Caríssimo Paulino, meu irmão no Episcopado: há muito devo-te uma resposta... Devo-a desde que me enviaste uma carta - através dos familiares da nossa piedosíssima irmã, Flora - onde me perguntavas se o cristão lucra algo para si se for sepultado próximo à sepultura de algum santo. Essa questão fora-te feita pela própria viúva que acabo de citar, em razão do seu falecido filho, enterrado em alguma parte da sua capela. Para a consolar, disseste que tal voto já havia se concretizado para o seu jovem filho, Cinérgio, em razão do carinho que a mãe nutre para com seu filho, pois fora ele sepultado na Basílica do bem-aventurado Félix, confessor da fé.
Tendo os mensageiros trazido a carta de resposta a Flora, aproveitaste para me interrogar por escrito sobre tal prática, pedindo o meu parecer sem esconder o que sentes.
Como me dizes, achais que não é coisa vã o sentimento que leva pessoas fiéis e religiosas a tomarem tal cuidados com os seus falecidos. Adiantas, ainda, que não é sem motivo que a Igreja universal mantém o costume de orar pelos mortos. Assim, pode-se concluir que é útil para o homem, após sua morte, ter uma sepultura desse gênero, providenciada pela piedade [de seus familiares], onde possa contar a proteção dos santos.
Caro Paulino: consideras que, caso a opinião que diz ser útil sepultar os entes queridos junto à sepulturas de santos seja verdadeira, então existe uma controvérsia com relação às palavras do Apóstolo que diz: "Todos nós certamente nos apresentaremos diante do tribunal de Cristo, para recebermos a retribuição de acordo com aquilo que fizemos durante nossa vida corporal, seja para o bem ou para o mal"1
De fato, a sentença do Apóstolo exorta-nos que é antes da morte que podemos fazer o que seja útil para depois dela e não depois que ela ocorre, quando recolhemos os frutos que praticamos durante a vida.
A questão então é resolvida da seguinte maneira: enquanto vivemos neste corpo mortal, há uma certa forma de viver que permite, após a morte, obter certo alívio através das obras pias feitas em seu sufrágio. Porém, tal ajuda será proporcional ao bem que cada um de nós fizemos durante a vida.
Para alguns, tais auxílios são totalmente inúteis, pois a conduta destes durante a vida foi tão má que simplesmente se tornaram indignos de os aproveitarem. Também existem outros que viveram de forma tão irrepreensível que não têm necessidade desses socorros. Assim, é através do modo de vida que cada um levou durante a existência corpórea, que se determina a utilidade ou inutilidade desses auxílios que lhes são piedosamente dedicados após a morte. Se o mérito da proveitosidade foi nula durante a vida, permanecerá estéril também após a morte.
Contudo, isso não significa que a Igreja e os fiéis perdem seu tempo, ao inspirar, pela religião, o piedoso cuidado aos defuntos - ainda que seja verdade que cada um receberá de acordo com o que praticou de bom ou de mau durante a sua vida, já que o Senhor retribui a cada um conforme as suas obras; logo, para que o cuidado tomado em relação a um ente querido seja-lhe útil após sua morte, é necessário que essa pessoa tenha adquirido a faculdade de torná-lo útil ainda durante o tempo em que viveu no seu corpo.
Esta resposta seria suficiente para a pergunta que me fizeste, mas creio que ela acaba gerando outras questões que preciso também abordar. Peço-te, assim, atenção! Lemos, no livro dos Macabeus2, que foi oferecido um sacrifício pelos mortos. Ainda que não encontremos em qualquer outra parte do Antigo Testamento uma outra referência a esse respeito, não podemos substimar a autoridade da Igreja universal, que manifesta esse costume, pois, nas preces que o sacerdote dirige ao Senhor Deus junto ao altar, existe espaço especialmente reservado para a encomendação dos falecidos.
Convém examinar se o lugar onde alguém foi sepultado exerce alguma influência sobre a alma. Mas, primeiro, vejamos se existe algum efeito o fato de deixar um corpo sem sepultura, seja para o início ou para o aumento das penas no além. Julguemos, pois, esta questão fundamentando-se nas Sagradas Escrituras da nossa religião e não conforme a crendice popular.
Não devemos crer, como lemos em Virgílio, que os mortos insepultos não podem navegar nem atravessar na barca do rio do Hades, confome esta passagem da Eneida: "Não lhes é permitido passar para além dessas horríveis margens e desse rio de ruído assustador, até que seus ossos não recebam uma morada tranquila"3.
