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APOLOGÉTICA: A. Boulenger

» O PROBLEMA DA CERTEZA

Logo no começo da apologética, surge um grave problema. Poderá a inteligência humana conhecer a realidade das coisas e alcançar a certeza objetiva? E, sendo a razão o principal instrumento do apologista, qual é o seu valor para chegar à verdade? Podemos confiar nela? Poder-nos-á conduzir à certeza? Tal é o primeiro problema que se impõe ao apologista e a que vamos responder sumariamente, porque está fora do nosso plano demonstrar “ex professo” o valor da razão e a objetividade do conhecimento. Além de ser assunto muito complexo e de sair dos limites de nosso simples trabalho, pertence ao domínio da filosofia; se os leitores quiserem estudar mais a fundo esta questão, indicamos os livros citados na Bibliografia. O único fim que nos propomos é, pois, dar uma idéia geral do problema e dos sistemas, que em diversos sentidos o resolvem, pondo-nos deste modo em contato com os adversários, que brevemente encontraremos no caminho.

Este capítulo terá quatro artigos: 1º) Noção, espécies e critério da certeza; 2º) Falsas soluções do problema da certeza; 3º) Verdadeira solução; 4o) Que se deve entender por certeza religiosa.

ART. I - A CERTEZA. NOÇÃO. ESPÉCIES. CRITÉRIO

1. Noção

Certeza é o estado da mente em que está intimamente persuadida de possuir a verdade. Estar certo é, portanto, formular um juízo, que exclui totalmente a dúvida e o temor de errar.

2. Espécies

A certeza não admite graus; ou é, ou não é. Por mais pequeno que seja o temor de errar, se existe, desvanecesse a certeza e dá lugar á opinião, ou à dúvida. Contudo, conforme os aspectos sob que se considere, é possível distinguir diversas espécies de certeza.

  1. Segundo a natureza das verdades que atinge, temos:

    1. A certeza metafísica, que se funda na relação necessária entre os termos do juízo. Quando digo que “o todo é maior que a parte”, o atributo convém de tal modo ao sujeito que é impossível conceber o contrário. Ao formularmos um juízo desses, o nosso espírito não só não admite a possibilidade de dúvida, mas afirma que a contraditória é absurda e não se pode conceber;

    2. A certeza física, que se baseia na constância das leis do universo. Só a experiência nos pode dar esta certeza. Assim, quando dizemos que “os corpos tendem a cair para o centro da terra”, julgamos que a proposição contrária é falsa, por contradizer os fatos observados, mas não absurda, pois as leis poderiam ser de outro modo;

    3. A certeza moral, que se funda no testemunho dos homens, quando este se apresenta com todas as garantias de verdade. As verdades históricas e, portanto, as religiosas são objeto da certeza moral.

  2. Segundo o modo do conhecimento, a certeza é:

    1. Imediata, direta ou intuitiva, quando se apresenta à inteligência sem o intermédio de outra verdade; ex.: o todo é maior que a parte;

    2. Mediata, indireta ou discursiva, quando a conhecemos indiretamente por meio do raciocínio; ex.: a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois retos.

  3. Com relação à evidência, a certeza pode ser:

    1. Intrínseca, se a evidência é, direta ou indiretamente, apreendida do próprio objeto;

    2. Extrínseca, se provém da autoridade daquele que a afirma. No primeiro caso, há ciência propriamente dita: no segundo, crença ou fé moral, como acontece nas verdades históricas.

3. Critério

Em geral chama-se critério o sinal distintivo com que se reconhece uma coisa e que nos impede de a confundir com outra. O critério da verdade é, portanto, o sinal pelo qual podemos reconhecer que uma coisa é verdadeira e dela estar certos. Por conseguinte, o problema da verdade reduz-se a saber qual é sinal por onde podemos conhecer que estamos em posse da verdade.

Foram propostos vários critérios: a revelação divina (Huet, de Bonald), o consenso universal (Lamennais), o senso comum (Reid, Hamilton), o sentimento (Jacobi). Nenhum deles é admissível, porque todos são insuficientes e provém duma injustificada desconfiança da razão humana em geral, ou da razão individual em particular. O critério ou sinal infalível e universal da verdade é a evidência. Mas, que é a evidência? O termo evidente, como a etimologia o indica, significa que a verdade está revestida duma claridade que a faz brilhar aos nossos olhos. Desse modo a evidência exerce no espírito uma espécie de violência, coloca-o na impossibilidade de não ver. Estou certo porque vejo que a coisa é assim, e não pode ser de outro modo; e vejo que é assim, ou por intuição direta, ou por meio da demonstração, ou finalmente por um testemunho irrefragável que não me permite julgar o contrário.

