que a sua permanência foi contínua. Alguns
católicos, como Barónio, sustentaram que o pontificado de S. Pedro em Roma começou no ano 42 e durou 25 anos.
Parece-nos exagerado; contudo esta opinião funda-se em vários testemunhos de valor:
- No catálogo liberiano, que contém a cronologia dos papas como era recebida na Igreja romana;
- No testemunho de Lactâncio; e
- No do historiador Eusébio.
Destes testemunhos podemos deduzir que era tradição geral e constante no século IV que S. Pedro veio a Roma e
governou a Igreja durante 25 anos. E como é quase certo que o catálogo liberiano deriva do catálogo de Hipólito e que
Eusébio se serviu dos catálogos anteriores e especialmente da lista de S. Ireneu, segue-se que os testemunhos precedentes
representem uma tradição muito anterior a sua época.
Notemos que os defensores da tese dos 25 anos de episcopado de S. Pedro em Roma não sustentam que ele nunca
tivesse se ausentado daquela cidade. Com efeito, os Atos dizem-nos que Pedro esteve em Jerusalém pelas festas da
Páscoa no ano 44 e presidiu ao Concílio na mesma cidade no ano 50. O governo de uma igreja não requer a permanência
contínua do seu chefe, sobretudo nos tempos primitivos da Igreja.
A forma da Igreja primitiva não era semelhante à atual, porque os apóstolos eram missionários, que se lembravam das
palavras do seu Mestre: “Ide, ensinai todas as gentes”. Diante dum campo tão vasto, seria para estranhar
encontrá-los presos a uma residência fixa. Estavam ora num lugar, ora noutro, conforme a sementeira prometia maior
messe.
- Os críticos racionalistas e protestantes negaram a permanência e a morte de S. Pedro em Roma, porque na negação
destes dois fatos julgavam encontrar um argumento de valor contra o primado do Papa. Mas os seus argumentos eram de
tão pouca força que o próprio Renan, em apêndice ao seu livro "Antéchrist" (1873), deu “como provável a
permanência de S. Pedro na capital do Império”.
Os críticos atuais não têm dificuldade de admitir a tese católica. Citemos algumas das linhas de Harnack ("Cronologia"):
“O martírio de S. Pedro em Roma foi antigamente combatido pelos preconceitos tendenciosos dos protestantes...
Mas foi um erro que todo investigador, que não queira ser cego, pode verificar”. “Hoje em dia", diz o mesmo crítico
num discurso (1907) pronunciado na Universidade de Berlim, "sabemos que esta vinda (de S. Pedro a Roma) é um
fato incontestável e que o começo da primazia romana remonta ao século II”.
Como a tese católica, que afirma que S. Pedro veio a Roma onde fundou uma Igreja e sofreu o martírio, não é contestada
pelos nossos adversários (embora haja ainda muitas pessoas teimosas), bastará mencionar rapidamente os principais
testemunhos em que se baseia.
Apresentamo-los por ordem regressiva e de século em século:
- No começo do século III, temos o testemunho do sacerdote romano Caio e de Tertuliano. Caio dizia, escrevendo
contra Proclo: “Posso mostrar-te o túmulo dos Apóstolos. Ou venhas ao Vaticano os passes pela via ostiense,
poderás ver os sepulcros dos fundadores da nossa Igreja”. Esse testemunho, que é do ano 200 mais ou menos,
prova que neste tempo os túmulos do Vaticano e da via de Óstia guardavam as relíquias de S. Pedro e de S. Paulo,
fundadores da Igreja de Roma e martirizados no tempo de Nero.
Tertuliano nesta mesma época, disputando contra os gnósticos, menciona o martírio que, sob o reinado de Nero,
S. Pedro e S. Paulo sofreram em Roma, o primeiro numa cruz e o segundo à espada do algoz.
- Nos fins do século II. S. Ireneu escrevia nas Gálias: “Foram os Apóstolos Pedro e Paulo que evangelizaram a
Igreja Romana... por isso, é a mais antiga de todas e a mais conhecida, por conservar a tradição dos apóstolos; por
esse motivo, as demais igrejas devem voltar-se para ela e reconhecer-lhe a superioridade”. Dionísio de Corinto
escrevia em 170 aos Romanos: “Vindo ambos a Corinto, os dois apóstolos Pedro e Paulo nos ensinaram a doutrina
evangélica; partindo depois juntos para a Itália, transmitiram-nos os mesmos ensinamentos, pois padeceram o martírio ao
mesmo tempo”.
- Entre os padres apostólicos citemos os testemunhos de S. Inácio e do papa S. Clemente. S. Inácio fora condenado
às feras e enviado a Roma para ali sofrer o último suplício. Conhecendo os esforços da Igreja de Roma para o salvar,
escreveu-lhe que não se opusesse à sua morte, a adjurou-a nestes termos: “Não vo-lo ordeno como Pedro e Paulo;
eles eram apóstolos e eu sou apenas um condenado”. “Estas palavras", diz Mons. Duchesne, "não dizem
expressamente que S. Pedro veio a Roma. Mas supondo que tivesse vindo, S. Inácio não teria falado de outra forma; e
no caso contrário a frase não teria sentido”.
S. Clemente, na Carta aos Coríntios, escrita entre os anos 95 e 98, põe em relevo os padecimentos dos dois apóstolos
Pedro e Paulo, dizendo que “são entre nós o mais belo exemplo”. S. Clemente, que é romano e envia sua carta
na qualidade de Bispo de Roma, insiste na circunstância, que os atos de heroísmo por ele descritos foram vistos com os
seus próprios olhos e que o martírio de S. Pedro e S. Paulo foram um grande exemplo “entre nós”, isto é, em Roma.
- Dos tempos apostólicos temos o testemunho do próprio S. Pedro, que escrevendo aos fiéis da Ásia, data
de Babilônia a sua primeira epístola (I Pedro, V, 13). Ora, por “Babilônia", diz Renan, "S. Pedro quer sem
dúvida significar a cidade de Roma. Por esse nome era designada a capital do Império entre as cristandades primitivas”.