Que inteligência cristã poderia crer em tais fábulas e ficções se o próprio Senhor Jesus, ao tranquilizar os cristãos que viriam a cair nas mãos e poder de seus inimigos, afirmou que nenhum só fio de cabelo de sua cabeça se perderá4 e os exortou a não temer aqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer [contra a alma]5?
Já falei muito sobre isso no primeiro livro da minha obra "A Cidade de Deus"6, para calar a boca dos pagãos que nos acusam, como cristãos que somos, como responsáveis pelas devastações promovidas pelos bárbaros, especialmente aquelas sofridas por Roma, e alegam que Cristo não nos socorreu nessa ocasião. Ao explicarmos que Cristo acolheu as almas dos fiéis conforme o mérito de sua fé, eles nos insultam dizendo que muitos cadáveres ficaram sem sepultura. Eis o que trato a esse respeito - quanto ao lugar do sepultamento - na citada obra:
"Naquela espantosa quantidade de cadáveres, quantos fiéis devem ter ficado sem sepultura? Contudo, tal infortúnio é pouco temido pela fé viva, que tem por certa que os animais nada podem fazer contra a ressurreição dos corpos de suas vítimas e delas não perecerá um só fio de cabelo da cabeça7. A Verdade afirmaria: 'Não temais aquele que mata o corpo e não pode matar a alma'8, se a engenhosa crueldade dos assassinos pudesse eliminar nos corpos dos inimigos a semente da vida futura? Haveria alguém tão insensato que acreditasse que os inimigos não devem ser temidos antes da morte, mas apenas depois, por privá-lo de uma sepultura? Se fosse possível fazer tal mal aos cadáveres, então as palavras de Cristo: 'não temais aquele que mata o corpo e não pode matar a alma' seriam falsas. O quê? As palavras da Verdade falsas? Que se afaste de nós tamanha blasfêmia! Está escrito que os assassinos dispõem de tal poder no momento de matarem porque o corpo é sensível ao golpe da morte, mas, em seguida, nada mais podem fazer pois o cadáver é desprovido de qualquer sensibilidade. É verdade que a terra não recebeu o corpo de grande quantidade de cristãos, mas, mesmo assim, ninguém separou a terra do céu, pois ela está cheia da presença d'Aquele que sabe de onde chamar à vida para aquilo que criou. Bem diz certo Salmo: 'Deram os corpos de teus servos como pasto para as aves do céus e as carnes dos teus santos aos animais da terra. Derramaram o sangue deles como água à roda de Jerusalém e não havia quem os sepultasse'9. Mas o Salmista diz isso mais para exagerar a crueldade dos carrascos do que para lamentar o infortúnio das vítimas. 'É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus santos'10. Assim, as providências quanto ao funeral, a escolha da sepultura, a pompa do enterro, etc., é mais consolo para os vivos do que alívio para os mortos. O quê? Poderiam os ímpios se aproveitarem das honras fúnebres? Se sim, realmente seria um infortúnio para o justo possuir uma sepultura pobre ou até mesmo não a possuir. Se para os olhos dos homens grande número de escravos realiza magnífico cortejo fúnebre para o rico impiedoso11, brilham muito mais para os olhos de Deus as exéquias que o ministério de anjos ofereceram ao pobre Lázaro, todo coberto de úlceras. Para seus restos mortais, não foi erguido um túmulo de mármore, mesmo assim, foi levado para o seio de Abraão. Vejo rindo aqueles contra quem defendo a Cidade de Deus... Contudo, até mesmo seus próprios filósofos menosprezaram a preocupação com o sepultamento e, muitas vezes, exércitos inteiros pouco se preocuparam com o lugar onde seus corpos haveriam de jazer - ao morrerem por sua pátria -, mesmo sabendo que os animais se alimentariam deles. Desta forma, puderam os poetas dizer, com aplausos: 'A quem faltou o sepulcro, o céu serve de proteção'12. Portanto, que loucura é essa de ultrajar os cristãos por terem deixado corpos insepultos, se aos fiéis foi prometido que a carne e os membros - deixados sobre a terra ou dispersos pelo interior de outros elementos - hão de retornar à vida, num piscar de olhos, sendo restituídos à anterior integridade, como foi prometido por Deus?13".