ART. II - FALSAS SOLUÇÕES DO PROBLEMA DA CERTEZA

Várias são as escolas filosóficas que negam a possibilidade de conhecer a verdade e repousar na certeza. Só encaramos o problema sob o ponto de vista da missão que a inteligência deve desempenhar na descoberta da verdade.

Os céticos, criticistas, positivistas e intuicionistas negam ou deprimem o valor da razão. Examinemos rapidamente esses sistemas.

  1. Ceticismo. Defendem os céticos que o homem é incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, e portanto que deve abster-se de julgar. Para prova desta tese, aduzem quatro motivos: a ignorância, o erro, a contradição e o dialelo.
    1. A ignorância. É manifesta a ignorância humana a respeito de diversos assuntos. Demais, como as coisas estão concatenadas entre si, a ignorância de um aspecto qualquer de um ser faz que não possamos conhecer a fundo e tal como é; não sabemos “le tout de rien”, como diz Pascal.

    2. O erro. O homem engana-se freqüentemente e, o que é pior, quando se engana, julga possuir a verdade. Como há-de saber então quando alcançou a verdade?

    3. A contradição. Os homens raramente estão de acordo.

    A verdade varia:

    1. Com os países. “Curiosa justiça limitada por uma serra ou um rio. Verdade do lado de cá dos Pirineus, erro do lado de lá!" - disse também Pascal;

    2. Com os tempos. Ações, que hoje são lícitas, eram outrora proibidas, e reciprocamente;

    3. Com os indivíduos. O que um julga bem, outro julga-o mal; Mais ainda; o mesmo indivíduo muda a cada passo o seu modo de ver e de pensar;

    4. O dialelo (do grego di allêlôn, um pelo outro - é sinônimo de círculo vicioso). É o argumento mais especioso do ceticismo. Pode formular-se: Para provar o argumento da razão não há outro meio além da razão. Ora, isso é evidentemente um círculo vicioso; logo, tanto por esse motivo como pelos precedentes, o ceticismo defende com todo o direito que a dúvida é o estado legítimo da inteligência.

  2. O criticismo ou relativismo kantista. Segundo Kant, todos os juízos se acomodam às leis da mente. O conhecimento não é regulado pelos objetos; não provém do exterior por intermédio da experiência. Não podemos conhecer as coisas como são em si. Os objetos são unicamente o que o espírito quer que sejam: moldam-se, por assim dizer, nas formas da inteligência e nos pareceriam outro se nosso espírito fosse constituído de outro modo. Por isso nosso conhecimento é relativo, e só tem valor relativamente a nós, pois são as nossas faculdades que impõem as suas formas subjetivas aos objetos conhecidos; daí os nomes de subjetivismo e relativismo, que por vezes se dão à doutrina de Kant. Mas, se apenas atingimos as nossas idéias (Todas as teorias fundadas no princípio que só podemos conhecer os objetos como existem na nossa mente têm o nome genérico de idealismo. Entre as várias espécies de idealismo, somente faláramos de duas principais: o idealismo crítico, ou criticismo de Kant e o idealismo metafísico de Bergson, que é a forma mais moderna de idealismo, do qual nos ocuparemos depois com o nome de intuicionismo.), é conveniente fazer a crítica das nossas faculdades cognoscitivas (razão pura, razão prática e juízo), para conhecermos a influência subjetiva que exercem no objeto conhecido. Daqui provém o nome criticismo que de ordinário de aplica à teoria kantista.

    Além disso, a nossa mente é forçada a conceber três idéias fundamentais: a alma, o mundo e Deus. Pensamos que a estas realidades correspondem três seres, objetos ou númenos (do grego noúmenon, percebido pelo “noûs”, razão pura - significa a essência dos seres, isto é, o que são em si, em oposição as suas aparências. Segundo Kant, o númeno pode ser objeto de crença, mas não de ciência.). Mas serão porventura três seres reais? Para além dos fenômenos haverá realmente númenos? Não o podemos afirmar, pois a razão é impotente para resolver o problema, não pode conhecer o ser em si mesmo, isto é, a alma, o mundo e Deus. Kant, porém, por meio de sua teoria engenhosa, distingue a razão teórica da razão prática (a razão prática é a consciência moral, isto é, a faculdade de julgar entre o bem e o mal por meio da lei moral), e constrói com a segunda o que tinha destruído com a primeira. A razão teórica ignora as coisas em si, mas a razão prática descobre a obrigação moral no mais íntimo da consciência e deduz e existência das coisas em si, quer dizer, da lei moral que postula a liberdade, a responsabilidade, a imortalidade da alma e a existência de Deus necessária para explicar a existência da lei moral e a possibilidade da sanção.