Objetam os protestantes contra a tese católica que S. Lucas nos Atos dos Apóstolos, S. Paulo na sua Epístola
aos Romanos e Flávio Josefo, que narra a perseguição de Nero, não fazem menção de S. Pedro.
Resposta. O argumento fundado no silêncio não tem valor algum, a não ser que se prova que o fato passado
em silêncio devia ser tratado ou mencionado pelo historiador. Ora:
- Pelo que diz respeito a S. Lucas, a objeção não tem fundamento algum, porque os Atos dos Apóstolos só descrevem
os começos da Igreja Cristã nos doze primeiros capítulos; e do capítulo X em diante só falam dos Atos de Paulo. Além
disso, os Atos não são de modo algum completos, pois não falam também do conflito de Antioquia.
- Não nos deve causar admiração que S. Paulo não mencione S. Pedro na Epístola aos Romanos, pois em nenhuma
das outras epístolas costuma saudar os bispos da cristandade ou igreja a que se dirige. Quando fala aos Efésios também
não fala de Timóteo que era o seu bispo.
- Josefo declara expressamente que passava em silêncio a maior parte dos crimes de Nero. Omite a crucificação de
S. Pedro, mas também não fala do incêndio de Roma nem da morte de Sêneca.
Conclusão. O fato da vinda de S. Pedro a Roma e do martírio nesta cidade não tem contra si objeção alguma de
peso; e em seu favor temos números e bem fundados testemunhos, que de geração em geração nos levam aos tempos
apostólicos.
Poderíamos também acrescentar que os fatos são confirmados pelos monumentos que nos atestam a presença do Príncipe
dos Apóstolos em Roma. Tais são as duas cadeiras de S. Pedro, uma das quais se conserva no Vaticano, as pinturas e
as inscrições das catacumbas, que datam do século II, onde o seu nome é mencionado, e sobretudo as escavações feitas
debaixo da Basílica de S. Pedro. Dada a configuração do terreno e outras dificuldades técnicas era inexplicável que os
cristãos levantassem ali a basílica primitiva, se não quisessem coloca-la precisamente no local do martírio de S. Pedro.
Mas não é preciso insistir, porque a tese católica não tem atualmente contra si crítico algum de valor.
- Os Bispos de Roma tiveram sempre a primazia. - É uma questão de direito. Se S. Pedro é o
primeiro Bispo de Roma, o primado de Pedro devia transmitir-se aos seus sucessores na sua Sé. Investiguemos a questão
de fato e vejamos o eu diz a história.
Essa tese é da maior importância, porque, se os documentos históricos demonstrassem eu no princípio o primado dos
Bispos de Roma não foi reconhecido, a questão de direito ficaria profundamente abalada. Não é, pois, para estranhar, que
os racionalistas, protestantes e modernistas se tenham empenhado em provar historicamente que o primado dos Bispos
de Roma não existia nos primeiros tempos.
- Tese racionalista. A tese racionalista expõe-se em poucas palavras. Segundo a sua teoria, ao começo todos
os bispos eram iguais em autoridade e não havia distinção entre eles. Pouco a pouco foram-se arrogando um poder maior
ou menor conforme a importância da cidade em que tinham a sede. Ora, como Roma era a capital do Império romano, os
seus Bispos foram considerados como chefes da Igreja universal.
A esta razão de maior peso juntam-se outras circunstâncias favoráveis, tais como a ambição dos Bispos de Roma, a sua
prudência no julgamento das causas submetidas ao seu arbítrio e os serviços por eles prestados na queda do Império.
O primado do Bispo de Roma começa somente nos fins do século II, quando o papa Vitor, para pôr fim à controvérsia da
celebração da festa pascal, “publicou em 194 um edito imperioso que expulsava da comunhão católica e declarava
heréticas todas as Igrejas da Ásia e do outras partes, que não seguissem na Páscoa o costume romano” (Sabatier op.
cit., p. 193.).
- A tese católica. Os historiadores católicos defendem que o primado do Bispo de Roma foi sempre
reconhecido em toda a Igreja. Nos princípios do século IV a primazia é um fato incontestado.
Todos reconhecem que nesta época os Bispos de Roma falam e procedem com plena consciência em sue primado. O papa
Silvestre envia os seus legados para presidirem o concílio de Nicéia (325) e Júlio I declara que as causas dos Bispos devem
ser julgadas em Roma. O papa Libério, a quem o imperador Constâncio pediu que condenassem Atanásio - prova que lhe
reconhecia o direito - recusa-se a fazê-lo.
Do mesmo modo, os Padres são unânimes em admitir o primado do Bispo de Roma. S. Optato de Mileto, argumentando
contra os donatistas, segundo os quais a Igreja era constituída só pelos justos e a santidade era o distintivo essencial da
Igreja, responde que a unidade é também nota essencial e que é absolutamente indispensável permanecer em comunhão
com a Cátedra de Pedro. S. Ambrósio considera a Igreja de Roma como o centro e cabeça de todo o universo católico.
Os bispos orientais S. Atanásio, S. Gregório de Nazianzo e S. João Crisóstomo falam do bispo de Roma como do chefe
da Igreja universal.
Como o primado de Pedro é universalmente reconhecido no século IV, podemos limitar a nossa investigação aos séculos
precedentes. Ora, nos três primeiros séculos, a existência do primado romano é testemunhada pelos escritos dos Padres,
pelos concílios e pelo costume que havia de apelar para o Bispo de Roma a fim de dirimir as questões.
- Examinemos, em primeiro lugar, os testemunhos dos Padres da Igreja.
- No século III, Orígenes escrevia ao papa Fabião, a dar conta da sua fé. Tertuliano, antes de cair na heresia, admitia
o primado de S. Pedro. Depois de se fazer montanista, mete-o a ridículo, prova de que lhe reconhecia a existência.
