A g n u s D e i

O CUIDADO DEVIDO AOS MORTOS
Santo Agostinho

CAPÍTULO XIII

Por que não podemos atribuir a anjos essas operações permitidas pela Providência Divina, que sabe se servir sabiamente dos bons e dos maus, conforme a inescrutável profundidade de seus julgamentos? Essas visões podem servir tanto para instruir quanto para enganar os vivos, para consolá-los ou assustá-los, sendo cada um tratado com misericórdia ou com rigor por aquele que a Igreja não celebra em vão "a misericórdia e a justiça"34.

Entenda como quiser isto que vou falar agora: se acaso os mortos intervissem nos problemas dos vivos, aparecendo-nos e falando-nos durante o sono, a minha piedosa mãe (para não falar de outras pessoas) não me abandonaria uma noite sequer, pois ela sempre me seguiu por terra e mar, sempre partilhou comigo a sua vida. Para mim é difícil crer que uma vida mais feliz a tornou indiferente para comigo, a ponto de não mais me consolar nas tristezas, justo eu que fui seu grande amor e a quem ela jamais quis ver triste!

Certamente as palavras do Salmo são verdadeiras: "Meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu"35.

Ora, se os nossos pais nos abandonaram, como podem eles se interessarem por nossos problemas? E se ficam indiferentes, que outros mortos poderiam se inquietar pelo que fazemos ou sofremos? Assim declara o profeta Isaías: "Porque tu é que és o nosso Pai. Abraão não nos conheceu, nem Israel soube de nós"36.

Se os grandes patriarcas desconheceram o destino do povo do qual eram a fonte e cuja raça saiu como fruto de sua fé em Deus, como seria possível aos mortos intervir, para conhecer e proteger nos negócios e empreendimentos dos vivos? E como poderíamos declarar bem-aventurados os santos que morreram antes das nossas infelicidades se eles continuassem sensíveis às desolações da vida humana? Acaso não estaríamos enganados se disséssemos que eles se encontram em um lugar de absoluta tranquilidade se porventura eles se inquietassem com a atormentada existência dos vivos? O que significaria, então, esta promessa feita por Deus em benefício do piedoso rei Josias, de que ele morreria antes dos males que estavam para se abater sobre sua nação e seu povo, para que não sentisse tristeza de ver tal tragédia? Eis a Palavra de Deus: "Direis ao rei de Judá que vos enviou a consultar o Senhor: 'Eis o que diz o Senhor Deus de Israel: como ouviste as palavras do livros e o teu coração se atemorizou a ponto de te humilhares diante do Senhor, após ouvir as palavras contra esta terra e seus habitantes, que virão a ser objeto de espanto e reprovação, e também por rasgardes as vestes e chorardes diante de Mim, eu te escutei - diz o Senhor - e por isso te farei descansar com teus pais e sereis sepultado em paz, para que teus olhos não vejam o mal que farei cair sobre esta terra"37.

Aterrorizado por essas ameaças de Deus, Josias chorou e rasgou suas vestes, mas a certeza de que sua morte precederia as desgraças que estavam por vir, bem como a certeza de que fora chamado a gozar a paz no repouso, sem ter que ver aqueles males, devolveram-lhe a serenidade da alma.

Portanto, as almas dos mortos encontram-se em um lugar onde não podem ver o que se passa ou acontece aos homens da terra. E como poderiam partilhar das misérias dos vivos se estão a suportar as próprias penas, caso as tenham merecido, ou estão em paz repousando, como foi prometido a Josias? Aí não sofrem nem por si, nem por outros, pois se livraram de todas as penas por suportarem a dor pessoal e a compaixão por outrem quando viviam sobre a terra.

CAPÍTULO XIV

Alguém me dirá por objeção: se os mortos não se interessam pelos vivos então porque aquele rico que passava tormentos no Inferno suplicou a Abraão para que enviasse Lázaro a seus cinco irmãos vivos, para convencê-los a mudar de vida e, assim, evitarem aquele lugar de sofrimentos?38. Será que é possivel deduzir dessa passagem que ele sabia o que seus irmãos faziam ou sofriam nesse tempo? Estava ele preocupado com os vivos, sem saber o que faziam, da mesma forma como nos preocupamos com os mortos, sem sabermos o que fazem? Na verdade, se não nos interessássemos por eles, também não oraríamos na intenção deles. Aliás, Abraão não enviou Lázaro à terra, mas respondeu ao condenado que seus irmãos tinham Moisés e os profetas; deveriam ouvi-los se desejassem escapara daqueles suplícios...