  3. O Positivismo. O positivismo (A. Comte e Littré, na França; Hamilton Spencer e Stuart-Mill, na Inglaterra) afirma que a razão humana pode atingir as verdades de ordem experimental ou positivas, mas que é incapaz de conhecer o que não é objeto de experimentação. Podemos, pois, compreender os fenômenos, o relativo, mas não a substância, nem o absoluto (os termos absoluto, coisa em si e númeno empregam-se aqui como sinônimos e opõe as palavras relativo, aparência e fenômeno). Por exemplo. A razão pode verificar os fatos, e formular-lhes as leis: é o cognoscível e o objeto de ciência. Mas para além dos fatos e das leis, estende-se o domínio inacessível das coisas em si e das causas: é incognoscível. Por isso, o positivismo chama-se também agnosticismo.

  4. O Intuicionismo. O intuicionismo, - nome que se dá às teorias de Bergson acerca do conhecimento, - provém do relativismo de Kant e do evolucionismo de Spencer.

    Segundo Bergson, há duas maneiras de conhecimento: pala inteligência e pela intuição:

    1. Pela inteligência. Admite, à semelhança de Kant, que a razão não pode chegar ao conhecimento objetivo dos seres, e dá várias razões. Na teoria kantista o conhecimento é sempre subjetivo, pelo fato de impormos aos objetos as formas imutáveis do nosso espírito; na teoria bergsoniana, ao contrário, afirma-se que a primeira causa de erro provém da atividade de inteligência humana, que, longe de possuir formas invariáveis, opera nos objetos com que está em contato, modifica-os, assimila-os, exatamente como o organismo transforma os alimentos. A segunda causa de erro provém de os objetos estarem sujeitos e perpétuas mudanças, e só poderem se apreendidos num dado momento da sua irrequieta existência. A terceira causa tem por origem os laços insensíveis que unem entre si estas mudanças; pois trata-se mais de evolução do que de transformação. Ora, como a razão se vê obrigada a trabalhar com conceitos estáveis, segue-se que não pode exprimir o movimento das coisas, nem o que há de contínuo na sua evolução. Deve portanto isolar os estados sucessivos dos objetos, substituir a descontinuidade e a pulverização da reflexão pela continuidade e unidade do seu “devir” ou movimento evolutivo.

    2. Pela intuição. Mas, - e é nesta parte que Bergson julga ultrapassar Kant, - posto que a razão não consiga chegar a um conhecimento objetivo das coisas, existe contudo um meio de atingir a realidade. Este meio é a intuição, que conhece a realidade viva e móvel, por meio da visão direta e imediata do objeto. Portanto, só o conhecimento intuitivo é verdadeiramente objetivo.

      Deste modo, julga o sistema bergsoniano evitar a crítica kantista acrescentando um novo elemento cognoscitivo. Donde se conclui que, se o conhecimento de Deus, por meio da razão não tem valor algum, pode conseguir-se pela intuição, pela consciência e pelo coração. Esta é a razão porque os modernistas, partidários da filosofia bergsoniana substituíram a apologética racional pela apologética de intuição ou de imanência (n.o 17).

ART. III. - VERDADEIRA SOLUÇÃO DO PROBLEMA. O DOGMATISMO. VALOR E LIMITES DA RAZÃO

1. O Dogmatismo

Chama-se dogmatismo (do grego dogmatizo, afirmo) o sistema filosófico, que afirma que a razão pode conseguir a certeza, e que esta corresponde à realidade das coisas, isto é, que as nossas idéias são realmente objetivas.