- No fim do século II S. Ireneu estabelece como critério das tradições apostólicas a conformidade da doutrina com a
Igreja romana, que deve servir de regra de fé, por causa do primado que herdou de S. Pedro. S. Policarpo, discípulo
de S. João, e Abécio visitam o Bispo de Roma e consultam-no acerca de assuntos da fé a da disciplina. Os próprios
hereges Marcião e os montanista querem que sua doutrina seja aprovada pela Sé Apostólica, No princípio do século II,
S. Inácio escreve aos romanos que a Igreja de Roma preside as demais.
- No século I. Em 96, o Bispo de Roma, Clemente, escrevendo aos Coríntios, para chamar à ordem os que injustamente
tinham demitido os presbíteros, declaram-lhes que serão réus de falta grave se não lhe obedecerem. O procedimento de
Clemente de Roma tem maior importância se considerarmos que nesta época ainda vivia o Apóstolo João que não deixaria
de intervir se o Bispo de Roma estivesse no mesmo plano dos outros bispos.
- O primado dos Bispos de Roma foi reconhecido pelos concílios. Não podemos aduzir testemunhos anteriores ao século
IV, visto que o primeiro concílio só se realizou em 325, em Nicéia.
- No concílio de Éfeso (431) S. Cirilo de Alexandria, que era o primeiro entre os patriarcas do Oriente, pediu ao
Bispo de Roma que sentenciasse e definisse contra a heresia nestoriana.
- Os Padres do concílio de Calcedônia (451), quase todos orientais, dirigiram uma carta ao papa S. Leão a solicitar a
confirmação de seus decretos. Este respondeu-lhes com uma carta célebre na qual condenava os erros de Eutiques, e, ao
mesmo, enviou legados para que em seu nome presidissem ao concílio. O concílio encerrou-se com essa fórmula: “Assim
falou o concílio pela boca de Leão”.
- Os concílios de Constantinopla, - o terceiro celebrado em 680, o oitavo em 869, - o concílio de Florença em 1439,
composto de Bispos gregos e latinos, proclamaram sucessivamente o primado do sucessor de Pedro e afirmaram que Jesus
Cristo lhe deu, na pessoa de S. Pedro, “plano poder de apascentar, dirigir e governar toda a sua Igreja”.
- O primado dos Bispos de Roma é também testemunhado pelo fato de intervirem em diversas Igrejas para dirimir as
questões. Não falando de Clemente de Roma, que pelos fins do século I escreveu à Igreja de Corinto para a trazer ao bom
caminho, vemos mais tarde os Bispos orientais, entre outros S. Atanásio e S. João Crisóstomo, apelar para o Bispo de
Roma na defesa dos seus direitos.
Objetam os protestantes:
- Os que tinham o nome de bispos, na realidade eram apenas presidentes do presbyterium;
- Em todo caso, a sua autoridade não era universalmente reconhecida, pois S. Cipriano e os bispos da África resistiram
ao decreto do papa S. Estevão que proibia a reiteração do batismo conferido pelos herejes.
Resposta.
- Para provar que os Bispos eram somente simples presidentes do presbyterium, alegam que a primeira Carta de
Clemente de Roma, as cartas de S. Inácio aos Romanos e o Pastor de Hermas não falam dum bispo monárquico de
Roma. Ora, já dissemos que o silêncio dum escritor acerca de um fato, não prova necessariamente contra a sua existência.
Em 170, Dionísio de Corinto envia uma resposta à Igreja de Roma e não ao seu bispo Sotero, e contudo Harnack, que faz
a objeção, admite que Sotero era Bispo monárquico. Pouco importa, portanto, que a primeira carta de S. Clemente de
Roma aos Coríntios não tenha a sua assinatura e seja enviada em nome da Igreja de Roma: não há dúvida que o seu autor
seja um personagem único, o papa S. Clemente. Ainda que a carta de S. Inácio aos Romanos (107) e o Pastor de Hermas
não mencionem o Bispo de Roma, não se deve daí concluir que não existia, pois também não falam dos presbíteros e dos
diáconos de Roma, e a sua existência não é impugnada.
- É certo que S. Cipriano, julgando que a reiteração do batismo era sobretudo uma questão disciplinar, resistiu ao
decreto do papa Estevão. Mas a resistência de um homem, ainda que muito santo e de muita boa-fé, à autoridade
superior, não destrói nem enfraquece essa autoridade. Grandes bispos como Bossuet, aderiram a proposições
condenadas, reconhecendo contudo o primado do Soberano Pontífice.
Conclusão. A primazia dos Bispos de Roma deduz-se de dois fatos:
- De S. Pedro ter sido Bispo de Roma; e
- De o primado ter sido sempre universalmente reconhecido pela Igreja.
Portanto, não é verdade que a autoridade
suprema dos papas deva a sua origem à ambição dos Bispos de Roma e à abdicação de outros. Se, como pretendem os
adversários, os bispos tivessem sido iguais ao princípio por direito divino, ter-se-ia dado num momento da história uma
transformação completa na fé e na disciplina de toda a Igreja.
Ora, tal acontecimento não se poderia dar sem se terem provocado dissenções e reclamações inúmeras da parte de
outros bispos, lesados nos seus privilégios. Como a história não apresenta sinal algum dessa agitação, e só houve
discussões sobre pontos secundários, como a celebração da festa da Páscoa e a questão da reiteração do batismo,
segue-se que o primado do Bispo de Roma nunca foi impugnado e que a Igreja universal sempre lhe reconheceu não só
o primado de honra, mas também o de jurisdição.
§ 4º - Jesus deu a sua Igreja o privilégio da infalibilidade
Vimos que Jesus Cristo fundou uma Igreja hierárquica, conferindo aos apóstolos e aos bispos seus sucessores, os
poderes de ensinar, de santificar e de governar. Demonstraremos neste parágrafo que Jesus ligou ao poder de ensinar o
privilégio da infalibilidade. Trataremos:
- Do conceito de infalibilidade;
- Das provas da sua existência;
- Daqueles a quem foi concedido o privilégio.