Neste ponto, pode-se novamente objetar: "como poderia Abraão ignorar o que se passava sobre a terra, já que sabia viver Moisés e os profetas, isto é, seus escritos, e que, seguindo-os, escapariam dos tormentos do Inferno? Ele não sabia também que o rico havia gozado as delícias e que o pobre Lázaro vivera na miséria e no sofrimento, pois disse: 'Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida e Lázaro, por sua vez, os males'39? Logo, Abraão conhecia os fatos referentes aos vivos e não aos mortos". É certo, mas esses fatos ele podia não ter conhecimento no momento em que ocorreram, mas após o falecimento dos dois e sob as indicações do próprio Lázaro. Desse modo, a palavra do profeta não está desmentida: "Abraão não nos conheceu"40.

CAPÍTULO XV

Convenhamos que os mortos ignoram o que acontece na terra, pelo menos no momento em que ocorrem. Pode vir a conhecer mais tarde, por intermédio daqueles que vão ao seu encontro, uma vez falecidos. Certamente, não ficam sabendo de tudo, mas apenas aquilo que lhe for autorizado saber e que têm necessidade de saber.

Os anjos, que velam sobre as coisas deste mundo, também podem lhes revelar alguns pontos que julguem convenientes a cada um, por Aquele que tudo governa, pois se os anjos não tivessem o poder de estarem presentes tanto na morada dos vivos quanto na dos mortos, o próprio Senhor Jesus não teria dito: "Aconteceu que o pobre [Lázaro] morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão"41. Eles estão, assim, ora na terra, ora no céu, já que foi da terra que levaram aquele homem que Deus os confiou.

As almas dos mortos também podem conhecer alguns acontecimentos aqui da terra por revelação do Espírito Santo, acontecimentos estes cujo conhecimento seja necessário. E isto não se restringe somente a fatos passados ou presentes, mas também futuros. É assim que os homens - não todos, mas apenas os profetas - conheceram durante sua vida mortal, não todas as coisas, mas apenas aquelas que a Providência Divina julgava bom lhes revelar.

A Sagrada Escritura atesta-nos que alguns mortos foram enviados a certas pessoas vivas e, da mesma forma, algumas pessoas foram até a morada dos mortos: Paulo foi arrebatado até o Paraíso42; e o profeta Samuel, após sua morte, apareceu a Saul, ainda vivo, e lhe predisse o futuro43. É bem verdade que alguns não admitem que tenha sido Samuel que apareceu, já que sua alma não acatava a tais procedimentos mágicos, como dizem. Julgam, assim, que foi outro espírito que se submete a essa arte maléfica que se revestiu de uma imagem semelhante a dele. Mas o livro do Eclesiástico, atribuído a Jesus, filho de Sirac - cujas semelhanças de estilo poderiam ser do próprio Salomão -, relata-nos um elogio aos Patriarcas onde afirma que "Samuel profetizou mesmo depois de morrer"44, e isto não poderia se referir a outra coisa a não ser essa aparição do defunto Samuel a Saul. Alguém poderia discutir a autoridade desse livro, sob o pretexto de que não se encontra no cânon dos hebreus, mas existe um outro texto que nos convida a admitir esse envio de mortos aos vivos: trata-se da passagem das aparições de Moisés e Elias no [monte] Tabor. O que dizer de Moisés, cujo livro do Deuteronômio nos certifica da sua morte45, aparecendo vivo ao lado de Elias - que não morreu - como lemos no Evangelho?46

CAPÍTULO XVI

Tudo o que foi escrito até agora serve para resolvermos esta questão: como os mártires que se interessam pelas coisas humanas se manifestam, atendendo as nossas orações, uma vez que os mortos ignoram o que fazem os vivos?

Com efeito, sabemos, não por vagos rumores, mas por testemunhas dignas de fé, que o confessor Félix - cujo túmulo tu veneras piedosamente como santo asilo - deu não apenas mostras de seus benefícios, mas até de sua presença, ao aparecer aos olhos dos homens durante o cerco da cidade de Nola pelos bárbaros.