O dogmatismo invoca em seu favor as seguintes razões:

  1. A falsidade dos sistemas opostos;

  2. A intuição imediata da verdade objetiva dos primeiros princípios;

  3. As exigências do censo comum.

  1. Falsidade dos sistemas opostos.

    1. Às objeções dos céticos responde o dogmatismo que a ignorância e o erro, acerca de algumas verdades, não provam de modo algum que a certeza não possa existir acerca de outras. O fato de algumas vezes reconhecermos que erramos, não será, pelo contrário, uma prova de que a nossa razão pode conhecer a verdade? A contradição não é também um argumento em favor do ceticismo, porque não é universal; não se estende a todos os domínios do saber, nem a todas as proposições. Quanto à objeção do dialelo, pode-se retorquir contra os adversários; porque, demonstrar pela razão a ilegitimidade da razão também é um círculo vicioso.

    2. Aos criticistas e positivistas contesta que a distinção, por eles estabelecida entre o fenômeno e o númeno, não é absoluta, nem pode aplicar-se aos fatos de consciência, porque, numa única intuição, conhecemos o nosso ser e a representação que dele formamos. Outro erro funesto é pretender que a ciência se ocupa unicamente dos fenômenos; que só é certo o que experimentalmente podemos verificar; e que não é lícito concluir dos fenômenos para a realidade da substância. Pelo contrário, é incontestável que a razão, auxiliada pelos dados dos sentidos e da consciência, pode deduzir os princípios de causalidade e de substância, dos efeitos subir às causas, e das causas segundas e relativas, à causa primeira e absoluta.

    3. O dogmatismo admite também, como Bergson, dois modos de conhecimento muito diversos, mas julga que o modo de operar da razão é tão legítimo como o da intuição. A diferença que entre eles existe não é tão grande como se poderia pensar.

      Com efeito, o raciocínio supõe uma intuição no começo e outra no fim. Sirva-nos de exemplo a demonstração de um teorema de geometria. A razão deve apoiar-se primeiro nos axiomas cuja verdade ela apreende diretamente, isto é, por meio de uma intuição. Em seguida, por uma serie de deduções, chega a outra intuição, conhecendo claramente uma verdade até então desconhecida e cuja evidência aparece no final da demonstração.

      Também não é exato dizer que a atividade da alma transforma a natureza das coisas. A inteligência abstrai a essência dos objetos; porque ainda que estes estejam sujeitos à evolução contínua, e num perpétuo devir, contudo esta evolução não lhes atinge totalmente o ser. Há neles alguma coisa que não muda, e é isso o que chamamos de substância. Através das múltiplas mudanças da minha existência, tenho a consciência de ser o mesmo homem. Portanto, do mesmo modo que a intuição, pode também a razão chegar ao conhecimento objetivo.

  2. Intuição imediata da verdade objetiva dos princípios primeiros. Há um certo número de princípios fundamentais que conhecemos por meio da intuição imediata e cuja verdade se nos apresenta com tal evidência que se impõe a nossa inteligência; tais são, por exemplo, o princípio de identidade e o de razão suficiente. Quem ousará afirmar que A não é A, ou que um ser pode começar a existir sem uma razão suficiente? Todos estão intimamente convencidos que os axiomas não são meras representações do intelecto, mas leis dos seres.

  3. Senso comum. É evidente que o senso comum está em favor do dogmatismo. Todos julgam, até os filósofos que fazem profissão do contrário, que as nossas idéias não têm um valor meramente subjetivo e que estão conformes com a realidade das coisas. “Não há sábio que tome a sério a quem lhe disser que as leis da física ou da química, descobertas por ele depois de tão longas e difíceis investigações, não correspondem à realidade, que o oxigênio e o carbono são apenas idéias subjetivas e que os eclipses da lua e do sol são meras “representações” da imaginação... Ora, não se pode admitir que o instinto natural e universal do gênero humano nos engane tão grosseiramente num assunto de tanta importância” (Fongressive, Elém. De philos. T. II.).

2. Valor e limites da razão

De todo o que precede conclui-se:

  1. Que a inteligência pode chegar a certeza objetiva em certas matéria, por meio da intuição e do raciocínio. Tendo sido dotados de uma alma feita para a verdade, seriamos os seres mais infelizes de criação, se caíssemos necessariamente no erro, ou nunca estivéssemos certos de não nos enganar;

  2. A ciência não se limita ao conhecimento dos fenômenos, mas, em certa medida, penetra até o ser como é em si;

  3. Dizemos, em certa medida, porque ainda quando alcançamos a certeza, nunca o nosso conhecimento é absoluto e adequado, pois não pode exaurir toda a cognoscibilidade das coisas. A razão encontra barreiras insuperáveis, porque quanto mais alto está o objeto, tanto mais imperfeito é o nosso conhecimento. Podemos, é certo, demonstrar a existência de Deus e conhecer alguma coisa de sua natureza, porém, à medida que avançamos, mais incompleta será a ciência e menos exato o conhecimento.