- Conceito de infalibilidade. Que deve entender-se por infalibilidade? A infalibilidade concedida por Jesus
Cristo à sua Igreja é a preservação de todo erro doutrinal, garantida pela assistência especial do Espírito Santo. Não é
simples inerrância de fato, mas de direito. É impossibilidade tal, que toda a doutrina, proposta por esse magistério infalível,
deve ser crida como verdadeira, pois como tal é proposta.
Portanto, não se deve confundir a infalibilidade:
- Com a inspiração, que consiste no impulso divino, que leva os escritores sagrados a escreverem tudo o que Deus
quer, e só o que Deus quer;
- Nem com a revelação, que supõe a manifestação duma verdade antes ignorada.
O privilégio da infalibilidade não faz com que a Igreja descubra verdades novas; garante-lhe somente que, devido à
assistência divina, não pode errar nem, por conseguinte, induzir no erro, no que respeita a questões de fé ou moral.
Falso conceito de infalibilidade. O conceito modernista de infalibilidade funda-se na idéia falsa que os
modernistas têm da revelação e, portanto, é também falso e deve rejeitar-se. Segundo o sistema modernista, a revelação
opera-se na alma de cada indivíduo, pois “consiste na consciência que o homem forma das suas relações com Deus”.
Por conseqüência, a infalibilidade da Igreja docente consistiria em interpretar o sentir coletivo dos fiéis e “sancionar
as opiniões comuns da Igreja discente”. Este estranho conceito de infalibilidade foi condenado no decreto Lamentabili.
- Existência da infalibilidade.
- Adversários. A existência da infalibilidade da Igreja foi negada:
- Pelos racionalistas e protestantes liberais. É lógico, uma vez que admitam que Jesus Cristo tenha pensado em fundar
uma Igreja;
- Pelos protestantes ortodoxos; porque, admitindo eles que todos os membros da Igreja são iguais, é natural que a
interpretação da doutrina católica esteja sujeita à razão individual (teoria do livre exame).
- Provas. A infalibilidade da Igreja funda-se em dois argumentos:
- um a priori, ou de razão; e
- outro a posteriori ou histórico.
- Argumento de razão. Antes de expormos este argumento, é conveniente o lugar que ocupa na nossa
demonstração, para que não haja equívocos acerca do fim que prosseguimos. Afirmamos - depois diremos porquê - que
se Jesus Cristo quis conservar as verdades reveladas na sua integridade, teve de confia-las a uma autoridade viva e
infalível e não somente depositá-las, como letra morta, num livro, porto que inspirado.
A isso objetam os protestantes que apoiamos a nossa tese num argumento a priori e que todas as nossas provas
se reduzem a afirmar que uma coisa é, porque assim deve ser. Ora, “nas questões de fato, prosseguem eles, a prova
de fato, se não é a única legítima, ao menos é a única decisiva. Se da conveniência, da utilidade e da necessidade
pressuposta duma concessão divina, se pudesse concluir a sua realidade, aonde chegaríamos nós?" (Jalaguier, "De
l´Église").
É certo que da conveniência de uma coisa nem sempre se pode concluir a sua existência. Poderíamos, por exemplo,
perguntar-nos porque motivo foram os homens abandonados por Deus nos seus erros durante tantos séculos; porque
tardou tanto a Redenção; porque não lhe deu Jesus Cristo tanto esplendor que impelisse os homens a aceita-la. Portanto,
a questão é principalmente histórica e sob esse aspecto será tratada.
Antes, porém, temos o direito de perguntar se a tese católica, que defenda a instituição de um magistério vivo e infalível
para nos ensinar as verdades contidas na Escritura e na Tradição, não está mais bem fundada que a teoria protestante,
que admite a infalibilidade da Escritura como regra única de fé. Deve-se dizer que regra de fé é o meio prático
de conhecer a doutrina de Jesus Cristo.
Demonstraremos, portanto - sem prescindir do argumento histórico - que a regra de fé dos protestantes é insuficiente
para o conhecimento e conservação das verdades reveladas, e que a regra de fé Igreja católica possui todas as condições
requeridas.
- A regra de fé protestante é insuficiente. Não é necessária, nem foi instituída uma autoridade viva, dizem os
protestantes, para conhecermos as verdades ensinadas por Jesus Cristo. A única regra de fé é a Sagrada Escritura. Por
conseguinte, cada fiel pode ler e interpretar a Escritura conforme as luzes da sua consciência e haurir os dogmas e
preceitos conducentes à sua edificação.
Não é difícil provar que esta regra de fé absolutamente insuficiente.
- Primeiramente, como poderemos saber quais são os livros inspirados se não há uma autoridade que não garanta a
sua inspiração, ou se não há ninguém para nos assegurar que o texto que possuímos não foi interpolado pelos copistas?
Já dizia S. Agostinho que não acreditaria nos Evangelhos se não cresse antes na Igreja.
- Como resolveremos as dificuldades? Pelo livre exame e aplicando as regras críticas e da exegese, respondem os luteranos
e calvinistas. Por meio da história e da tradição, dizem os anglicanos. Pela inspiração particular, pela iluminação do
Espírito Santo que ilumina a consciência de cada indivíduo, afirmam os anabatistas, os “quakers”, os metodistas e as
seitas místicas. Esta variedade de respostas bastaria para fazer um juízo claro da teoria protestante. Seja qual for a
solução adotada, é evidente que obteremos tantas interpretações quanto indivíduos “quot capita tot sensus”. Se
não aceitarmos outra guia, senão a razão individual ou a inspiração do Espírito Santo, cairemos na anarquia intelectual ou
no iluminismo.