Esses fatos excepcionais acontecem graças à permissão divina e estão longe de entrar na ordem normalmente estabelecida para cada espécie de criatura. Não podemos concluir pelo fato da água ter se transformado em vinho pela palavra do Senhor47, que a água tenha poder de operar por si mesma essa transformação pela propriedade natural de seus elementos, visto que tratou-se de uma operação divina excepcional e até única! Também o fato de Lázaro ter ressuscitado48 não significa que todo morto possa se levantar quando quiser ou que possa ser normalmente acordado como qualquer homem adormecido. Uns são os limites do poder humano; outras são as marcas do poder divino. Uns são fatos naturais; outros, miraculosos, ainda que Deus esteja presente na natureza para a manter na existência e a natureza tenha seu lugar inclusive para os milagres.

Assim, é necessário não crer que todos os defuntos - sem excessão - podem intervir nos problemas dos vivos apenas pelo fato de que os mártires tenham obtido curas ou prestado outros socorros. É preciso compreender, ao invés, que é por causa do poder de Deus que os mártires intervêem nos nossos interesses, pois os mortos não possuem tal poder por sua própria natureza.

Há, porém, uma questão que ultrapassa os limites da minha inteligência: como os mártires, que sem sombra de dúvida socorrem seus devotos, aparecem... em pessoa e no mesmo momento? em vários lugares e afastados uns dos outros? sua ação se faz notar apenas onde se encontra o seu túmulo ou em qualquer outro lugar? se permanecem confinados na morada reservada a seus méritos, longe de qualquer relacionamento com os mortais, contentam-se em interceder pelas necessidades daqueles que lhes suplicam? oram da mesma forma que nós oramos pelos mortos, sem estar presentes e sem saber onde estão e o que fazem?

Não será Deus, o Deus onipotente e onipresente, que não se acha confinado em nós e muito menos afastado de nós, que atende as orações dos mártires, servindo do ministério dos anjos, cuja ação se estende sobre todas as coisas, para distribuir o consolo aos homens que Ele julga ser necessário para enfrentar as misérias da vida presente? Não será Ele que, com poder admirável e infinita bondade, faz resplandecer os méritos dos mártires onde Ele o quer, quando quer, como quer, especialmente nos locais onde se ergueram suas sepulturas, por saber que a lembrança dos sofrimentos suportados em confissão a Cristo, nos é útil para nos confirmar na fé?

Repito: esta é uma questão muito elevada e complexa para mim, de forma que não a posso explicá-la a fundo... Dessas duas hipóteses que indiquei, qual será a verdadeira? Talvez os dois processos sejam empregados em conjunto, de maneira que, às vezes, os mártires nos atendem com sua presença pessoal, e, às vezes, por intermédio dos anjos que tomam a sua forma. Não ouso decidir e preferiria esclarecer-me junto a homens sábios que conheçam o assunto. Não digo que ignore ou imagine que saiba pois é impossível que não haja alguém que saiba porque Deus, em suas liberalidades, concede certos dons a alguns e outros dons a outros, conforme o ensino do Apóstolo que diz que a ação do Espírito Santo manifesta-se em cada um de acordo com uma utilidade comum. Eis o que diz Paulo:

"Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para utilidade de todos. A um, o Espírito dá a mensagem da sabedoria; a outro, a palavra da ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro, ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em línguas; a outro, ainda, o dom de as interpretar. Mas tudo isso é realizado pelo único e mesmo Espírito, que distribui os seus dons a cada um conforme lhe apraz"49.

Ora, entre todos esses dons elencados pelo Apóstolo, quem recebeu o dom do discernimento dos espíritos é que conhece essas questões - que agora tratamos - da forma como é necessário conhecer.

CAPÍTULO XVII

Creio que esse é o caso do famoso monge João, a quem o imperador Teodósio Magno consultou a respeito de uma guerra civil. De fato, ele possuía o dom da profecia... Mas eu não duvido que os dons [do Espírito] sejam distribuídos um por pessoa, isto é, acho que é possível a uma mesma pessoa receber diversos dons.

Certa vez, esse monge João soube que uma mulher muito piedosa desejava vê-lo. Então, através de seu marido, ela insistiu em marcar uma entrevista, mas ele recusou, como costumava a fazer quando se tratava de mulheres. Contudo, disse ao marido: "Ide e dize à tua esposa que ela me verá esta noite durante o sono". E, de fato, ela o viu dando-lhe conselhos convenientes a uma mulher cristã casada. Quando acordou, essa mulher contou tudo a seu marido, que conhecera pessoalmente esse homem de Deus e o reconheceu tal como ela o descreveu. O casal, então, revelou esse fato a um senhor que me comunicou, senhor esse sério, nobre e digno de fé.