Conclusão

“Ainda que seja completamente exato e adequado o nosso conhecimento dos seres, contudo é verdadeiro o que deles afirmamos. Somos homens, e por isso seria insensato aspirar ao impossível e querer possuir uma ciência sobre-humana” (Fongressive, Elém. De philos. T. II.). Digamos, pois, o conselho de Lactâncio: “É boa prudência não julgar que sabemos tudo, o que é próprio só de Deus, nem que tudo ignoramos, o que é próprio do animal irracional”.

ART. IV - CERTEZA RELIGIOSA. MÚNUS DA RAZÃO E DA VONTADE

Certeza religiosa

Mas de que espécie é a certeza apologética? Não há dúvida de que a certeza religiosa é de ordem moral.

  1. É verdade que na parte filosófica as verdades são metafísicas por natureza; porém, as questões que nela se tratam, - existência de Deus e da alma, sua natureza e relações entre Deus e o mundo, - são tão complexas e estranhas a experimentação direta, que a solução desses problemas não se manifesta com evidência matemática, e por conseguinte requerem em nós disposições morais.

  2. Na parte histórica, as provas do fato da revelação se apóiam no valor do testemunho. Portanto, o motivo da nossa certeza devem apoiar-se em sinais que atestem sua existência e credibilidade. Mas, como na parte filosófica como na histórica, a razão e a vontade têm um valor a desempenhar.

Múnus da razão

O múnus da razão é reconhecer a verdade. Ora, como vimos, o critério da verdade é a evidência e não o sentimento. Não julgamos que uma coisa seja verdadeira porque desejamos que o seja, mas julgamo-la tal porque vemos que é verdadeira. Nem o sentimento nem a vontade podem substituir a razão; para amar e querer uma coisa é necessário primeiro conhecê-la. Se chegamos portanto a alcançar a certeza religiosa, é porque a Revelação se apresenta revestida dos caracteres de evidência e dos motivos de credibilidade, que forçam o nosso assentimento.

Múnus da vontade

A razão é insuficiente se não for auxiliada pela vontade, que nesse caso exerce uma dupla função:

  1. Antes do juízo, deve dispor a alma para ver a luz. De fato, é ela que escolhe o objeto de estudo, que dirige para ele a atenção e nele a fixa. Mais ainda; a fim de a inteligência não ficar exposta aos perigos de errar, deve afastar da alma todas as paixões e preconceitos;

  2. No momento de formular o juízo, não é menos necessária a sua intervenção para determinar a inteligência a aderir à verdade, pois esta adesão não se faz sem sacrifícios; as verdades morais, tais como a existência de Deus, dum juiz supremo, da imortalidade da alma, da lei moral e da vida futura, impõe deveres difíceis à natureza e que não raro seríamos instintivamente tentados a repelir.

Sem exagerar o múnus da vontade, podemos afirmar que a verdade religiosa não pode penetrar na alma simplesmente pela força de um silogismo. Devemos acrescentar, com Brunetière, que “se cremos, não é por motivos de ordem intelectual”? Estas palavras, mal interpretadas, não resistiriam à crítica; mas, na intenção do autor, significam certamente que a fé não nasce da força dos argumentos, se não houver o cuidado prévio de dispor a alma por meio da humildade, da mortificação das paixões e sobretudo da oração. As grandes conversões e as transformações morais operadas através dos séculos pelo Cristianismo foram mais propriamente trabalho da vontade e da graça, do que fruto do raciocínio.

Concluamos, pois, que importa assinar à vontade e à razão a missão que lhes compete. Como se exprime Platão, é preciso “procurar a verdade com todas as forças da alma”. Razão, vontade e coração devem unir-se para a conquista da verdade.



Bibliografia: Tratados de filosofia; em particular o Manual de Filosofia de C. Lahr (Porto, Apostolado da Imprensa), e os de Fonsegrive, Jolivet e G. Sortais. - S. Tomás, Summa Teológica, De veritate. - Kleutgen, La philosophie scholastique (Gaume). - De Pascal, Le Christianisme, I. Part. La verité da la Religion (Lethielleux). - P. Julien Werquin, L´Évidence et la Science.