- Quando muito, os que estudarem a Bíblia adquirirão, até certo ponto, uma espécie de verdade subjetiva. Mas como
conhecerão as verdades os que não são instruídos, nem tem vagar para ler e compreender a Escritura? E como poderiam
obtê-la antigamente aqueles que não tinham meios para adquirir a Bíblia, antes da invenção da imprensa, quando os
manuscritos eram tão raros e custosos?
- Mais: no começo do cristianismo não existia o Novo Testamento e Jesus Cristo não deixou escrito. Disse aos seus
apóstolos: “ide, ensinai a todas as gentes”, e não lhes recomendou que escrevessem a sua doutrina; por isso os
apóstolos nunca tiveram a pretensão de expor ex-professo por escrito os ensinamentos de Jesus. Ordinariamente
os seus escritos eram cartas de circunstância, destinadas a lembras alguns pontos da sua catequese. Queiram dizer-nos
os protestantes qual era a regra de fé antes da existência desses escritos.
- A regra de fé católica, pelo contrário, é meio seguro de conhecermos a doutrina integral de Cristo. Como é
fácil de ver, não contém nenhum dos inconvenientes co sistema protestante. É certo que o catolicismo admite a
infalibilidade da Sagrada Escritura; mas, além dessa fonte de revelação, admite outra mais importante e anterior à Escritura,
que é a Tradição. É esta, sobretudo - e nisto consiste a diferença essencial que existe entre a teoria protestante e a teoria
católica, - que ensina que Jesus constituiu uma autoridade viva, um magistério infalível que, com a assistência do Espírito
Santo, recebeu a missão de determinar quais os livros inspirados, de interpreta-los autenticamente, de haurir nesta fonte,
como na da Tradição, a verdadeira doutrina de Jesus, para depois a expor aos sábios e ignorantes.
Até mesmo alguns protestantes reconhecem que há entre os dois sistemas, considerados unicamente à luz da razão, certa
vantagem a favor do catolicismo. “O sistema católico", diz Sabatier, "colocou a infalibilidade divina numa
instituição social, admiravelmente organizada, com um chefe supremo, o Papa. O sistema protestante colocou a
infalibilidade num livro. Ora, sob qualquer aspecto que se considere os dois sistemas, as vantagens estão indubitavelmente
do lado do catolicismo” (Sabatier, op. cit., p. 306). Não pretendíamos demonstrar outra coisa com o argumento a
priori; alcançamos, portanto, o nosso intento.
- Argumento histórico. Somos chegados ao campo positivo da história. O que Jesus Cristo devia fazer,
tê-lo-á feito? Terá instituído uma autoridade viva e infalível encarregada de guardar e ensinar a sua doutrina?
O primeiro ponto ficou anteriormente demonstrado: Jesus Cristo instituiu uma Igreja hierárquica e chefes a quem concedeu
o poder de ensinar. Resta agora examinar o segundo ponto, no qual provaremos que o poder de ensinar, como foi conferido
por Jesus Cristo, comporta o privilégio da infalibilidade.
Esta segunda proposição apóia-se nos textos da Escritura, no modo de proceder dos Apóstolos e na crença da antiguidade
cristã:
- Nos textos da Escritura. A Pedro, em especial, prometeu Jesus Cristo que “as portas do inferno não
prevalecerão contra ela” (Igreja) (Mat. XVI, 18); e a todos os Apóstolos prometeu, por duas vezes, enviar-lhes o
Espírito da verdade (João XIV, 16; XV, 26) e ficar com eles até o fim do mundo (Mat. XXVIII, 20). Essas promessas
significam claramente que a Igreja é indefectível; que os Apóstolos e seus sucessores não poderão errar quando ensinarem a
doutrina de Jesus; porque a assistência de Cristo não pode ser em vão, nem o erro estar onde se encontra o Espírito da
verdade;
- No modo de proceder dos Apóstolos. Do seu ensino se depreende que tinham consciência de ser assistidos
pelo Espírito Santo. O decreto do concílio de Jerusalém termina com essas palavras; “Assim pareceu ao Espírito Santo
e a nós” (At. XV, 28). Os Apóstolos pregam a doutrina evangélica “não como palavra de homens, mas como
palavra de Deus, que na verdade o é” (I Tes. II, 13), a que é necessário dar pleno assentimento (II Cor. X, 5) e cujo
depósito convém guardar cuidadosamente (I Tim. VI, 20). Além disso, confirmam a verdade de sua doutrina os muitos
milagres (At, II, 43; III, 1-8; V, 15; IX, 34): prova evidente de que eram intérpretes infalíveis de doutrina de Cristo, de
outro modo Deus não a confirmaria com o seu poder;
- Na crença da antiguidade cristã. Concedem os nossos adversários que a crença num magistério vivo e
infalível já existia no século III. Basta portanto aduzir testemunhos anteriores:
- Na primeira metade do século III, Orígenes, aos herejes que alegam as Escrituras, responde que é necessário
atender à tradição eclesiástica e crer no que foi transmitido pela secessão de Igreja de Deus. Tertuliano, no tratado
“Da prescrição”, opõe aos herejes o argumento da prescrição e afirma que a regra de fé é a doutrina que a Igreja recebeu
dos Apóstolos. É necessário não nos enganarmos a respeito do sentido da palavra prescrição que usa Tertuliano. Em direito
moderno, quando se trata da propriedade, invoca-se a posse de longa duração, como um título que dirime qualquer
reivindicação: é a prescrição longi temporis. Ora, não propriamente nesta sentido que a emprega Tertuliano, para se
desembaraçar dos herejes e negar-lhes as suas pretenções. Mostra que o seu direito de propriedade deriva de um legado
recebido em forma devida, que é o legitimo herdeiro dos Apóstolos. É, portanto, o argumento da tradição que Tertuliano a
modo de questão preliminar, permitindo-lhe rejeitar qualquer discussão com os que não possuem essa tradição e formulam
novas asserções esforçando-se ao mesmo tempo por justifica-las com as Escrituras e com a razão: é a prescrição de
inovação. O argumento de prescrição reduz-se pois a isso: Não podemos discutir convosco (herejes); porque toda doutrina
nova, pelo fato de ser nova, isto é, de não ser conforme com a regra de fé transmitida pelos Apóstolos, está condenada de
antemão e antes de qualquer exame.