Ora, se me fosse possível encontrar esse santo monge que, como me disseram, se deixava interrogar pacientemente, sabendo responder tudo com grande sabedoria, perguntar-lhe-ia algo que nos interessa aqui: se ele realmente se apresentou a essa mulher que dormia, pessoalmente, sob os traços aparentes do seu corpo, tal como os nossos corpos se apresentam a nós mesmos durante nossos sonhos; ou se a visão ocorreu pelo ministério dos anjos ou outra modalidade, enquanto ele mesmo fazia outra coisa ou até mesmo dormia, tendo seus próprios sonhos... E, caso confirmasse esta segunda hipótese, perguntar-lhe-ia se foi por uma revelação do Espírito de profecia que pôde prometer sua aparição naquela noite, durante o sonho da mulher.

Ora, se ele se apresentou pessoalmente em sonho à mulher, ele o fez por uma graça extraordinária e não por meios naturais, isto é, por um dom de Deus e não por seu próprio e natural poder. Mas, se essa mulher o viu enquanto ele fazia uma outra coisa (por exemplo: estivesse ele dormindo e tendo seus próprios sonhos), o fato se assemelhará ao que lemos nos Atos dos Apóstolos, quando o Senhor Jesus, falando a Ananias sobre Saulo, revela-lhe que Saulo vê Ananias ir até ele, ao passo que este nada sabia sobre isso50.

Porém, qualquer que fosse a resposta dada pelo monge João, esse homem de Deus, às minhas perguntais, eu ainda o teria questionado sobre os mártires. Perguntar-lhe-ia se eles aparecem pessoalmente durante o sono ou outro modo, sob figura que lhes apraz. E perguntaria, principalmente, como explicar o fato de dêmonios que habitam pessoas possessas queixarem-se de ser atormentados pelos mártires, a ponto de suplicarem que sejam poupados. Ainda lhe perguntaria se a sua intervenção se produz por ordem de Deus e pelo ministério dos anjos, para a glorificação dos santos e utilidade dos homens, já que os mártires encontram-se em repouso, longe de nós, em visões mais altas, contentando-se em orar por nossa intenção. De fato, em Milão, junto à sepultura de Gervásio e Protásio, quando se pronunciava os nomes desses heróis e dos falecidos comemorados com eles, os demônios gritavam o nome de Ambrósio, que ainda era vivo, suplicando-lhe que os poupasse. E o bispo encontrava-se longe dali, ignorando o que se passava e entretido com outras ocupações...

Será que podemos pensar que os mártires às vezes agem por presença efetiva e outras vezes pelos ministérios dos anjos? Podemos discernir o modo empregado por eles? Sob quais sinais podemos reconhecer isso? Somente quem recebeu esse dom do Espírito Santo é que pode discernir, pois é o Espírito que distribui os favores particulares a cada um, conforme lhe apraz.

Creio que o monge João, a meu pedido, poderia me esclarecer sobre essas dificuldades. Em sua escola eu poderia aprender o verdadeiro e correto conhecimento, ou até mesmo poderia crer - mesmo sem o compreender - naquilo que me afirmasse saber com certeza. Talvez até ele me responderia com as seguintes palavras da Escritura:

"Não procures saber o que excede a tua capacidade e não especules o que ultrapassa as tuas forças; mas creia sempre no que Deus te mandou"51.

Com gratidão, eu também acolheria esse conselho, pois não é de pouco proveito, nas coisas obscuras e incertas - e que não podemos compreender, adquirir a convicção clara e correta de que elas não devem ser investigadas, ou seja, convencer-se de que não é nocivo ignorar aquilo que se quer saber, imaginando que poderíamos tirar proveito em o saber.


34cf. Sl 100,1.
35cf. Sl 26,10.
36cf. Is 63,16.
37cf. 2Rs 22,18-20.
38cf. Lc 16,27.
39cf. Lc 16,25.
40v. nota 36.
41cf. Lc 16,22.
42cf. 2Cor 12,2.
43cf. 1Sm 28,15-19.
44cf. Eclo 46,23.
45cf. Dt 34,5.
46cf. Mt 17,3.
47cf. Jo 2,9.
48cf. Jo 11,44.
49cf. 1Cor 12,7-11.
50cf. At 9,12.
51cf. Eclo 3,22.

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