Mesmo assim, isso não é justificativa para abandonar sem cuidados os despojos dos falecidos, principalmente dos justos e fiéis, que são órgãos e instrumentos do espírito para toda boa obra. Se a roupa, o anel ou qualquer outro objeto pertencente ao pai é precioso para os filhos, muito mais terna é a piedade filial. Acaso o corpo não merece mais cuidados por estar muito mais intimamente ligado a nós do que a roupa, seja ela qual for? Logo, o corpo não é mero ornamento exterior do homem, mas parte de sua natureza humana. Este é o verdadeiro motivo dos deveres de piedade solenemente prestados aos antigos justos, a pompa de suas exéquias, os cuidados com suas sepulturas e as ordens que eles mesmos, quando vivos, davam a seus filhos, para sepultá-los ou transladá-los uma vez mortos14.
De acordo com o testemunho do anjo, Tobias atrai sobre si as bênçãos de Deus devido a seu cuidado para com os mortos15. O próprio Nosso Senhor, que ressuscitará no terceiro dia, divulga a boa ação da santa mulher que lhe unge com precioso perfume, como que para sepultá-lo antecipadamente16. Também o Evangelho recorda com louvores aqueles que receberam piedosamente o Corpo, à descida da cruz, cobrindo-o com o sudário e depositando-o no sepulcro17.
De forma alguma, tais exemplos não provam que os cadáveres conservam algum tipo de sensibilidade. Mas provam que a Providência de Deus vela os despojos dos falecidos e esses deveres de piedade lhe são agradáveis, por demonstrarem a fé na ressurreição.
Além disso, existe salutar ensinamento para nós: ainda que Deus retribua abundantemente as nossas esmolas prestadas a criaturas vivas e dotadas de sensibilidade, também aos olhos de Deus nada se perde pela nossa caridade prestada aos restos inanimados dos homens.
É certo que os santos patriarcas deixaram, por inspiração profética do Espírito, outras recomendações sobre o sepultamento e a transladação de seus corpos, porém, não é oportuno aprofundarmos em tais mistérios neste momento. Basta, então, o que acabamos de dizer.
Se é verdade que a falta de coisas necessárias para a manutenção da vida - como o alimento e o vestuário - são provações cruéis, mas impotentes contra a corajosa paciência do homem virtuoso, longe de afastar a piedade do seu coração, como poderia, então, que a falta das solenidades fúnebres costumeiras, perturbasse o repouso de tal alma na santa e bem-aventurada mansão? "E que os últimos deveres tenham faltado aos cristãos na desolação de Roma ou de outras cidades, isto pouco importa: não foi falta dos vivos, que nada puderam fazer; nem infortúnio para os mortos, que nada puderam sentir"18.
Tal é a minha opinião sobre a causa e a razão de ser das sepulturas. Se extraí essa passagem de algum dos meus livros para colocá-la aqui, é porque me pareceu mais simples retomá-la do que exprimir em outras palavras as mesmas idéias.
Como esses princípios acima elencados são justos, não deixa de ser marca dos bons sentimentos do coração humano escolher para seus entes queridos que serão sepultados um lugar próximo aos túmulos dos santos.
Já que o sepultamento é, por si mesmo, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos...
Se é verdade que denominam de "Memorial" ou "Monumento" aos sepulcros vistosamente construídos, fazem-no, na verdade, para trazer à memória aqueles que, pela morte, foram subtraídos aos olhos dos vivos. Isto é feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que não aconteça de, tendo sido retirados da presença dos vivos, também sejam retirados do coração pelo esquecimento. Aliás, o termo "Memorial" indica claramente esse sentido de recordação, da mesma forma como "Monumento" significa "o que traz à mente", ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de "mnemeion" ao que chamamos de "memoria" ou "monumentum". Na língua deles, "mnème" significa "memória", a faculdade com a qual recordamos.
Assim, quando o pensamento de alguém se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um mártir venerável, então a afeição amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse mártir.
Não se pode duvidar de que essas súplicas, feitas pelos fiéis em nome dos seus caros defuntos, são úteis a estes caso apenas tenham merecido - durante a vida - beneficiar-se após a morte. Ainda que se suponha que alguma circunstância impediu o sepultamento ou que não foi dada a autorização para sepultar num desses locais sagrados, não será por isso que deveremos negligenciar as orações pelos falecidos.
A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes [de seus fiéis defuntos], ela os inclui numa comemoração geral19. Dessa forma, aqueles que não possuem mais pais, filhos ou outros parentes e amigos para auxiliá-los, são amparados pelo sufrágio dessa piedosa Mãe comum.