- Nos fins do século II, S. Ireneu, na carta a Florino e no livro Contra as heresias, apresenta a Tradição
apostólica como a são doutrina, como uma tradição que não é meramente humana. Donde se segue que não há motivo para
discutir com os herejes e que estão condenados pelo fato de discordarem da Tradição. É o mesmo argumento que retomará
mais tarde Tertuliano, dando-lhe uma forma mais erudita e jurídica.
Pelo ano 160, Hegesipo apresenta, como critério da fé ortodoxa, a conformidade com a doutrina dos Apóstolos transmitida
por meio dos Bispos. Na primeira metade do século II, Policarpo e Papias apresentam a doutrina dos Apóstolos como
a única verdadeira, como uma regra segura de fé. Nos princípios do mesmo século, temos o testemunho de S. Inácio. Afirma
esse santo eu a Igreja é infalível e que a incorporação nela é necessária para se salvar.
- Conclusão. Das duas provas da razão e da história se depreende que o poder doutrinal, conferido por Jesus
Cristo à Igreja docente, traz consigo o privilégio da infalibilidade, isto é, que a Igreja não pode errar quando expõe a doutrina
de Cristo.
- Sujeito da infalibilidade. Jesus Cristo dotou a sua Igreja com o privilégio da infalibilidade. Mas a quem
concedeu este privilégio? Indubitavelmente àqueles que receberam o poder de ensinar, isto é, aos Apóstolos todos, e dum
modo especial, a Pedro, poder e privilégio que transmitiram depois aos seus sucessores.
- Infalibilidade do colégio apostólico e do corpo episcopal.
- A infalibilidade do colégio apostólico provém:
- Da missão confiada a todos os apóstolos de “ensinar todas as nações” (Mat. XXVIII, 20);
- Da promessa de estar com eles “até a consumação dos séculos” (Mat. XXVIII, 20) e de lhes “enviar o
consolador, o Espírito Santo que lhes há de ensinar toda a verdade” (João XIV, 26). Estas passagens mostram com
evidência que o privilégio da infalibilidade foi concedido ao corpo docente tomado coletivamente.
- Do colégio apostólico o privilégio passou para à classe episcopal. Não sendo limitada no tempo e no
espaço, segue-se que a missão de ensinar deve passar aos sucessores dos Apóstolos com o privilégio que lhe é inerente.
Devemos, contudo, fazer uma distinção entre os Apóstolos e os Bispos. Os Apóstolos tinham como campo de ação todo
o universo, visto que as palavras de Nosso Senhor “ide e ensinai todas as gentes” foram dirigidas a todos
coletivamente. Portanto, eram missionários universais da fé e podiam pregar por toda a parte o Evangelho como doutores
infalíveis. Os Bispos, porém, só se podem considerar como sucessores dos Apóstolos tomados coletivamente; cada Bispo
não é o sucessor de cada Apóstolo. Têm apenas jurisdição numa determinada região, cuja extensão e limites são fixados
pelo Papa. Não herdaram, por conseguinte, individualmente a infalibilidade pessoal dos Apóstolos. Só o conjunto dos
Bispos goza da infalibilidade.
- Infalibilidade de S. Pedro e de seus sucessores. O privilégio da infalibilidade foi conferido duma maneira
especial a S. Pedro e aos seus sucessores. A tese prova-se com um argumento tirado dos textos evangélicos e outro
baseado na história.
- Argumento escriturístico. A infalibilidade de Pedro e de seus sucessores demonstram-se com os mesmos
textos que provam o primado.
- Em primeiro lugar, com o “Tu es Petrus” “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. É
incontestável que a estabilidade de um edifício lhe vem dos alicerces. Se Pedro, que deve sustentar o edifício cristão,
pudesse ensinar o erro, a Igreja estaria construída sobre um fundamento ruinoso e já não se poderia dizer: “as portas
do inferno não prevalecerão contra ela”.
- Depois com o “confirma fratres”, “confirma os teus irmãos”, Jesus assegurou a Pedro que pedira dum modo
especial por ele, “para que a sua fé não desfaleça” (Luc. XXII, 32). É evidente que esta prece feita em
circunstâncias tão solenes e tão graves não pode ser frustrada.
- Finalmente, com o “Pasce oves” “apascenta as minhas ovelhas”. Foi confiada a Pedro a guarda de todo o
rebanho. Ora, não se pode supor que Jesus Cristo tenha entregado o seu rebanho aos cuidados de um mau pastor que o
desencaminhe por pastos venenosos.
Não é necessário insistir em provar que a infalibilidade de Pedro se transmitiu aos seus sucessores, porque estes deverão
ser para a Igreja, na longa série dos séculos, o que Pedro foi para a Igreja nascente. A Igreja, em qualquer momento da
sua história, só poderá alcançar a vitória contra os ataques de Satanás, se o fundamento, sobre o qual se apóia, conservar
a mesma solidez e estabilidade.
- Argumento histórico. Para provar pela história que os Papas gozaram sempre do privilégio da infalibilidade,
basta mostrar que foi essa em todos os tempos a crença da Igreja e que de fato os papas nunca erraram em questões de fé
e de moral.
- Crença da Igreja. A crença da Igreja não se manifestou da mesma forma em todos os séculos. Houve, na
verdade, certo desenvolvimento na exposição do dogma a até no uso da infalibilidade pontifícia; mas nem por isso o dogma
deixa de remontar aos primeiros tempos, e de fato já o encontramos em germe na Tradição mais afastada, como se
demonstra pelo sentir dos Padres da Igreja e dos concílios, e pelos fatos:
- Sentir dos Padres da Igreja. No século II, S. Ireneu afirmava que todas as Igrejas se devem conformas com a de
Roma, pois só ela possui a verdade integral. S. Cipriano dizia que os Romanos "estão garantidos na sua fé pela pregação
do Apóstolo e são inacessíveis à perfídia e ao erro”. S. Jerônimo, para pôr termo às controvérsias que afligiam o
Oriente, escreveu ao Papa Damaso nos seguintes termos: “Julguei que devia consultar e esta respeito a cadeira de
Pedro e a fé Apostólica, pois só em vós está ap abrigo da corrupção o legado de nossos pais”.
S. Agostinho diz a propósito do pelagianismo: “Os decretos dos dois concílios relativos ao assunto foram submetidos à
Sé apostólica; já chegou a resposta, a causa está julgada”, “Roma locuta est, causa finita est”. O testemunho de S.
Pedro Crisólogo não é menos explícito: “Exortamo-vos, veneráveis irmão, a receber com docilidade os escritos do
Santo Papa da cidade de Roma, porque S. Pedro, sempre presente na sua sede, oferece a fé verdadeira aos que a
procuram”.
- Sentir dos concílios. O que fica dito anteriormente acerca do primado do Bispo de Roma, aplica-se com a mesma
propriedade ao reconhecimento de sua infalibilidade.
- Os fatos. No século II, o papa Vitor excomungou Teodósio que negava a divindade de Cristo , com uma sentença
dita por todos como definitiva. Zeferino condenou os montanistas, Calisto os sabelianos e, a partir destas condenações,
foram considerados como herejes. Em 417, o papa Inocêncio proscreveu o pelagianismo, e a Igreja reconheceu o decreto
como definitivo. Em 430, o papa Celestino condenou a doutrina de Nestório, e os Padres do Concílio de Éfeso seguiram a
sua opinião.
O Concílio de Calcedônia (451) recebeu solenemente a célebre carta dogmática do papa Leão I a Flaviano, que condenou
a heresia de Eutiques, proclamando unanimemente: “Pedro falou pela boca de Leão”. Do mesmo modo, os Padres
do III Concílio de Constantinopla (680) aclamaram o decreto do papa Agatão que condenava o monotelismo, dizendo:
“Pedro falou pela boca de Agatão”.
Como se vê, já desde os primeiros séculos, a Igreja romana é reconhecida como o centro da fé e como a norma segura da
ortodoxia. Quanto mais avançamos, tanto mais explícitos são os termos que nos manifestam a universalidade desta crença
até chegarmos à definição do dogma pelo concílio Vaticano I.
- Os papas nunca erraram nas questões de fé e de moral. É este o ponto mais importante do argumento histórico. Com
efeito, se alguns dos nossos adversários pudessem demonstrar que alguns papas ensinaram e definiram o erro, a
infalibilidade de direito ficaria comprometida. Ora, os historiadores racionalistas e protestantes julgam encontrar provas
desta falibilidade. Os casos principais a que aduzem são o papa Libério que, segundo eles, caiu no arianismo e o de
Honório, que teria ensinado o monotelismo.
- Objeções
- O caso do papa Libério (352-366). Os historiadores racionalistas acusam o papa Libério de ter assinado
uma proposição de fé ariana ou semi-ariana, para alcançar do imperador Constâncio o favor de voltar a Roma.
Resposta
- A. Exposição dos fatos. Recordemos brevemente os fatos. Em 355, o imperador Constâncio, favorável ao
arianismo, ordenara ao papa Libério que assinasse a condenação de Atanásio, bispo de Alexandria, o grande campeão
da fé ortodoxa. Como se recusasse a fazê-lo, foi exilado para Bereia na Trácia, e o arcediago Félix foi encarregado da
Igreja de Roma. Depois de um exílio de três anos aproximadamente, Libério foi restituído à sua sé (358).
- B. Solução da dificuldade. Toda a questão se resume em saber que motivos levaram o imperador a
levantar-lhe a pena de exílio. Há duas opiniões. Uns, seguindo Rufino, Sócrates, Teodoreto e Cassiodoro, afirmam que
o imperador Constâncio pôs termo ao exílio do papa por temor de insurreições do povo romano e do clero, por causa
da grande popularidade do pontífice. Outros, pelo contrário, julgam que o papa obteve o levantamento da pana, mediante
condescendências culpáveis e concessões feitas em matéria de fé.. Respondamos a esta segunda opinião.
Os seus partidários, para fundamentar a sua pretensão, apóiam-se em dois gêneros de testemunhos:
- Nos depoimentos dos contemporâneos: S. Atanásio, S. Hilário de Poitiers, S. Jerônimo;
- Nas declarações do próprio Libério.
Entre os fragmentos do Opus historicum de S. Hilário, chegaram até nós nove cartas do papa Libério, quatro das quais
datadas do exílio, parecem ser comprometedoras. Com efeito, nestas cartas o papa, para alcançar o favor declara
que condena Atanásio, faz profissão da fé católica formulada em Sirmium e pede aos seus correspondentes
Orientais, em especial a Fortunaciano de Aquileia, que intercedam perante o imperador para lhe abreviar o exílio.
A estas duas espécies de testemunhos aduzidos pelos adversários, responderam alguns apologistas negando a autenticidade
dos depoimentos dos contemporâneos e rejeitando as cartas do papa Libério como apócrifas. Mas como não é possível
provar que os testemunhos dos contemporâneos e os do próprio papa Libério não sejam autênticos, devemos aceitar a
discussão na hipótese de sua autenticidade. Tudo se reduz a conhecer qual foi a falta do papa e que fórmula subscreveu;
porque quando Libério terminou o exílio havia três fórmulas ditas de Sirmium. Dentre eles, só a segunda, que
declara que a palavra consubstancial deve ser rejeitada como “estranha à Escritura e ininteligível”, é tida
por herética. Ora, comumente se admite que não foi esta a fórmula que o papa assinou, mas provavelmente a terceira.