Julgo, porém, que caso esses sufrágios pelos mortos sejam feitos sem verdadeira fé e piedade, de nada valeria ao espírito deles que seus corpos sem vida se encontrassem sepultados nos lugares mais santos.
Aquela mãe cristã de que me falaste desejou que o corpo de seu filho fosse depositado na basílica de um mártir por ter aquele expirado na fé. É que ela acreditava que a alma do finado poderia ser ajudada pelos méritos desse mártir. Essa fé, a seu modo, já era uma súplica; e súplica útil, se admitirmos isso, à medida em que voltar o seu pensamento frequentemente em direção a esse túmulo e, cada vez mais, recomendar o filho em suas orações... e é isto o que realmente será útil para a alma do finado. O que vale não é o lugar onde o corpo está enterrado, mas a viva afeição da mãe, revivificada pela lembrança desse lugar. A isso, devemos acrescentar que o objeto de sua afeição e o pensamento do santo protetor contribuirão bastante para tornar mais fecunda sua oração e piedade.
Ocorre que aqueles que oram impõem a seus membros uma posição condizente com a oração: ajoelham-se, estendem as mãos, prostram-se no chão e praticam outros gestos do gênero. É certo que Deus conhece-lhes a verdade oculta e a intenção do coração, e não tem a necessidade desses sinais sensíveis para penetrar no íntimo da consciência humana. Entretanto, é por essas demonstrações que a pessoa estimula-se a si mesma a orar e gemer com mais humildade e fervor. Ainda que os gestos corporais não se produzam sem o movimento interior da alma, esses atos externos e invisíveis aumentam - não sei como - o ato interior e invisível.
Ainda que estivesse impedido ou impossibilitado de os realizar com seus próprios membros, isso não imcapacitaria o homem interior de orar. Deus o vê, contrito e arrependido, prostrar-se no santuário secreto do seu coração.
De forma análoga, podemos dizer que o local de sepultamento é, por certo, de grande importância para aquele que encomenda a Deus a alma do morto querido, desde que a oração seja vivificada pelo espírito interior, já que foi o sentimento interno do coração que escolheu com antecedência o lugar santificado para o sepultamento. E esse local, após receber o corpo, renova e aumenta o sentimento interior, que foi o princípio de tudo, pelas lembranças que suscita.
Contudo, se tão piedosa pessoa não consegue sepultar aquele que ama no lugar onde desejaria por inspiração cristã, ela não deve, por isso, suprimir as orações necessárias para a encomendação do defunto. Pouco interessa se aqui ou ali está um corpo sem vida: o essencial é que a alma encontre seu repouso. Deixando este mundo, ela leva conscientemente consigo o tipo de sorte que lhe está reservada, se a felicidade ou o infortúnio.
Não é da carne que a alma espera ajuda para a sua vida futura. É ela que lhe comunicava a vida na terra. Ao partir, ela retirou a vida; ao voltar20, a devolveria. É a alma que prepara para a carne o que lhe será devido no momento da ressurreição, e o corpo ela o fará revivificar, seja para o castigo ou para a glória.
Lemos na "História Eclesiástica" de Eusébio, escrita em grego e traduzida para o latim por Rufino, o seguinte acontecimento: na Gália, os corpos dos mártires de Lião foram atirados aos cães. A carne e os ossos que restaram foram reduzidos a cinzas, até a última parcela, e foram jogadas finalmente no rio Ródano, para que não sobrasse nada de sua memória.
Ora, devemos crer que se Deus permitiu tal destruição é para demonstrar aos cristãos que, ao confessarem a Cristo, desprezando esta vida, os mártires devem desprezar ainda mais a sepultura, pois se a detestável crueldade com que foram tratados os corpos desses mártires pudesse afastar do bem-aventurado repouso a alma vitoriosa, Deus certamente não o teria permitido. Está bem claro o que o Senhor afirmou: "Não temais os que matam o corpo e depois nada mais podem fazer"21. Isso não significa que os perseguidores perderiam o poder sobre o corpo dos fiéis após a morte, mas ainda que detivessem tal poder, nada mais podiam fazer para diminuir a felicidade das suas vítimas, pois já não podiam atingir a vida consciente delas no além-túmulo e também não podiam danificar mais os próprios corpos, do ponto de vista da integridade da sua ressurreição.