Quer se trate, porém, da primeira quer da terceira, os teólogos são unânimes em dizer que essas fórmulas não são
absolutamente heréticas, apesar de terem o grande inconveniente de favorecer o semi-arianismo, suprimindo a palavra
consubstancial da profissão de fé do concílio de Nicéia.
Conclusão. Portanto, ainda na hipótese mais desfavorável, podemos concluir:
- Que o papa Libério cometeu apenas um ato de fraqueza condenando, num momento angustioso o grande Atanásio:
fraqueza que Atanásio é o primeiro a desculpar: “Libério, diz este grande doutor, vencido pelos sofrimentos de um exílio
de três anos e pela ameaça do suplício, assinou por fim o que lhe pediam; mas tudo se deve à violência”.
- Além disso, o papa Libério nada definiu; se cometeu algum erro, quando muito podemos dizer que errou como doutor
particular e não como doutor universal, quando fala “ex-cathedra”. E, mesmo que tivesse falado “ex-cathedra” -
o que não admitimos - não tinha a liberdade de se requerer para o exercício da infalibilidade. Logo, em qualquer hipótese,
a infalibilidade está fora de questão.
- O caso do papa Honório (625-638). A dar crédito aos adversários da infalibilidade pontifícia, o papa
Honório ensinou o monotelismo em duas cartas escritas a Sérgio, patriarca de Constantinopla, e por isso foi condenado
como hereje pelo VI Concílio ecumênico e pelo papa Leão II.
Resposta
- Exposição dos fatos. Em 451, o concílio de Calcedônia definira contra Eutiques que em Jesus Cristo havia
duas naturezas completas e distintas: a humana e a divina. Se há duas naturezas, há também duas vontades: o concílio não o
disse expressamente, mas é evidente, pois uma natureza inteligente não pode ser completa sem a vontade.
Não foi esse, porém, o parecer de alguns teólogos orientais que ensinaram haver em Cristo uma só vontade, a divina, ficando
a vontade humana como que absorvida pela divina. Essa doutrina era falsa, mas os seus partidários julgavam encontrar nela
um meio de conciliação entre os eutiquianos ou monofisistas, isto é, os partidários de uma só natureza, e os
católicos. Os primeiros deviam admitir duas naturezas em Cristo e os segundos deviam conceder a unidade de vontade. Essa
tática foi adotada por Sérgio, que escreveu nesse sentido ao papa Honório.
Numa carta repleta de equívocos e onde a questão era ardilosamente apresentada, dizia que tinha reconduzido muitos
monofisistas à verdadeira fé e pedia-lhe que proibisse falar de uma ou duas energias, de uma ou duas vontades. Honório
deixou-se enganar e escreveu a Sérgio duas cartas em que o felicitava pelo bom resultado obtido, e outra a S. Sofrónio,
patriarca de Jerusalém e defensor da ortodoxia, na qual lhe aconselhava que não empregasse as palavras novas de
“uma ou duas operações”. Operação, na linguagem da época, era sinônima de vontade. Não obstante a intenção
conciliadora que ditou estas cartas, as disputas foram aumentando até ao VI concílio ecumênico, terceiro de
Constantinopla, que anatematizou os monotelitas e, entre outros, o papa Honório.
- Solução da dificuldade. A dificuldade que devemos resolver é a seguinte. Honório, nas duas cartas a
Sérgio, ensinou o erro? Terá sido condenado por esse motivo pelo VI concílio ecumênico? São duas as soluções
apresentadas pelos apologistas. Uns afirmam que as cartas a Sérgio são apócrifas e deste modo a questão fica cortada
pela raiz. Outros admitem a sua autenticidade e é neste campo que nos colocamos, para responder aos adversários.
Devemos pois inquirir se estas cartas contêm alguma heresia.
Ninguém pode negar que Honório ladeia a dificuldade com o máximo cuidado e recusa pronunciar-se acerca das duas
vontades. No entanto - note-se bem esta particularidade - começa por lembrar as decisões do concílio de Calcedônia e
afirma claramente que em Jesus Cristo há duas naturezas distintas, operativas. Em seguida, aprovando a tática de
reconciliação adotada por Sérgio, recomenda que não se avance mais no assunto e não se torne a falar de uma ou duas
operações. Acrescenta, é verdade, que em Cristo há uma só vontade, mas pelo contexto se depreende que não quer
com isso negar a existência da vontade divina em Jesus; o seu fim é simplesmente excluir as duas vontades a que
insidiosamente Sérgio aludia: as duas vontades que lutam em nós, a do espírito e a da carne. Honório, portanto, não nega
que haja em Cristo uma vontade divina e outra humana, mas somente afirma que a vontade humana de Jesus não é,
como a nossa, arrastada por duas correntes que se contrariam.
Todavia, objeta-se, Honório foi condenado pelo VI concílio ecumênico e pelo papa Leão II. Advirta-se, em
primeiro lugar, que nem todas as palavras contidas nas Atas dos Concílios são infalíveis e que as decisões de um concílio
só gozam do privilégio da infalibilidade, depois de serem examinadas pelo papa. Ora, as atas do VI Concílio, onde estava
exarado o anátema contra Honório e contra os principais monotelistas como Sérgio, não foram confirmadas pelo papa.
O Sumo Pontífice limitou-se censurar o modo de proceder de Honório, sem o anatematizar, como fez aos outros, e não
lhe infringiu a nota de hereje.
Conclusão. Podemos portanto concluir:
- Que Honório não ensinou nem definiu o monotelismo. Quando muito pode dizer-se que não foi clarividente e que em
certo modo favoreceu a heresia, abstendo-se de definir e recomendando o silêncio quando devia falar, proporcionando
assim aos monotelistas um pretexto para sustentarem sua doutrina.
- Ainda que houvesse erros nas suas cartas e, por esse motivo, fosse condenado pelo VI concílio, o erro e a condenação
só o atingiriam como doutor particular, e não como doutor universal. Portanto, nem o caso de Honório
nem o de Libério, são argumentos contra a infalibilidade pontifícia.